Caso ocorreu na última quarta-feira; Setec abriu sindicância para apurar eventual descumprimento de prazo
Remoção estava sendo feita de sepulturas da Quadra 35, segundo reclamante (Rodrigo Zanotto)
"Um susto tremendo". É dessa forma que a administradora Roberta Artiolli, de 38 anos, define sua reação ao reparar que os restos mortais do pai, enterrado no Cemitério Parque Nossa Senhora da Conceição (Amarais), em Campinas, estavam a ponto de serem removidos da sepultura antes do prazo, sem que a família tivesse autorizado. O caso aconteceu na última quarta-feira, quando Roberta foi até a administração do cemitério para solicitar a exumação dos restos mortais. Por acaso, decidiu visitar o lote do pai. Foi quando presenciou servidores escavando sepulturas na mesma quadra. Por uma cova, os restos mortais do pai não foram removidos e colocados no ossário, à revelia da família.
Na edição do dia 24 de abril, o Diário Oficial do Município publicou medida da Serviços Técnicos Gerais (Setec), administradora do cemitério, que estabelecia que familiares de pessoas sepultadas em lotes públicos teriam 30 dias para reclamar os restos mortais de seus entes. Segundo o documento, a convocação era referente a pessoas sepultadas em abril de 2020, entre os lotes 165 e 648 da quadra 35.
O problema é que, na prática, a remoção estava sendo feita no último dia 3, bem antes do prazo estabelecido pela própria autarquia. Em nota, a Setec informou que vai abrir sindicância para apurar o caso. Roberta conta que, no momento da visita, tinha em mãos uma cópia do Diário Oficial, que apresentou aos servidores. Segundo ela, a atitude gerou confusão. "Eles ficaram sem reação. Fui até a administração do cemitério para entender o que estava acontecendo e os coveiros me acompanharam, porque eles também não sabiam ao certo o que estava acontecendo", relata Roberta.
De acordo com ela, quando a administração tomou conhecimento da situação, teve início uma discussão entre uma servidora, que se identificou como 'Vanessa', e os coveiros. "Ela falou 'olha a merda que vocês iam fazendo'", lembra Roberta. Conforme a Setec, a quadra em questão é pública e estabelece prazo mínimo de três anos para que os restos mortais sejam removidos. Passado o período, a autarquia emite comunicado para notificar que, caso não haja interesse na aquisição de uma sepultura, os restos mortais são encaminhados para exumação geral.
"Quando meu pai morreu, não pude enterrá-lo no nosso jazigo, pois ele havia sido aberto recentemente. Optamos por prosseguir com o lote público até que pudéssemos transferi-lo. Mas nunca fui notificada, eu nunca recebi nada da Setec", reclama Roberta. A mulher jovem pagou uma taxa de R$ 522,00 para o serviço de exumação. Agora, ela pretende cremar os restos mortais do pai.
O Correio esteve na sexta-feira no cemitério para conferir a situação da quadra 35. Alguns lotes , a partir do 165, estavam abertos, mas as sepulturas estavam vazias, caso das de números 166, 167, 168, 171, 172, 173, 174 e 175. Um servidor, que pediu para não ser identificado, revelou que acompanhou a confusão. "A moça veio aqui e perguntou por que estávamos abrindo. Bom, essa foi a ordem, né? Era para abrir da 169 até 290. Eu disse, opa! Sou rápido com isso. Se tem que abrir, abro. Mas, depois de quarta-feira, mandaram parar imediatamente. Eu disse para a moça: 'sorte que a senhora chegou a tempo, pois já ia abrir a do seu pai'".
A sepultura com restos mortais do pai de Roberta foi marcada com uma estaca de madeira e estava preservada até sexta-feira (5). Para a reclamante, o método é muito "raso e ineficaz". "Os próprios servidores não sabiam o que estava acontecendo. Falaram que 'tinha que ver com o coveiro, para verificar se ele já tinha tirado os ossos'. Como assim? Não há nenhum registro? Nenhuma burocracia?", questiona.
Na mesma quadra, outras covas, que não se enquadram entre as relacionadas no DO, já foram esvaziadas e serviam a novos sepultamentos. O servidor contou à reportagem que as exumações foram encomendadas por conta da alta demanda. "Hoje (sexta-feira) mesmo já enterramos uns três aqui", disse, apontando para a fileira anterior.
De acordo com o parágrafo 1º do Artigo 16 do Decreto 6262/80, que regulamenta o funcionamento dos cemitérios municipais, "entende-se por sepultura provisória aquela cedida por três anos para adultos e por um ano e meio para menores de seis anos". O texto diz ainda que "terminado o prazo e mais 30 dias, os restos mortais existentes serão removidos".
O Decreto estabelece também, no 2º parágrafo do artigo 31, que a "Setec mandará publicar durante três dias pela imprensa Oficial e em jornais de grande circulação, edital com o prazo de 30 (trinta) dias para os interessados reclamarem, mediante requerimento protocolado, os restos mortais e o material da demolição efetuada".
Para o advogado Otávio Dias Breda, especialista em direito civil e criminal, o desrespeito ao prazo publicado em edital configura crime, passível de processo por eventuais famílias lesadas. "A família tem aí duas ações. Uma na esfera criminal, pela prática de vilipêndio de cadáver, previsto no Artigo 212 do Código Penal, passível de pena de um a três ano e multa. Isso por conta dessa remoção desonrosa, que é um crime contra a honra do morto. O Código Penal tutela essa lembrança, esse respeito ao morto", esclareceu.
Além disso, na esfera cível, "os familiares podem entrar com uma ação de indenização contra o município por dano moral contra os familiares, conforme Parágrafo 6º do Artigo 37 da Constituição Federal, que trata da responsabilidade civil objetiva dos entes públicos".
O advogado analisa que a base para uma indenização é a não comunicação e não cumprimento de prazo. "A lei municipal dá à autarquia o direito de notificar apenas pelo edital (Diário Oficial, por exemplo). No entanto, esse não cumprimento de prazo é o que configura o vilipêndio", conclui.
A autarquia se manifestou sobre o caso através de nota. "A Setec recebeu a denúncia e vai abrir uma sindicância para apurar se houve descumprimento do prazo. Não houve a remoção dos restos mortais do familiar da pessoa que faz a denúncia", informa o texto. Não se sabe precisamente quantas famílias podem ter sido atingidas. O presidente da Setec, Enrique Lerena, disse à reportagem que a "apuração é imediata".
Outra questão
A Setec publicou na terça-feira, também no Diário Oficial do Município, a abertura de chamamento público para 36 sepulturas no Cemitério da Saudade. O valor de cada jazigo é de R$ 28,7 mil. A autarquia informou que há cinco anos não tinha jazigos para vender para a população.
"A oferta desses espaços está sendo feita após um levantamento da autarquia, que identificou sepulturas em estado de abandono por falta de manutenção. Com as informações, a Setec procurou os responsáveis por telefone e fez publicações no Diário Oficial convocando-os para prestar informações. O trabalho de mapeamento vai continuar e a autarquia deve oferecer outras sepulturas para a população" diz nota publicada no portal do município. Quem tiver interesse deve entrar em contato pelos telefones (19) 3734-6178, 3734-6152, 3734-6115 e 3246-1079.