EM BUSCA DA FELICIDADE

Refugiados afegãos ganham nova vida em Morungaba

Famílias são assistidas pela Junta das Missões da Convenção Batista Brasileira

Isadora Stentzler/ [email protected]
18/09/2022 às 09:58.
Atualizado em 18/09/2022 às 09:58
Mohammad Naser Yunessi precisou fugir do Afeganistão porque era funcionário do governo; hoje, vive com a esposa e dois filhos na Vila Minha Pátria, coordenada por entidade batista (Rodrigo Zanotto)

Mohammad Naser Yunessi precisou fugir do Afeganistão porque era funcionário do governo; hoje, vive com a esposa e dois filhos na Vila Minha Pátria, coordenada por entidade batista (Rodrigo Zanotto)

Quando as tropas americanas deixaram o Afeganistão e o grupo radical Talibã retomou ao poder, em agosto de 2021, Mohammad Naser Yunessi, de 35 anos, sabia que precisava deixar o país. Como funcionário do governo afegão, permanecer ali custaria sua vida, por isso decidiu fugir, junto com a esposa, Nazhez Yunmssi, de 33 anos, e os três filhos: primeiro para o Irã, depois para a Turquia e, então, para o Brasil. A filha mais velha, de 15 anos, precisou ficar com o irmão de Mohammad, na capital Cabul, com a promessa de que logo se encontrariam de novo. Hoje, acolhido na Vila Minha Pátria, coordenada pela Junta das Missões da Convenção Batista Brasileira, no município de Morungaba, ele conta os dias para a chegada da filha, o que deve ocorrer nas próximas semanas.

Mohammad é um dos 162 refugiados afegãos que foram acolhidos pela Junta das Missões na Vila Minha Pátria, em Morungaba. A entidade recebe imigrantes desde abril deste ano e, só na última semana, 31 deles que estavam no Aeroporto de Guarulhos chegaram ao local.

O espaço oferece alimentação, moradia e aulas para que os imigrantes possam ser inseridos na cultura brasileira e, então, encontrarem a independência.

A chegada desses grupos ao Brasil se dá pela facilidade criada pelo governo brasileiro, ainda em setembro do ano passado. Por meio da portaria interministerial nº 24/2021, foi estabelecida a concessão de vistos humanitários e autorização de residência por razões humanitárias para afegãos, apátridas e pessoas afetadas pela situação naquele país. Na prática, isso significa que cidadãos só precisam comprovar a nacionalidade afegã para ter o pedido de refúgio analisado pelo procedimento simplificado.

Segundo dados do Ministério da Justiça e Segurança, desde dezembro do ano passado até julho deste ano, 484 afegãos já solicitaram refúgio ao Brasil. Desse total, 61,5% são homens e 38,5%, mulheres. Mas no mesmo período, apenas 23 cidadãos afegãos foram reconhecidos como refugiados.

Embora o Brasil tenha sido pioneiro em auxiliar o refúgio, ele não foi eficiente em criar uma política de acolhimento. Por isso, muitos refugiados acabam chegando ao Brasil e permanecendo a esmo nos aeroportos, cabendo a iniciativas independentes acolher essas pessoas.

Foi nesse contexto que Mohammad e sua família conheceram o programa da Junta das Missões e foram acolhidos na Vila Minha Pátria há dois meses. “Ficamos cinco dias no aeroporto e fazia muito frio. Até que uma mulher nos chamou para a Vila Minha Pátria. Aqui, ganhamos uma casa, comida e roupas quentes. O povo brasileiro foi muito amoroso e nos recebeu com muito carinho. Foi aqui que nós entendemos o que é humanidade e amor”, disse Mohammad na língua farsi, sendo traduzido pela intérprete Mona Izadi dos Santos, de 35 anos.

Vila Minha Pátria

Inicialmente, a Vila foi criada para acolher um grupo de refugiados que chegou em abril deste ano. Ainda era dezembro do ano passado e a iniciativa não possuía um local próprio para acolher os imigrantes. O pedido veio por meio de uma ONG Internacional que atuava no Afeganistão antes da tomada do país pelos talibãs.

No Brasil, a Junta das Missões da Convenção Batista Brasileira procurou e encontrou um local, a seis quilômetros do centro de Morungaba. A fazenda, que pertencia a um casal, foi cedida aos missionários, que a adaptaram para ser uma comunidade na qual os imigrantes pudessem recomeçar.

Em abril, chegaram 53 cidadãos afegãos, mas no decorrer dos meses, a vinda de novos grupos fez com que a Vila acolhesse mais pessoas. Hoje, são 162 pessoas — número que cresceu, na última semana, com a chegada de 31 novos afegãos que estavam no Aeroporto de Guarulhos. Desse total, 69 tem idade inferior a 18 anos.

O espaço fica em meio a uma área verde e conta com piscina e campo de futebol. Tem 72 chalés, onde as famílias podem viver com seus filhos. Algumas dessas casas são usadas como salas de aula para ensino da língua portuguesa aos imigrantes.

As aulas são dadas a grupos, divididos por idade. Na manhã de ontem, a reportagem do Correio Popular conheceu o espaço e pôde ver as crianças, juntas, cantando músicas que ensinam o B-ABÁ. Numa das salas, uma menina de 9 anos, que chegou há dois meses, tem auxiliado como intérprete para novas crianças refugiadas, devido ao avanço que ela já possui na língua portuguesa.

