SUSTENTABILIDADE E BELEZA

Projeto transforma madeiras de descarte em objetos únicos

Marceneira autoditada confere novas formas, usos e sentidos a materiais que são encarados como lixo pela maioria das pessoas

Cibele Vieira
02/09/2023 às 20:27.
Atualizado em 02/09/2023 às 20:27
Para dar concretude a seu projeto, Fabiane Teixeira de Jesus, que é marceneira autodidata, desenvolveu técnicas específicas para trabalhar com as madeiras de descarte (Alessandro Torres)

Para dar concretude a seu projeto, Fabiane Teixeira de Jesus, que é marceneira autodidata, desenvolveu técnicas específicas para trabalhar com as madeiras de descarte (Alessandro Torres)

Muito mais do que trabalhar com madeira de forma sustentável, o projeto "Ateliê Marceneira" tem resgatado a autoestima e o equilíbrio das pessoas. E isso é feito por meio da marcenaria que usa uma matéria prima diferente: as madeiras de descarte e fora de padrão. É conduzido pela doutora em Linguística Fabiane Teixeira de Jesus, que se tornou uma marceneira autodidata por pura necessidade. Enquanto desenvolvia suas pesquisas, sentiu que precisava fazer uma atividade física e mental que a liberasse da pressão intelectual.

Aliando isso à necessidade de mobiliar a casa e com poucos recursos, ela começou a resgatar madeiras descartadas para construir os próprios móveis, descobrindo nessa atividade um resgate interior e muita beleza. "O modo como enxergamos o mundo também afeta o lugar que ocupamos nele. A superfície captada pelo nosso olhar mostra como as coisas estão, mas enxergar o que as coisas são é outra história. Assim é com as madeiras e, também, com as pessoas. O lado de fora da madeira de descarte, que parece não ter valor, não diz o que ela é: diz o que fizeram com ela", observa Fabiane.

Aos poucos esse trabalho - que tinha um cunho pessoal - acabou assumindo um papel importante em sua vida e isso a conduziu a abertura do ateliê, que é fruto da pesquisa de pós-doutorado realizada pela artista na Universidade de Franca (UniFran), com o propósito de construir formas de sociabilidade sustentadas pela noção de parceria. Quando voltou a Campinas, ela instalou o "Ateliê Marceneira" (@ateliemarceneira) no centro de Barão Geraldo e é nesse espaço rústico que ela incentiva pessoas a desenvolverem outras habilidades, aliadas a muita criatividade. Parte desse trabalho pode ser conhecido na exposição "A MARcenaria como DescARTE", que fica aberta à visitação gratuita na Casa do Lago da Unicamp até 17 de setembro.

ECONOMIA CIRCULAR

O trabalho desenvolvido por Fabiane no ateliê está alinhado com a proposta de Economia Circular, substituindo o conceito de 'fim de vida' pelo 'início de uma nova história'. Com isso, além dos impactos ambientais que ajuda a diminuir - ou mesmo a evitar - também contribui expandindo a finalidade desse modelo econômico. "Além dos processos de reutilização, reciclagem e reúso previstos neste sistema, mostramos que há também outro processo possível, o de ressignificação", explica a artista.

A proposta de "A MARcenaria com descARTE" é tratar as marcas que tornam madeiras fora de padrão (com pouco ou nenhum valor) como características que as fazem únicas (peças exclusivas). Os veios, nós, diferentes cores e densidades de fibras não são vistos pela artista como um defeito a ser ignorado, ou para construir móveis baratos, ou a ser evitado, e sim para construir móveis mais valorizados no mercado por terem design diferenciado. Ela ressalta que "novos e outros sentidos são possíveis". "É assim que, além de móveis e objetos, construímos, no Ateliê Marceneira, metáforas de vida".

Fabiane comenta que desenvolveu técnicas específicas para trabalhar esses aspectos que diminuem/apagam o valor das madeiras fora de padrão/únicas, invertendo esse efeito. "A frase clichê 'do lixo ao luxo' pode ser materializada na forma de móveis e outras peças de alto padrão estético (desejáveis) e estrutural (duráveis). Desbastar a madeira é livrar sua superfície daquilo que não é dela: as marcas de sujeira, do tempo, da serra. E descobrimos uma madeira única, com muito valor!", ressalta.

