EM DOZE ANOS

Prefeitura de Campinas resgata quatro mil crianças do trabalho infantil

Secretária Vandecleya Moro chama atenção para gravidade desse drama social

Luis Eduardo de Sousa/ [email protected]
26/09/2023 às 09:16.
Atualizado em 26/09/2023 às 09:21
Adolescente vendendo balas em cruzamento de Campinas; especialistas alertam para os sérios problemas físicos e psicológicos que o trabalho infantil pode acarretar, resultando em distúrbios no desenvolvimento, tais como crescimento inadequado de pernas, braços, cabeça, e, no caso das meninas, dos seios, bem como irregularidades na menstruação (Kamá Ribeiro)

Adolescente vendendo balas em cruzamento de Campinas; especialistas alertam para os sérios problemas físicos e psicológicos que o trabalho infantil pode acarretar, resultando em distúrbios no desenvolvimento, tais como crescimento inadequado de pernas, braços, cabeça, e, no caso das meninas, dos seios, bem como irregularidades na menstruação (Kamá Ribeiro)

Ao caminhar pelo calçadão da Rua 13 de Maio, o coração do comércio de rua em Campinas, é uma cena comum encontrar adolescentes anunciando em voz alta: "piercing, tatuagem, brinco e alargador", uma estratégia utilizada para atrair clientes aos inúmeros estúdios que oferecem esses serviços na região. Elisafe Santos, hoje um estudante de 21 anos de Gestão Pública, fez parte desse grupo. Ele teve uma infância difícil junto com sua família e chegou a enfrentar privações alimentares. Iniciou sua trajetória profissional aos meros nove anos de idade. No entanto, hoje, Elisafe não só encontrou emprego em uma empresa multinacional, mas também está realizando seu sonho de frequentar a faculdade, cursando o primeiro ano.

Elisafe faz parte de um universo de 4.098 crianças e adolescentes que foram resgatados do trabalho infantil em Campinas nos últimos 12 anos, de acordo com os dados fornecidos pela Secretaria de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos de Campinas (Smasdh). A secretária da pasta, Vandecleya Moro, destaca a importância desse marco, embora também revele uma das faces mais "sombrias" dentre os diversos problemas sociais que a cidade enfrenta.

Esses dados se referem ao número de abordagens e encaminhamentos realizados pelo Programa "Construindo uma Vida Melhor", conduzido pela Smasdh. A marca foi alcançada em agosto e representa uma média de 341 crianças retiradas do trabalho infantil a cada ano nas ruas, empresas e outros ambientes da metrópole. Isso significa que ocorre praticamente uma intervenção por dia, considerando que o 12º ano do programa ainda está em andamento, tendo sido iniciado em novembro de 2011.

Dados recentes do Ministério Público do Trabalho (MPT) destacam a persistência do problema. De acordo com o órgão, ao longo de todo o ano de 2022, foram apresentadas ao MPT 92 denúncias relacionadas ao trabalho de crianças e adolescentes. Em 2023, esse número quase foi igualado, levando em consideração os registros até o momento, com 91 denúncias.

É lamentável que as crianças e adolescentes envolvidos nesse contexto muitas vezes abandonem sua educação e enfrentem as repercussões do trabalho infantil ao longo de suas vidas adultas, podendo desenvolver problemas físicos e psicológicos graves. O médico pediatra Dr. Gabriel Franceschi Marchior esclarece esses aspectos preocupantes.

"O trabalho nessas faixas etárias pode ocasionar sérios problemas tanto físicos quanto psicológicos. No aspecto físico, é comum que as crianças apresentem distúrbios no desenvolvimento, tais como crescimento inadequado de pernas, braços, cabeça, e, no caso das meninas, dos seios, bem como irregularidades na menstruação. No que diz respeito aos problemas psicológicos, esses jovens, já na fase adulta, muitas vezes enfrentam a vida com amargura, dificuldades na resolução de problemas pessoais e apatia", explica Marchior.

O especialista também destaca que é frequente a manifestação de problemas comportamentais quando essas crianças ou adolescentes são expostos a ambientes inadequados, como as ruas, por exemplo. Isso pode se manifestar na forma de irritabilidade aumentada e dificuldade nos relacionamentos interpessoais.

Felizmente, Elisafe não sofreu essas sequelas, mesmo tendo iniciado seu trabalho na infância. Ele não abandonou seus estudos e atividades correspondentes às suas fases de desenvolvimento. Foi por meio do programa "Construindo uma Vida Melhor" que ele conseguiu deixar as ruas para trás.

