Moradores de bairros sem asfalto são os que mais sofrem com a forte estiagem
Gilda da Silva dos Santos, de 64 anos, tem sangramentos constantes no nariz em virtude do ar seco e, por isso, sempre mantém uma bacia com água por perto, em sua casa (Kamá Ribeiro)
À beira da Rua 2, no bairro Campo Grande, onde a poeira da via de terra parece engolir os carros e casas, Gilda da Silva dos Santos, de 64 anos, sofre com os efeitos da estiagem. “Todo dia, meu nariz está sangrando. E eu não posso sangrar, porque se sangrar é perigoso dar hemorragia”, disse, na porta de casa, quando saía para comprar ração para os dois cães na manhã de segunda-feira (25). “Hoje (segunda-feira) de manhã, sangrou. E eu tenho que ficar assim”, disse, levando as mãos ao nariz e jogando a cabeça para trás. "Faço isso para parar de sangrar, e aí pára. Se eu abaixar a cabeça, sangra muito.”
Na casa de dois cômodos, ela acomoda uma bacia com água, todas as noites, no pé da cama, entre o sofá e a televisão, para amenizar os efeitos do tempo seco. Além disso, está juntando sacos de ração vazios para forrar a parte do muro não coberta por cimento, que separa a porta de casa da rua, a fim de evitar que a poeira invada sua casa. “Quando chove, alivia. Estou aqui pedindo a Deus para chover um pouco, porque está demais.”
Sem chuvas em Campinas há 56 dias, moradores de regiões distantes do Centro, onde o asfalto ainda não chegou, sofrem duplamente com a poeira e o tempo seco. Além de problemas respiratórios, a sujeira que invade as casas tira o pouco conforto que possuem.
A reportagem esteve na segunda-feira (25) no bairro Campo Grande, mas há outros 17 bairros em condições semelhantes no município. Segundo o médico oftalmologista Gilvano Amorim, pessoas que vivem nessas condições precisam estar em alerta e procurar um especialista caso os sintomas respiratórios e oculares se agravem neste período do ano.
Poeira dia e noite
Na Rua 3, no mesmo bairro em que mora Gilda, Angélica Angela do Vale Monteiro, de 68 anos, precisou fechar o brechó que mantinha em frente de sua residência. As roupas, que agora ficam guardadas dentro de casa, eram expostas do lado de fora. Mas há cerca de um mês, devido ao tempo seco e à nuvem de poeira deixada pelos carros e ônibus que passam pelo local, ela optou por fechar o negócio. “As roupas ficam muito sujas e ninguém compra”, lamentou. “O brechó não me dava muito lucro, mas garantia um leite, um pão, ainda mais nesse período em que tudo está caro.”
Vizinha da frente, Cristina Campos, de 53 anos, acompanhou os efeitos da poeira na casa de Angélica, mas ela mesma amarga as dores causadas pela poeira na própria família. “Dia todo, da hora em que você levanta à hora que você vai dormir, poeirão. Para as crianças, é pior ainda, sofrem mais. É nariz seco o tempo todo, você tem que ficar usando soro no nariz, tosse… meu menino é alérgico, então, tem que tomar remédio e toda hora ele piora. Já meu marido tem um pouco de asma, e precisa usar inalador e bombinha. E como ele trabalha na rua, com reciclagem, sofre mais ainda com o poeirão. Quando ele vai pro asfalto, melhora, mas na parte de terra, é sofrido”, disse.
As roupas que ficam no varal também perdem a cor, se tornando “amarelas” devido à poeira. A rua é toda de terra e, sem perspectiva de asfalto, os problemas se repetem de casa em casa.
Onde mora a auxiliar de cozinha Lêa Souza, de 44 anos, o problema atinge a filha de 17 anos que, segundo a mãe, recebeu orientação da médica para que se mudasse de bairro. “A minha filha de 17 anos tem problema respiratório e sempre está passando mal. Mês passado, gastei quase R$ 800 em consulta e raio-X de pulmão, por causa do pó. E no momento, a casinha que a gente mora, é nossa mesmo, então, não tem como a gente alugar. Está tudo muito caro. E é bem difícil. Tudo por causa do pó. Limpo a casa de manhã e, à tarde, está aquela bagunça de novo. A médica falou que eu teria que mudar, mas não tenho condições, não”, lamentou.
Sem chuvas
Com 56 dias sem chuvas, o mês de julho deste ano será o terceiro que fechará sem precipitação desde 1991. A situação só havia ocorrido nos meses de julho dos anos de 2008 e 2017.
