AÇÃO INÉDITA

Programa da Unicamp já conta com 19 refugiados

Expectativa na academia é que a iniciativa seja ampliada e ganhe caráter institucional

Ronnie Romanini/ [email protected]
11/11/2022 às 09:03.
Atualizado em 11/11/2022 às 09:03
Sexta-feira (11) é o último dia da 1ª edição do Seminário Internacional Refúgio Acadêmico, evento realizado na Unicamp (Rodrigo Zanotto)

Sexta-feira (11) é o último dia da 1ª edição do Seminário Internacional Refúgio Acadêmico, evento realizado na Unicamp (Rodrigo Zanotto)

Ainda no ano passado, a Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM/ ACNUR), a Diretoria Executiva de Direitos Humanos e o Gabinete da Reitoria - todos da Unicamp - iniciaram a discussão de uma ação inédita: o Programa Refúgio Acadêmico, lançado neste ano. O programa se propõe a acolher refugiados de países que passam por algum tipo de crise humanitária e pessoas que correm risco nos seus países de origem. Entre as centenas de estudantes estrangeiros na graduação e mais centenas na pós-graduação, 19 detém o status de refugiado, oriundos de países como Síria, Afeganistão, Congo, Gana, Irã, Palestina e Rússia.

A ideia é que o programa de acolhimento possa ser ampliado e ganhe caráter institucional. Por meio dele, esses estudantes que deixaram o país de origem pelos mais variados motivos podem vislumbrar um recomeço - ou uma continuidade - nos estudos, conquistando um diploma, profissão e a oportunidade de reconstruir suas vidas em um lugar diferente, visto que em seus países não há condição para tal.

A presidente da Cátedra Sérgio Vieira de Mello/Unicamp, Ana Carolina Maciel, explicou que a ação do Programa Refúgio Acadêmico tem viés humanitário, porém, a possibilidade de convivência com culturas e saberes distintos ajuda a própria universidade a expandir os seus horizontes. Para ela, é uma excelente oportunidade de troca.

"Não é de maneira alguma uma questão de caridade. Partimos de uma questão humanitária, mas também ganhamos muito com a vinda dessas pessoas. Acredito que, por intermédio da universidade, do acesso ao ensino público de qualidade, é possível colocar essas pessoas em outro patamar, de modo a se reinserirem na sociedade, com uma nova vida, profissão, diploma. Uma situação em que a pessoa pode, enfim, reconstruir a sua vida, uma vez que nos seus países não há condições para isso".

Ela considera essas crises humanitárias e o deslocamento da população afetada como o mal crônico do século XXI.

Para quem vem de um país de língua portuguesa, a primeira adaptação necessária é mais fácil. Porém, aqueles que chegam de países que sequer tem familiaridade com o português, uma língua que não é tão falada no mundo como o inglês, espanhol, francês, esse é o primeiro desafio a ser superado, como foi no caso de Nour Koeder, sírio de 31 anos que estuda Artes Cênicas na Unicamp e mora há oito anos no Brasil.

"Estou na Unicamp desde 2020, mas o começo no Brasil foi difícil. Cheguei em São Paulo e não conhecia nada. Como não sabia falar o português, tive que, inicialmente, trabalhar com qualquer coisa, em qualquer setor, apenas para aprender um pouco da língua, fazer contatos e começar a procurar a minha área. Eu sou estilista, formado em moda na Síria."

Depois de aprender a falar português com os trabalhos que conseguia, Koeder conheceu uma turma ligada ao teatro - algo que sempre quis fazer, mas não podia na Síria, devido à guerra - e começou a trabalhar como figurinista. Ele veio sozinho para o Brasil, enquanto a família foi para a Jordânia. Além da dificuldade com a língua e emprego, os refugiados que conversaram com a reportagem, destacaram o estranhamento com a diferença cultural. Por exemplo, entre Síria e Brasil, que impactou muito Koeder. Depois de oito anos no Brasil, ele se considera adaptado.

E.J. é um estudante que já residia no Brasil, mas quando voltou ao seu país de origem - não identificado por questões de segurança - descobriu que, por lá, a sua integridade física estava em risco. Ele decidiu retornar ao Brasil para trabalhar e cursar a faculdade até a situação passar.

Próximo à pandemia de covid-19, ele pediu o refúgio e descobriu o programa de acolhimento acadêmico da Cátedra. E.J. confessa que até gosta de viver um dia de cada vez, sem expectativas a longo prazo, mas sente-se bem por pertecer a uma universidade que o acolhe neste momento difícil. "É um programa que é humanista acima de tudo. Eu moro em Barão Geraldo, tenho acesso ao refeitório, posso estudar à vontade. Então, tenho apenas que agradecer e enaltecer este trabalho que está sendo feito." 