“É um desafio muito grande porque a gente tem que acompanhar a etapa de desenvolvimento de cada criança. Tem quem esteja com a gente há dois meses e começou a silabação. Já há outro que está há quatro dias e já está lendo. Outros estão começando o traçado das letras e há outros com os quais trabalho apenas a coordenação motora. Mas vamos superando os desafios todos os dias, tentando nivelar, para que todos possam alcançar a pré-alfabetização e irem para a escola.”, aponta a coordenadora de educação das Missões Nacionais, Elenice Nazari, de 55 anos, que dava uma das aulas durante aquela manhã.

As aulas ocorrem tanto pela manhã quanto à tarde. Do total de crianças, 30 já estão regularmente matriculadas em escolas da rede municipal de Morungaba. Esse contato se torna importante para o desenvolvimento das crianças e sua imersão dentro da cultura local.

“Nosso programa funciona em três etapas”, explica a coordenadora da Vila Nossa Pátria, Fabíola Molulo Tavares, de 50 anos. “A primeira etapa é o acolhimento que eles têm aqui. Nesse período, eles vão conhecer nossa cultura e também nossa língua. Passados seis meses, vão para a interiorização, que é o momento em que deixam a Vila e vão para outras cidades, onde existem igrejas batistas.”

Nessa etapa da interiorização, os imigrantes, como explica Fabíola, contam com o apoio de membros da própria igreja para alugar uma casa e ter um trabalho. “A casa é alugada pelos próprios membros, até que as famílias tenham condições de se manter. Como também há muitos membros que são empresários, eles mesmos já buscarão garantir algum trabalho para essas famílias e, aí sim, chegar à última etapa, que é a independência”.

Embora a entidade seja ligada à Igreja Batista, a coordenadora do espaço nega que haja interferência nos valores religiosos dos afegãos, na maioria muçulmanos.

Cidade

A cidade onde está inserida a Vila tem quase 14 mil habitantes e possui uma longa avenida, onde funcionam os principais comércios. A chegada dos imigrantes mexeu com a curiosidade da população, que passou a encontrá-los em mercados e nos postos de saúde.

No trailer onde funciona o negócio da família de Hudson Quinto dos Santos, de 41 anos, eles são conhecidos pela filha do casal, que se chama Maria Liz, de 11 anos. Ela estuda em uma turma do 6º ano com uma afegã. Para Maria, é uma oportunidade de conhecer uma nova língua e vivenciar um intercâmbio cultural.

Segundo a Prefeitura de Morungaba, a adaptação dada pela comunidade às crianças permite que o ingresso na escola seja mais acessível. Já a partir do momento que são matriculadas, as crianças passam por uma readaptação com todas as crianças da turma durante um mês, período em que podem frequentar as aulas com intérprete.

Ainda em relação aos auxílios para os imigrantes, a equipe do Departamento de Ação e Inclusão Social disse que programa para o dia 23 de setembro um mutirão para inclusão das famílias no CadÚnico, a fim de que recebam o Auxílio Brasil e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), conforme critérios e perfil dos usuários.

O prefeito Marquinho Oliveira (PSD) acrescentou ainda que algumas empresas da cidade já manifestaram interesse em contratar os imigrantes.

Família tem esperança de um recomeço no Brasil

Um dos primeiros refugiados que chegou à Vila, Nasih Parshan, de 28 anos, já consegue formular algumas frases em português. Ele deixou o Afeganistão em novembro de 2021, junto com sua esposa, Homa Yousuf, de 26 anos, na época grávida de três meses do primeiro filho do casal. Ela estava terminando a Faculdade de Ciências Políticas e, devido às investidas dos talibãs, que cerceiam os direitos das mulheres, reprimindo inclusive a educação, Nasih temia pela vidadela.

Esse medo se somava ainda à impossibilidade de Nasih exercer sua profissão, de engenheiro eletrônico, e por isso, não pensou duas vezes em deixar o país com a esposa e irem para o Paquistão. A ida, no entanto, foi difícil. Nasih ainda se recorda das longas filas onde passavam o tempo todo em pé, na intenção de chegar a um novo país. Do Paquistão, eles vieram para o Brasil em abril deste ano. Homa já estava com sete meses. “Já havíamos passado por muita coisa. Primeiro, nossa caminhada a pé e as longas horas que esperamos. Aquilo já havia me deixado preocupado. Quando decidimos vir ao Brasil, me preocupei porque ela já estava de sete meses e tinha muito medo de avião. Não sabia o que poderia acontecer”, recorda-se.

Foi só quando chegaram ao Brasil que ele disse ter sentido paz, depois de muito tempo. Esse sentimento aumentou há dois meses, quando nasceu Salar Parshan, o primeiro filho do casal. “Isso nos trouxe esperança. O nascimento dele, com apoio da Vila, foi muito importante. Ele ganhou roupas e teve todo o cuidado. Meu filho agora é brasileiro e sei que aqui iremos construir uma vida melhor”, frisa.

Crianças têm aulas para aprender português e se inserir na cultura brasileira (Rodrigo Zanotto)

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