Obrigatoriedade dos municípios atenderem toda demanda está sendo julgada pelo STF
Prefeitura de Campinas destinou R$ 920 milhões no Orçamento deste ano para dar atendimento a 47,5 mil crianças matriculadas em creches municipais (Kamá Ribeiro)
A obrigatoriedade dos municípios garantirem vagas em creches — que está em julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) — aumentará em 52,61% os gastos das 20 cidades da Região Metropolitana de Campinas (RMC) com educação infantil. As despesas saltarão dos atuais R$ 878,6 milhões para R$ 1,34 bilhão ao ano, de acordo com o estudo de impacto nas contas públicas feito pela Confederação Nacional dos Municípios (CMN).
O STF julga, desde quinta-feira passada, uma apelação da Prefeitura de Criciúma (SC) contra o mandado de segurança movido pelo Ministério Público para que a cidade catarinense assegure o atendimento em creche e pré-escola às crianças de 0 a 6 anos de idade. A decisão, porém, terá impacto nas 5.568 cidades brasileiras, alerta a CMN.
O estudo realizado pela Confederação considera apenas a estimativa de custo por aluno de aproximadamente R$ 1,2 mil por mês, e não inclui as despesas para a construção das creches e sua manutenção.
De acordo com o Censo Escolar de 2021, 3,4 milhões de crianças são atendidas em creches no País. Segundo a Confederação Nacional dos Municípios, a Prefeituras atendem 2,38 milhões de crianças de 0 a 3 anos — 70% do total —–, enquanto aproximadamente 1 milhão é de escolas particulares.
No País
A CMN aponta que, para atender toda a demanda, seria necessário criar outras 8,4 milhões de vagas, uma vez que o País tem 11,8 milhões de crianças de 0 a 3 anos, das quais apenas 3,4 milhões estão hoje em creches.
A entidade avaliou dois cenários no estudo do impacto dos custos. O primeiro leva em conta o atendimento de 50% da demanda até 2024, como prevê o Plano Nacional de Educação (PNE), o que representaria uma elevação de gastos para as Prefeituras da RMC de R$ 58,52 milhões.
A segunda hipótese considera o atendimento de 100% da demanda — exigido no mandado de segurança —, o que elevaria as despesas em R$ 467,21 milhões. Esse valor é equivalente a 62,15% de todo o orçamento de Valinhos (R$ 751,71) para este ano, que inclui as verbas da Administração Municipal, da Câmara de Vereadores, do Departamento de Águas e Esgotos de Valinhos (DAEV) e do Instituto de Previdência Social dos Servidores Municipais de Valinhos (Valiprev).
Região
Valinhos destinou R$ 57,12 milhões para atender as 1.754 crianças matriculadas em creches (0 a 3 anos) e 1.880 no infantil I e II (4 e 5 anos) este ano. Até agosto, o custo foi de cerca de R$ 34 milhões. Valinhos tem atualmente 504 alunos na lista de espera para vagas em creche. Para atender à demanda, a Prefeitura inaugurou duas novas unidades este ano e entregará “em breve” a ampliação de uma terceira para aumentar o atendimento.
A Prefeitura de Campinas, que tem um déficit de 5 mil vagas em creche, estima que o atendimento de toda demanda teria um impacto R$ 100 milhões anuais. Para atender as 47,5 mil crianças matriculadas na educação infantil, o município destinou R$ 920 milhões este ano, dos quais R$ 611 milhões foram aplicados até julho. Na pré-escula, a cidade tem até sobra de vagas, segundo a Administração Municipal.
Independente da decisão do STF, a Secretaria Municipal de Educação trabalha para zerar a falta de vagas té o final de 2024. A pasta prevê a construção de 14 novas creches a partir do próximo ano, investimento estimado em R$ 115 milhões, para solucionar o problema. “A questão do déficit, para nós, tem que ser atacada com a construção de escolas, para a abertura de vagas”, diz o secretário adjunto de Educação, Luiz Roberto Marighetti.
Ele explica que a Administração Municipal já mantém um termo de colaboração com todas as entidades da cidade que realizam atendimento próprio para crianças de 0 a 3 anos, não havendo mais margem para ampliação imediata de vagas. São instituições religiosas e organizações não-governamentais (ONGs) que têm creches em bairros para a população em vulnerabilidade social.
A doméstica Valdete Ramos Oliveira tenta uma vaga para o filho, de 1 ano e 8 meses, em uma creche próxima da casa onde mora. “Faz um ano que estou procurando, mas dizem que a lista é grande demais e não tem espaço”, afirma.