Pilos Tsasa Malavu, de 49 anos, veio de Angola e faz graduação em Engenharia Civil na universidade. Ele chegou com a esposa e já tem um filho brasileiro com ela. Saiu por problemas políticos do país de origem e veio ao Brasil, que já conhecia e escolheu para se refugiar por gostar do povo. Porém, ele também sentiu dificuldade em encontrar emprego. Ele trabalhava na área da construção civil em Angola, era técnico em edificações, no entanto, não conseguiu trabalho e mencionou que muitos dos contratantes sequer sabiam o que era o protocolo de refúgio.

Ao contrário de Koeder e E. J., Malavu não tem dúvidas e revelou que ainda pretende voltar para a sua terra natal. "Acho legal o programa da Cátedra, que está ajudando os refugiados, abrindo mais oportunidades. É a melhor coisa que está acontecendo para a gente. A minha visão é um dia voltar para Angola e ajudar o meu povo com o conhecimento que estou recebendo aqui."

A presidente da Cátedra destacou outras ações, além do acolhimento aos refugiados. Na Unicamp, por exemplo, há fomento a pesquisas voltadas ao tema do refúgio. Existe o claro interesse em dar publicidade aos dramas vividos por aproximadamente 100 milhões de pessoas no mundo, 62 mil no Brasil, que passam por essa situação.

"Temos mais familiaridade com dramas humanitários distantes no tempo. As pessoas conhecem melhor, têm acesso aos testemunhos dos sobreviventes desses grandes dramas. Atualmente, embora estejamos conectados, com tanto acesso à informação, parece que esse tema fica restrito a um público mais especializado, ativista. Enquanto conversamos, há pessoas vivendo confinadas em campos de refugiados. Pessoas morrendo nas travessias, afogando-se nos rios na transposição do México para os Estados Unidos. Pessoas encarceradas, crianças desacompanhadas atravessando fronteiras. É uma situação tão dramática que a universidade tem que se oferecer como uma possibilidade. Isso não vai resolver o problema do refúgio no mundo, mas, se pensarmos em políticas, se acolhermos alunos e colegas nessa situação, acredito que seja uma excelente colaboração para tentarmos, de alguma forma, equacionar esse drama humanitário."

A tendência, inclusive, é a de que o programa possa estabelecer ainda mais parcerias. Dentro da Unicamp, ele é tratado como um programa institucional, não restrito apenas à Cátedra. O Centro de Ensino de Línguas (CEL), da Unicamp, por exemplo, acompanha os alunos com cursos de português como língua de acolhimento.

Ana esclareceu que toda a universidade está acionada para isso e conta com o apoio incondicional da reitoria, o que ela descreveu como um movimento muito bonito e significativo. Os refugiados têm acesso, dentro das políticas de permanência estudantil, a bolsas, restaurantes universitários, sistema de moradia, atendimento ambulatorial e hospitalar - incluindo psicológico e psiquiátrico.

Pioneira no programa de refúgio acadêmico, outras universidades inspiraram-se na Unicamp. A ideia é que as parcerias continuem, inclusive com a participação privada, para que haja cada vez mais expansão.

Em outros momentos, a Unicamp também mostrou a sua vocação para acolher academicamente refugiados, como ocorreu em 1970 com os professores que fugiam de perseguições políticas, principalmente da ditadura argentina, e, em 2010, ao receber estudantes, docentes e pesquisadores refugiados do Haiti, após a crise ocasionada por um forte terremoto que vitimou cerca de 300 mil pessoas.

Pessoas em situação de refúgio, apátridas, indocumentados podem se candidatar a esse processo facilitado de ingresso que há na Unicamp. O candidato apresenta a documentação, que passa por uma tramitação e avaliação. Ele também escolhe o que pretende cursar. Se aprovado, passa a ser um aluno regular, com acesso às políticas de permanência supracitadas.

O programa contou com o auxílio da Fundação de Amparo à Pesquisa (Fapesp), que disponibilizou R$ 20 milhões em bolsas, por meio de um edital voltado a pesquisadores em situação de risco.

I Seminário Internacional

Nesta sexta-feira (11) é o último dia da 1ª edição do Seminário Internacional Refúgio Acadêmico, organizado pela Cátedra Sérgio Vieira de Mello e pela Diretoria Executiva de Direitos Humanos da Unicamp, onde acontece o evento. Ainda participam do seminário o Institut Convergences Migrations (ICM) e o Programme PAUSE. A iniciativa de realizar o evento foi uma colaboração de pesquisadores do Brasil e da França, que pretendem fortalecer o papel das universidades no enfrentamento às crises migratórias da atualidade.

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