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Recenseador do IBGE se depara com resistência e desinformação

Desinteresse em atender aos pesquisadores dificulta a aplicação do Censo 2022

Isadora Stentzler/ [email protected]
11/08/2022 às 14:48.
Atualizado em 11/08/2022 às 15:21
O recenseador Murilo Augusto Oliveira de Paulo Moraes prestou o concurso e foi aprovado em 2º lugar, por isso, pode escolher o local de atuação e escolheu o bairro Vila Formosa, onde cresceu

O recenseador Murilo Augusto Oliveira de Paulo Moraes prestou o concurso e foi aprovado em 2º lugar, por isso, pode escolher o local de atuação e escolheu o bairro Vila Formosa, onde cresceu

"O que é IBGE?", perguntou uma senhora de cabelos brancos - encaixando seu rosto no vão da porta entreaberta de sua casa - ao recenseador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Murilo Augusto Oliveira de Paulo Moraes, de 20 anos, na manhã de quarta-feira (10), no bairro Vila Formosa. Ele havia ido à casa da senhora e conversado com um dos parentes, no dia anterior, agendando a entrevista da coleta dos dados do Censo 2022 para a manhã de quarta-feira (10) (10). No entanto, ela não é a única a demonstrar desconhecimento sobre o trabalho que está sendo realizado ou mesmo sobre o instituto. O vizinho ao lado dela, Herculano Rebouças, recebeu o jovem comentando que "esse tal de IBGE deve ser coisa para quem é inteligente". 

Em 10 dias, desde o início da aplicação do Censo 2022 pelo IBGE, recenseadores se deparam com os desafios que surgem na tarefa de aplicar os questionários básicos e de amostragem junto à população. Os básicos podem ser respondidos em até 5 minutos, já os de amostragem, aplicados em 5% das residências de uma determinada região, podem levar até 20 minutos e são mais detalhados.

Além da falta de conhecimento sobre o que é o censo ou o próprio IBGE, ameaças e barreiras impostas por síndicos de condomínios impedem que os recenseadores cheguem até as pessoas.

A reportagem do Correio Popular acompanhou dois recenseadores quarta-feira (10) no município. Um deles, no bairro Vila Formosa, uma região periférica que sofre com o problema de tráfico de drogas, e o outro, no Cambuí. Os desafios aparecem em ambas as pontas, mas demonstram que eles mudam de acordo com a classe social. 

Ameaças na rua 

Murilo Augusto Oliveira de Paulo Moraes prestou o concurso em abril para ser recenseador do IBGE. Ele recém havia sido aprovado em quatro universidades federais para cursar Medicina, mas, como todas as universidades ficavam em regiões muito distantes, a falta de condições para se manter enquanto estivesse estudando, fez com que permanecesse em Campinas. Planejou, então, juntar recursos para, mais adiante, concretizar o sonho e viu no concurso para o recenseamento uma oportunidade.

Ele conta que foi aprovado em 2º lugar. Com a possibilidade de escolher o local de atuação, optou por iniciar o trabalho no bairro onde cresceu, no Vila Formosa. A região fica em um lado periférico de Campinas, onde moradias dividem espaço com o tráfico de drogas. 

Na segunda-feira, dia 1º, quando os recenseadores começaram a ir para as ruas, não demorou para que essa situação fosse um empecilho para ele. "Tem casas que são usadas para a gestão do tráfico e essas pessoas não querem ver a ‘cara do Governo’. E eu estou representando o Governo ali. Cheguei em uma residência e o morador disse que não queria realizar o Censo. Agradeceu e me desejou bom trabalho. Segui fazendo a pesquisa em outras casas até que ele tentou me expulsar do local. Não queria que eu fizesse o meu trabalho nem na casa dele e nem nas outras. Saiu na rua e me xingou", contou. 

Além dessa situação, Moraes convive com problemas que são típicos dessas regiões. A reportagem acompanhou na manhã de quarta-feira (10)a rotina dele, que começa às 6h, quando se prepara para ir à academia. Por volta das 9h, ele deixa a sua casa e começa o trabalho na rua. Ontem, o dia amanheceu chuvoso e com um vento atípico. Devido a isso, Moraes colocou uma calça de moletom, vestiu o colete do IBGE, que carrega seus dados e uma foto que o identifica ao lado direito da peça, pegou o aparelho pelo qual é feita a pesquisa e pendurou no antebraço um guarda-chuva para lhe proteger da instabilidade do tempo.