Por enquanto, ela deixa o bebê com a cunhada ou uma amiga. Porém, elas não poderão mais ficar com a criança, e Valdete teme perder o emprego. “Todos têm compromissos, estavam me quebrando um galho. Agora, se eu não conseguir vaga, vou ter que desistir do trabalho para cuidar dele e vamos passar dificuldades”, ressaltou a doméstica.
Em Hortolândia, há 1.223 crianças em lista de espera em creche. Atualmente, o município atende 11.097 crianças de 0 a 3 anos em creches, salas de jardins e no Programa Bolsa Creche (escolas particulares contratadas). Ou seja, para cada dez crianças atendidas, praticamente uma está fora. De acordo com a Prefeitura, a educação infantil recebe hoje R$ 38 milhões, mas seriam necessários mais R$ 13 milhões para atender toda a demanda.
Para oferecer mais vagas, a Administração aponta que as alternativas seriam a contratação de Organizações da Sociedade Civil (OSCs) e construção de novas unidades escolares ou ampliação das existentes, por meio de parcerias com os governos federal e estadual.
Já Indaiatuba informou que não tem déficit de vagas, atendendo 12 mil alunos em creches e pré-escolas, com um orçamento anual para a educação infantil de R$ 142,37 milhões.
Paulínia também informou que não tem déficit de vagas, atendendo 6.426 crianças na educação infantil, com verba prevista para este ano de R$ 59,75 milhões. São 2.227 vagas em creches, 2.532 na pré-escola e 1.667 em escolas conveniadas.
CMN
O consultor jurídico da Confederação Nacional dos Municípios, Paulo Antonio Caliendo Velloso da Silveira, questiona a constitucionalidade do mandado de segurança movido pelo Ministério Público de Santa Catarina, que já teve vitória em acórdão do Tribunal de Justiça do Estado (2ª instância). “O Poder Judiciário não pode interferir na esfera de atribuições do Executivo e impor a destinação de recursos públicos”, afirma.
Além disso, apesar de considerar a obtenção de vaga importante para as mães que trabalham fora, o consultor justifica que “a creche não integra a educação básica. É um direito social e não um direito educacional.” Para Silveira, a emenda constitucional nº 59/2009 estabelece que a educação básica deve ser obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos. “Em relação ao tratamento das crianças de 0 a 3 anos, essa oferta não está prevista no texto constitucional. Dessa forma, não haveria essa exigência também”, completa.
Para o consultor jurídico da CMN, os municípios brasileiros têm características diferentes e não se pode colocar uma regra única para todos. Ele defende que cada Prefeitura elabore uma proposta de atendimento de acordo com um planejamento, diante da demanda que tem. O responsável pela Coordenadoria de Recursos Cíveis do MP-SC, Davi do Espírito Santo, afirmou que está em pauta no julgamento o direito fundamental à educação, consagrado pelos artigos 6º e 205º da Constituição, que abrangem a disponibilização de vagas na educação infantil, por meio de creches e pré-escolas. “Nenhuma nação pode se desenvolver de forma sustentável sem uma educação de qualidade. A base desse desenvolvimento é, justamente, a educação infantil. A oferta de vagas suficientes e com padrões mínimos de qualidade, hoje, impactará nos indicadores do ensino fundamental e médio no futuro”, ressaltou.
Espírito Santo sustentou que a jurisprudência do STF vem se firmando no sentido de exigir a efetivação plena do direito à educação infantil assegurado constitucionalmente, cuja prestação não se insere no âmbito do poder discricionário da administração pública. “Sem a garantia de acesso e permanência na educação infantil para um maior número de crianças, jamais o nosso País conseguirá cumprir os objetivos fundamentais da República, entre eles, o de construir uma sociedade mais livre, justa e solidária e o de reduzir as desigualdades sociais e regionais”, diz o procurador.
A diretora da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, Eliete Aparecida de Godoy, defende que haja uma política nacional envolvendo a União, Estados e municípios para garantir acesso às creches com uma educação de qualidade. “As Prefeituras não têm condições hoje de atender a essa demanda do dia para a noite. Eu digo isso com muita tristeza”, afirma.
Ela explica que não basta construir novas creches, mas é preciso oferecer infraestrutura adequada, equipamentos, profissionais qualificados e alimentação diferenciada. Eliete acrescenta que essas instituições não podem ser vistas como local para atender as famílias, mas por terem papel importante no desenvolvimento motor, emocional, cognitivo e social da criança. “São um espaço importante para o desenvolvimento integral das crianças. Estudos mostram que elas, com poucos meses na creche, têm desenvolvimentos quantitativos e qualitativos relevantes”, afirma.
O julgamento no STF está 1 a 0 a favor do mandado de segurança do MP-SC, com manifestação do ministro Luiz Fux. A apreciação foi interrompida com pedido de vista pelo ministro André Mendonça, para análise da questão.