Elisafe Santos, de 21 anos, começou fazendo bicos ainda criança nas ruas de Campinas e hoje, graças ao suporte da Prefeitura de Campinas, encontrou emprego em empresa multinacional e frequenta faculdade (Kamá Ribeiro)

Elisafe Santos, de 21 anos, começou fazendo bicos ainda criança nas ruas de Campinas e hoje, graças ao suporte da Prefeitura de Campinas, encontrou emprego em empresa multinacional e frequenta faculdade (Kamá Ribeiro)

"Eu fui para as ruas para ajudar em casa, pois via os meus pais sofrerem com dificuldades básicas e isso me incomodava. Trabalhei em banca de acessórios eletrônicos, como chamador na (rua) 13 de Maio, vendedor de balas no semáforo, de trufas nos ônibus. Fiz de tudo um pouco, vários bicos. Aí depois dos 15 anos a situação da família foi melhorando e passei a trabalhar mais para comprar as minhas coisas mesmo", contou Elisafe. 

Em 2018, durante a prestação de serviços de manutenção de sepulturas no Dia de Finados (2 de novembro), Elisafe e seu irmão foram abordados por um agente da Smasdh. Graças ao programa, ele foi encaminhado para um curso no Senai, onde se especializou na produção de produtos de panificação. Santos continuou a investir em sua educação, ingressou em uma universidade federal e, recentemente, matriculou-se em uma instituição em Campinas, onde está cursando Gestão Pública.

Hoje, aos 21 anos de idade, além de seus estudos, Elisafe converte suas experiências difíceis da juventude em letras de rap.

DESAFIO

A secretária Vandecleya Moro, da Smasdh, evita celebrar o marco de mais de 4 mil "resgates", destacando que o cenário ideal seria um número menor, o que indicaria uma redução no número de crianças que ainda precisam trabalhar nas ruas e em outros espaços da cidade.

"Infelizmente, vivemos em uma sociedade que gera vulnerabilidade, e nesse contexto, é fundamental que a máquina pública atue de maneira integrada para resolver essa situação. Não podemos comemorar esse número, mas também precisamos reconhecer que são 4 mil crianças e adolescentes que conseguiram deixar as ruas e transformar suas vidas", destaca a secretária.

O programa implementado pela Smasdh é multifacetado, explica Vandecleya Moro. Primeiramente, ocorre a abordagem das crianças e adolescentes em situação de trabalho. Em seguida, é realizado um diagnóstico familiar, permitindo à administração entender as causas do trabalho infantil. Quando a situação está relacionada à vulnerabilidade, o que geralmente é o caso, as famílias são encaminhadas aos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), onde são cadastradas no Cadastro Único (CadÚnico) para acesso a programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, por exemplo.

Em certos casos, como o de Elisafe, os adolescentes são direcionados para a educação profissional por meio do Programa Construindo Autonomia para o Futuro (Procaf). Segundo a Prefeitura, desde 2014, o Procaf já formou 321 adolescentes em cursos profissionalizantes, e até o final deste ano, outros 15 jovens também terão suas capacidades aprimoradas.
Vandecleya enfatiza que o programa tem feito de Campinas uma referência em assistência a esse tipo de vulnerabilidade, atraindo gestores de outras cidades da região em busca de compreender a dinâmica aplicada na metrópole.

O procurador do MPT, Ronaldo Lira, que liderou o Núcleo de Combate ao Trabalho Infantil do órgão, destaca a importância de abordar a prevenção do problema desde sua raiz, evitando que as crianças cheguem à situação de trabalho nas ruas.

"É preciso trabalhar junto às famílias para que as crianças nem cheguem a ir à rua, fazendo políticas públicas para aferir se as elas estão indo à escola, se existe vagas suficientes nas creches, além de outros projetos como contraturno escolar, por exemplo. Temos que analisar de forma panorâmica e não pontual. Mais de 4 mil crianças foram tiradas das ruas, mas por que elas estavam lá?", questiona o procurador. 

Lira ressalta que houve um aumento nas denúncias, mas atribui esse aumento como uma consequência da pandemia, que contribuiu para a diminuição da renda das famílias. Ele enfatiza que essas famílias ainda não tiveram o tempo necessário para recuperar seu padrão de vida anterior à pandemia.

O Dr. Marchiori enfatiza a importância de os pais abandonarem a ideia de comparar suas próprias experiências com as de seus filhos. Além disso, ele destaca que o dinheiro que pode parecer fácil hoje pode ter um custo alto para a saúde e o futuro dos adultos de amanhã. Ele ressalta a necessidade de afastar o discurso de que "o pai trabalhou na infância e não teve problemas". As crianças e adolescentes não devem ser responsabilizados pela renda da família, muito menos submetidos a um discurso baseado na meritocracia. O foco deve estar no acesso à educação e no desenvolvimento saudável das crianças.

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