Quando encontrou a reportagem, eram quase 10h. Ele tinha duas casas com horário agendado. Isso porque, no primeiro contato, ou a pessoa não estava ou quem estava não conseguia passar as informações solicitadas. "Há muitas perguntas que as pessoas sequer entendem", explica Moraes. "No treinamento, somos orientados a ler do jeito que está escrito para evitar o erro de interpretação. Mas muitos não sabem interpretar. Então, preciso adaptar as perguntas, de modo que eles possam entender. Além disso, outros desconhecem que o trabalho de Censo está em andamento. Um dos meios de divulgação deste trabalho foi durante o horário nobre da TV. Mas quem é que assiste nesse horário? Aqueles que não estão trabalhando. O que não é o caso da periferia. A rotina aqui é complicada", aponta. 

Para dar conta da região, o jovem diz que chega a trabalhar até às 20h, a fim de conseguir encontrar as pessoas em casa e aplicar a pesquisa. 

Falta consciência

A quase 8 quilômetros dali, na Rua Major Solon, no Cambuí, a recenseadora Jade Miranda Becari, de 24 anos, coloca a sua mochila nas costas e tenta, pela 10ª vez, o acesso aos moradores do Edifício Santa Cruz.

Diferentemente da periferia, Jade encontra ali pessoas que conhecem o trabalho do censo, mas elas desconfiam dos trabalhadores e não os atendem. "Todo dia é a mesma coisa", lamenta, logo após mais uma tentativa frustrada, por volta das 15h30 de quarta-feira (10). 

"Venho aqui de manhã, à tarde, digo ao porteiro que tenho que falar com a síndica, peço o telefone, mas ele alega que não pode passar. Claro, ele é um funcionário e está cumprindo uma ordem. Então, venho depois, às 18h, que é o horário em que a síndica chega e falo tudo de novo para o outro porteiro, que me responde que a síndica não permite que ele interfone em sua casa quando ela chega do trabalho, porque diz estar muito cansada. Mas eu também estou trabalhando e fico cansada! Já deixei meu contato três vezes e ninguém me retorna."

Em condomínios, a atuação dos recenseadores depende muito da boa vontade dos síndicos. Em outro prédio, Jade pediu autorização para deixar bilhetes nos elevadores, informando o dia e horário em que iria, de modo que as pessoas a atendessem. Nesse caso, os moradores saem dos seus apartamentos e encontram os recenseadores no portão ou os chamam para subir. 

Entretanto, há lugares que nem com essas alternativas o trabalho consegue ser executado. Jade recorda que, em um prédio que foi, um morador desceu e, depois que respondeu ao censo, ficou ao lado dela, acompanhando toda a pesquisa. "Ele conversou comigo, fez um milhão de perguntas e, depois que fui discar para outros apartamentos, pediu para acompanhar o trabalho. Ficou comigo até eu ir embora. Cerca de 20 minutos do meu lado. Não me ofereceu risco, mas me senti intimidada", relatou. 

Todos os recenseadores usam uniformes e seus dados podem ser consultados em uma plataforma do próprio IBGE. No colete, está visível o nome completo e o número da matrícula. Eles usam bonés com a inscrição Censo.

Para Jade, é necessário que haja mais colaboração popular na resposta ao trabalho do Censo, a fim de que os dados possam ajudar a gerir as políticas públicas para os próximos anos.

O que é e para o que serve o Censo Demográfico 

O Censo Demográfico é uma pesquisa realizada em todo o território nacional a cada 10 anos e a sua última edição foi em 2010. Devido à pandemia da covid-19, o levantamento não foi realizado em 2020 e cortes no orçamento de 2021 provocaram um novo adiamento.

O Projeto da Lei Orçamentária de 2021 chegou a prever R$ 2 bilhões para a realização do trabalho de recenseamento, mas a verba foi reduzida durante a tramitação e restaram apenas R$ 53,3 milhões. O corte de recursos levou o IBGE a cancelar a realização do censo naquele ano, visto que a verba era insuficiente até para aplicar o treinamento dos técnicos, sendo possível realizá-lo apenas agora, em 2022, quando houve incremento no orçamento. 

Segundo informações do próprio IBGE, os resultados obtidos por meio da realização do Censo Demográfico permitem traçar um retrato abrangente e fiel do País.

Ele ainda produz informações atualizadas e precisas, fundamentais para o desenvolvimento e implementação de políticas públicas e para a realização de investimentos, tanto do governo quanto da iniciativa privada. 

Devido à demora da aplicação do Censo, há um déficit de recenseadores. Em Campinas, onde seriam necessários 1.126 recenseadores, há menos da metade: apenas 522 para uma população estimada em 1.223.237 habitantes - ou o mesmo que dizer que há um recenseador para casa 2.343 habitantes.

Um processo seletivo está em andamento para a contratação temporária de mais 604 pessoas. O prazo para as inscrições terminou dia 3 deste mês e o processo está na fase de treinamentos dos candidatos. Eles passarão por uma avaliação após o término das aulas e, caso sejam aprovados, serão contratados, integrando o contingente de recenseadores. 

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