Ela conta ainda que muitas das madeiras que têm veios, nós e cores diversas em si são compradas para fazer paletes, por serem mais baratas. Com o tempo de uso, elas vão perdendo ainda mais seu valor, até serem descartadas. Para a artista, é preciso compreender que a aparência externa nada convidativa dessas madeiras pode ser lapidada. E ela adota o design biofílico, que incorpora nos "defeitos" da madeira outros elementos da natureza, como plantas, o que dá o aspecto artístico das peças.

A artista acrescenta ainda que pensa, como analista, em processos de significação, como os sentidos são construídos. "Aqui no ateliê eu pego essa madeira, significada como um objeto sem valor, desenvolvo e crio técnicas, muitas vezes exclusivas, para trabalhar esse material sem padrão para que se transforme em peças e móveis com um acabamento que comporte suas características", explica a artista.

Móveis produzidos por Fabiane (Alessandro Torres)

Móveis produzidos por Fabiane (Alessandro Torres)

COMPARTILHAR EXPERIÊNCIAS

Como marceneira autodidata, Fabiane desenvolveu equipamentos, técnicas e soluções especificas para o trabalho em madeira de descarte e escreveu um livro que está sendo editado e deve ser publicado em breve pela editora Pangia. A ideia, relata, é apresentar sua forma de trabalhar a marcenaria para leigos, além de servir de apoio para os ex-alunos. Ali ela desenvolve ideias de desgaste da madeira, com lixa e calor, para atingir o ponto ideal para trabalhar o material, inclusive a pintura com fogo, por exemplo. Também mostra suas pesquisas com resinas naturais e outros materiais próprios para uso em madeiras de descarte, além de outras técnicas que segue explorando.

Fabiane trabalha principalmente com cursos para ensinar aos outros sua arte e suas técnicas, já que esse tipo de madeira, por ser fora de padrão, não se presta às técnicas da marcenaria tradicional. Para ela, a jornada através da marcenaria é mais importante do que o resultado: "meu público é formado por pessoas que querem construir algo usando o corpo, o movimento. O curso é menos sobre o resultado e mais sobre o processo. Mas cada um sai, no fim, com uma peça única e exclusiva que queria construir. Os alunos aprendem enquanto estão produzindo", diz. Desta forma, ela faz "uma articulação mais explícita entre conhecimentos produzidos academicamente e a vida cotidiana".

SAÚDE FÍSICA E MENTAL

A marceneira ensina não só sobre aspectos técnicos da madeira e conceitos de sustentabilidade, mas também sobre postura, respiração, foco e movimentação corporal durante a criação. Como ela própria já se sentiu, muitos alunos chegam com dificuldade para manter o foco, irritabilidade, ansiedade e insegurança. E à medida que se dedicam a descobrir o melhor da madeira, de certa forma também trabalham interiormente seus próprios valores, em uma relação diferenciada com o corpo e o trabalho.

Ela relata que abraçou a perspectiva em busca do bemestar de forma mais ampla - inclusive sensorial - e avançou na estética do design biofílico que constrói ambientes usando elementos da natureza de maneira harmoniosa. A artista comenta que tudo isso exige uma entrada do sujeito, para compor um desenho ou para resolver um problema de uma fibra fora de padrão, por exemplo, demandando uma relação com o corpo, com a mente, com qualidade de presença. "Avancei inclusive nas técnicas de meditação ativa, porque acredito que aquilo que a gente sente e pensa se materializa no que a gente faz".

Fabiane Jesus é mestre em Análise do Discurso e doutora, na mesma área, pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp / Université Sorbonne Nouvelle. Seu projeto "Ateliê Marceneira" funciona como polo de difusão de técnicas para o trabalho com madeiras de descarte e, também, como opção de atividade saudável para melhorar a saúde física e mental. Ela posta detalhes desse trabalho no Instagram @ateliemarceneira e está concorrendo a um edital da Fapesp - Fundação de Apoio à Pesquisa de São Paulo - em parceria com o Sebrae, para ampliar esse trabalho com novas abordagens e testes com resinas vegetais biodegradáveis.

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por