Detenta com o livro de poesias que escreveu: “ Hoje, meu corpo está preso, mas a minha mente está livre” (Gustavo Tilio)
“Caro amigo, saudações!”, começou Silvana*, na carta que escreveu dentro da prisão e que foi premiada com o 1º lugar em um concurso realizado dentro da Penitenciária Feminina de Campinas no ano passado. “Espero encontrá-lo bem, com saúde e muita paz. Quanto a mim, sinto-me hoje uma mulher duas vezes isolada. Uma melancolia que me toma, agora, me faz querer desabafar contigo. Ouça-me com carinho, se puder”.
A tônica do texto acompanha o primeiro ano da pandemia e sua primeira vez dentro do cárcere, na primavera de 2020. Nada foge ao texto, nem os dias de isolamento devido ao contágio do vírus causador da covid-19, nem seus temores, que fazem o leitor engolir a seco a experiência de quem vive duas vezes isolada. “E as noites intermináveis, meu querido! Tumultuosas horas de sono, quando meu espírito escapava, célere, buscando liberdade. Após ser liberada daquele isolamento sinistro, corri para o pátio e gritei, como Beethoven no auge da amargura: ‘Esperança, você transforma coração em aço!’ Você consegue imaginar o tamanho do meu sofrimento?”
O texto de Silvane integra uma das 22 produções presentes no livro “Os poemas não têm algemas”, nascido do projeto #dinamic@r_seres, dentro da Penitenciária Feminina de Campinas. A iniciativa, que tem sete anos, contou com apoio, ano passado, da Companhia das Letras, do Governo de São Paulo e da Fundação Prof. dr. Manoel Pedro Pimentel (Funap), que permitiu que as produções ganhassem uma obra física.
Com o tema central “duas vezes isolada”, as detentas puderam criar poemas, contos, cartas, desenhos e músicas, que foram submetidas a uma comissão que premiou as primeiras colocadas.
Mais do que uma iniciativa cultural, o projeto, que nasceu do sonho de uma detenta, em 2015, extrapola os muros do cárcere e permite alívio às detentas ante os muros cinzas da prisão.
Aos 30 anos, “Fófis”, como pede para ser chamada, está há três anos e três meses na penitenciária. Ela conheceu o crack aos 17 anos e, desde então, viu sua vida tomar um rumo que não almejava. “Meu pai batia na minha mãe e eu sonhava em ser diferente. Mas aí eu conheci o crack”, e chora ao se lembrar. “Hoje, sei que estar liberta é estar liberta dos meus vícios.” Fófis se apresenta à reportagem com os cabelos delicadamente trançados e maquiada. Após a dura lembrança, esboça logo um sorriso e revela o porquê. “Sempre gostei das artes, mas também sempre me senti insegura. Por ter sofrido muito bullying, tinha receio de me expressar. Com o projeto de poesia, encontrei um espaço para poder criar. Hoje, meu corpo está preso, mas a minha mente está livre.”
Fófis ganhou o primeiro lugar na categoria poesia, com o poema “Descobertas”. Nele, ela fala o que o isolamento a fez perceber. “Descobri que a verdade liberta quem realmente aposta nas possibilidades. Possibilidades, de um mundo melhor, unido, mesmo distante. ‘Iguais’ em meio às diferenças”.
Além do poema, ela recebeu menção honrosa por uma música. À reportagem, ela solta uma doce e afinada voz para cantar sobre a liberdade que disse conhecer no cárcere e que hoje a permite sonhar com um mundo novo fora das grades. “Não conto meu tempo aqui dentro para não me desanimar. Mas quando sair daqui quero estudar, fazer uma faculdade. Quem sabe Letras ou Pedagogia. Quero poder ensinar.”
Como ela, Eliane*, de 42 anos, outra detenta que também integra o projeto, disse que a arte dentro da penitenciária tem a ajudado a passar os dias. “Era cabeleireira e sempre gostei de escrever. Até hoje mantenho um diário. Nos meus textos, consigo colocar o que sinto. Falo do futuro, da saudade e do tempo perdido.”
Segundo a monitora de educação da Funap, Elisande de Lourdes Quintino de Oliveira, há uma potência na produção cultural das detentas que faz com que o projeto tenha resultados promissores. Não à toa, ele será exemplo para outras unidades do Estado de São Paulo, a ser implementado, gradualmente, pela Funap.
Elisande acompanha o projeto desde o seu nascimento, em 2015, quando, a partir de círculos de leitura, uma detenta propôs a realização de concursos. Desde então, foram três e, para este ano, a unidade já trabalha para um quarto, em que o tema se volta ao Dia das Mães.
Hoje, 20 detentas integram o clube de leitura, o que permite a remissão de pena por meio da leitura, e outras cerca de 60 participam das oficinas das produções culturais. A própria Elisande chegou a usar o projeto para sua tese de mestrado, compreendendo mais do impacto dessas ações.
São projetos que nascem com ajuda de apoiadores, oficineiros e incentivadores. Mas, para quem está atrás das grades, é uma oportunidade de encontrar algo que não foi lhe entregue antes dos muros. “Algumas mulheres chegaram a ser alfabetizadas por meio desse projeto. E o mais importante é dar voz a essas mulheres, porque são praticamente esquecidas. A gente vê que muita coisa acontece no presídio masculino, mas, no feminino, são poucas. Então, conquistar esse espaço para que elas pudessem ter voz e relatar o que acontece a elas é importante. Essas mulheres perderam mais que os homens. Perderam vínculo com os filhos, com a família. Por isso,precisam de uma válvula de escape para falar sobre como elas estão vivenciando este momento da vida delas. E esse projeto é uma coisa pequena, interna, mas que tem uma grande potência na vida dessas mulheres.”