LUGAR NA HISTÓRIA

Saga heroica dos negros campineiros

Atuação de lideranças emblemáticas é detalhada em livro escrito por jovem de 21 anos

Rogério Verzignasse
28/04/2019 às 10:26.
Atualizado em 04/04/2022 às 08:31

Uma jornalista de apenas 21 anos, recém formada na Universidade Paulista (Unip), acaba de receber uma moção de aplauso da Câmara Municipal de Sumaré por ter preparado — como trabalho de conclusão de curso — um livro-reportagem sobre o papel dos negros na história campineira. Lideranças que foram importantes na política, nas artes, no trabalho, na organização social. Ícones da liberdade e da solidariedade, em um tempo de valores ultrapassados e preconceituosos. Geovanna Bispo Alves nasceu em Campinas. Ela mora em Sumaré desde bebê, mas jamais perdeu o contato com os parentes, que continuam por aqui. E a moça sempre foi apaixonada por sua terra-natal. A queda pessoal pela cultura negra tem explicação genética. Geovanna é bisneta de um negro. Geraldo Marcelino Bispo foi poeta e escritor, e já virou nome de rua em Taubaté. Em 2017, ela ainda conheceu um projeto de lei na Câmara, que propunha a disponibilização de pequenas biografias de personalidades negras em placas que identificavam nomes de ruas e praças. Era uma propositura do vereador Carlão do PT, que foi entrevistado para o próprio trabalho de conclusão de curso da então estudante, que remetia a um tema muito difícil: Campinas foi uma das últimas cidades brasileiras a abolir a escravatura. 26 lideranças negras da cidade de Campinas se tornaram nomes de logradouros públicos desde 2015, quando o vereador apresentou a indicação 674, transformado em projeto do Executivo, implementado pela Setec  A orientadora do projeto foi a professora Cibele Bouro. A colação de grau de Geovanna foi em janeiro. Para fazer a pesquisa, a jovem jornalista recorreu aos arquivos do Centro de Memória da Unicamp, da Academia Campinense de Letras (ACL), do Museu de Imagem e Som de Campinas (MIS), do Centro de Ciências, Letras e Artes (CCLA). Foram diversas entrevistas com historiadores e integrantes do movimento negro. O livro A negra cor que resiste nas ruas campineiras tem 136 páginas. Detalhe: a moça bancou do próprio bolso a edição de 50 exemplares, e os doou a amigos, parentes, historiadores e professores. Sonha, um dia, despertar a atenção de uma editora e lançar uma edição comercial. “Conhecer e apresentar em palavras a história de negros que construíram a cidade de Campinas foi minha respiração durante um ano de pesquisa”, conta Geovanna. Episódios A obra de Geovanna conta em detalhes e histórias como a do escravo Elesbão, morto no patíbulo por ter sido acusado de planejar a morte de seu próprio senhor (veja trecho nesta página). “É difícil encontrar uma moça tão jovem, dedicada a um assunto tão complexo. É muito bom ver as novas gerações engajadas na preservação da história”, elogia Edgardo Cabral, vereador que apresentou a propositura da moção de aplauso à jornalista na Câmara de Sumaré. O livro também conta a trajetória de Francisco Glicério, afrodescendente. Ele foi símbolo da ascensão intelectual da raça, com papel estratégico em um movimento político que mudou a história do Brasil: a construção da República. Historiadores ouvidos por Geovanna, no caso, explicaram que os livros de histórica reservam para os negros os capítulos referentes à escravidão, mas desconsideram a atuação estratégica da raça para o avanço democrático e social da Nação. Também é personagem da obra a Laudelina de Campos Melo, negra, ativista social, que pelejou pelos direitos igualitários da classe trabalhadora doméstica e lutou contra o preconceito racial na comunidade. As páginas trazem informações biográficas de muitos outros negros de atuação reconhecida, e que viraram nome de rua pela cidade. Gente como o escravo Antoninho, o mestre Tito, Luiz Gama e Cruz e Souza, personagens centrais de epopéias incríveis, que tratam de solidariedade e cultura. As páginas denunciam até casos criminosos como a venda ilegal de escravos que já eram libertos, que geravam dinheiro sujo para os barões. O livro fala também de lugares emblemáticos, como o largo onde os escravos eram comercializados, e a capela de Santa Cruz do Fundão, na Abolição, construída em um terreno que serviu para a sepultura de escravos nos primórdios da Vila São Carlos, e que virou tema de lendas. O livro é uma viagem deliciosa e tempos e lugares de autênticos heróis campineiros, nem sempre reconhecidos como tal, mas cultuados pelos apaixonados pela memória local.

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