De acordo com a Cepagri, dentro desses 56 dias em estiagem, Campinas teve dois registros de precipitação, mas nenhum alcançou os 10 milímetros, índice que marca a “chuva agrícola” e que tem um volume considerável. Em 18 de junho, choveu 1,8 milímetro e, no dia 10 de junho, 7,1 milímetros, o que é abaixo do necessário.
“De modo geral, esse ano está bem seco. Somente em janeiro, tivemos chuva acima da média e o deficit parcial de chuvas já estava em 106 milímetros até o final de junho. Sem expectativa de chuvas para julho, o deficit será de 143 milímetros”, explicou o meteorologista da Cepagri Bruno Bainy.
Em geral, aponta Bainy, o inverno meteorológico, período que vai dos meses de junho a agosto, compreende a época mais seca do ano, tanto em volume de chuvas quanto em dias de chuva.
Neste inverno, junho fechou com temperaturas na média, mas as chuvas ficaram muito abaixo do valor de referência. Julho, até o momento, está com temperaturas médias de cerca de 2ºC acima da referência, e sem chuvas. De acordo com Bainy, este aumento da temperatura é um desvio considerável.
“Infelizmente, nos últimos 10 a 12 anos, temos visto esse cenário, de forma bastante recorrente, em junho e julho: temperaturas acima da média e chuvas abaixo da média. Ainda não temos um estudo que atribua essas anomalias a, por exemplo, mudanças climáticas globais ou regionais, ou mecanismos de variabilidade climática, como El Niño e La Niña”, explica o meteorologista.
A previsão é de que, somente no fim da primeira semana de agosto, as chuvas venham, um cenário que ainda pode se alterar devido à distância da previsão. Já o que deve ocorrer nos próximos dias será a chegada de uma frente fria, que deverá passar pelo litoral, mesmo assim, sem previsão de chuvas para a região.
URA comprometida
O impacto da falta de precipitação recai sobre a umidade relativa do ar (URA), deixando o clima mais seco. Segundo Bainy, quando há chuvas, ocorre uma elevação imediata na URA, além de proporcionar o abastecimento do solo com água, o que “limpa” a atmosfera da poluição.
O último balanço da Operação Estiagem, feito pela Defesa Civil com dados até 24 de julho, mostra que o mês de julho teve 14 dias com a URA em níveis de atenção. Em junho, foram seis dias.
Segundo o diretor da Defesa Civil de Campinas, Sidnei Furtado, é preciso se manter alerta aos cuidados respiratórios nesse período. Além disso, com baixa umidade e falta de chuvas, queimadas de qualquer tipo se tornam desafios para a saúde pública e segurança das pessoas.
No mesmo balanço, a Defesa Civil aponta que foram identificados 41 focos de incêndio em julho e outros 18 focos no mês anterior, em junho, pelos satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).
Saúde afetada
De acordo com o médico oftalmologista Gilvano Amorim, que também é professor do curso de Medicina da Pontíficia Universidade Católica (PUC) de Campinas, cenários como esse podem causar ainda mais complicações à saúde e se agravam em locais onde falta infraestrutura básica.
“Se você tem uma área não asfaltada, com trânsito de veículos, isso vai fazer com que a decantação seja mais abundante”, aponta. A decantação, citada por Amorim, diz respeito à quantidade de poluentes e partículas de poeira que ficam no ar. Com o tempo seco, elas ficam soltas e se misturam com o ar inspirado. Quando há umidade, o ar fica mais pesado e faz com que essas partículas “desçam”. “Por isso que quando temos chuva e aumento da umidade temos um ar mais limpo”, aponta.
Em relação aos impactos da exposição a esse tipo de ambiente, ele lista desconforto e ardência nas vias respiratórias, ardência e lacrimação nos olhos, visão embaçada e até impactos mais graves dessas condições, como o processo inflamatório de vias respiratórias e conjuntivite.
As alternativas diante desse cenário são ampliar a ingestão de líquidos e evitar a exposição ao Sol nos horários que vão das 9h às 16h. “Outra medida é aumentar a umidade nos ambientes domiciliares, usando vaporizadores, que já favorecem a umidade, ou simplesmente colocar água num recipiente de boca larga, como bacia. Agora, se tiver tosse persistente, falta de ar, crise de asma ou bronquite, falta de ar associada a chiado no peito, é preciso buscar ajuda médica.”