Opioide de uso hospitalar potencializa outros entorpecentes e pode levar a morte
Mestre em Ciências do Laboratório de Toxicologia da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, Rafael Lanaro, também foi responsável pelas análises que detectaram fentamil (Rodrigo Zanotto)
O Centro de Informação e Assistência Toxicológica (CIATox), da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), emitiu um alerta após encontrar fentanil, um opioide de uso hospitalar, em substâncias psicoativas na região de Campinas. O fentanil é extremamente potente e, atualmente, é a droga que mais mata pessoas nos Estados Unidos (EUA).
Ela é considerada muito mais forte do que a heroína, além de ser extremamente viciante e causar uma abstinência dolorosa. Embora especialistas acreditem que o Brasil não viverá uma epidemia de abuso da substância, como acontece nos EUA, o alerta é importante para pelo menos três grupos específicos: profissionais que trabalham em serviços de emergência e no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU); usuários de substâncias psicoativas e agentes de segurança pública, que eventualmente possam participar de apreensões da droga.
O fentanil foi detectado em pacientes que utilizaram drogas de abuso por meio de análises realizadas pelo Laboratório de Análises Toxicológicas (LTA) do CIATox. Drogas de abuso é um termo genérico para um conjunto de substâncias que são consumidas indiscriminadamente sem a prescrição de um profissional competente. O professor José Luiz da Costa, coordenador executivo do CIATox, e o mestre em Ciências do Laboratório de Toxicologia, Rafael Lanaro, também responsável pelas análises, explicaram que os pacientes haviam utilizado drogas como K2 (canabinoide sintético), LSD e cocaína, batizadas com fentanil. Ainda houve a utilização do opioide em um provável golpe de "Boa noite, Cinderela".
No momento, o alerta tem especial utilidade para o SAMU e demais serviços de emergência, possibilitando que os profissionais que prestam socorro estejam atentos para identificar indícios de intoxicação por opioides. Os principais sintomas de abuso da substância psicoativa são conhecidos como "tríade opioide": depressão neurológica, depressão respiratória e pupila miótica - quando a pupila se contrai e fica bastante fechada, pequena. Ao observar sinais de baixo nível de consciência e falta de ar, os profissionais podem agir rapidamente e salvar a vida do paciente, já que há um antídoto para combater a intoxicação.
"Se a pessoa tem esses três sintomas, o clínico tem que ter essa percepção de que pode ser fentanil. Ele pode consultar o CIATox, o que é bem importante, mas em uma situação de emergência ele tem esse treinamento para usar o antídoto Naloxona, que existe e está disponível. Em outros países, como os EUA, é comum a população ter Naloxona em casa", explicou Lanaro.
O alerta aos profissionais de saúde é ainda mais necessário considerando que a cocaína e o crack são as drogas prevalentes nos casos de intoxicação no Brasil, portanto o tratamento é direcionamento para estas substâncias - abrindo a possibilidade de um médico de emergência sequer considerar a possibilidade de um opioide. As equipes devem estar atentas para a possibilidade, mesmo que rara, de intoxicação por fentanil e utilizar o antídoto. Ele é seguro, tem resposta relativamente rápida e recupera a função respiratória prejudicada, ajudando a controlar a situação do paciente e eventualmente salvando vidas.
Outro motivo importante para o alerta é que o uso do fentanil é comum em alguns procedimentos médicos para minimizar a dor, como na intubação. A apreensão de 31 frascos de fentanil em uma operação da Polícia Civil no Espírito Santo elevou a preocupação, pois um aumento do número de substâncias, como a cocaína, contaminadas com o opioide, pode levar a mais casos de intoxicação e ter um grande efeito no socorro e no tratamento.
"Se há uma depressão respiratória e o paciente vai intubar, usa-se fentanil. Então, vai aumentar ainda mais a exposição e o que seria para ajudar pode causar uma piora", disse o Lanaro, responsável técnico pelas análises toxicológicas do CIATox.
Em São Paulo, o Departamento Estadual de Prevenção e Repressão ao Narcotráfico (Denarc) apreendeu 1.229 frascos de fentanil entre 2020 e 2022, totalizando 12.290 ml. No dia 8 de fevereiro deste ano, o Denarc confiscou 810g da substância em Carapicuíba. Calcula-se que esta quantia pode representar 500 mil doses.
Os casos de 2023
O CIATox identificou em ao menos quatro pacientes o uso involuntário de fentanil. Em um dos casos, o opioide foi utilizado como "Boa noite, Cinderela". Ele foi encontrado em uma garota que suspeitava ter sido dopada. Na análise, nenhuma das substâncias comumente utilizadas no golpe do "Boa noite, Cinderela" foi encontrada. De acordo com Lanaro, ela contou que em uma festa encontrou uma pessoa que usou cocaína. Ela não se lembrava mais de nada a partir deste momento.
"Ela disse que não é usuária, nunca tinha usado drogas. Chegou no hospital inconsciente. E chamou a atenção porque fentanil sendo utilizado como 'Boa noite, Cinderela' é extremamente perigoso, e foi o que aconteceu agora no início do ano."
Nos demais casos, os pacientes relataram ter usado algum tipo de substância psicoativa e também não tinham conhecimento de fentanil, porém a análise mostrou que as drogas estavam contaminadas. Um havia usado cocaína, outro LSD e o terceiro o canabinoide sintético K2.
"No caso do K2, um usuário diz que está usando essa droga, mas quimicamente podem ser inúmeras moléculas, inúmeras substâncias, e estamos percebendo isso. Esse paciente em nenhum momento recebeu fentanil no hospital, não estava intubado. Ele não tinha sintomas de intoxicação por opioide, mas foi encontrado um nível de fentanil".
No caso da cocaína, por exemplo, o paciente também se mostrou surpreso com a detecção. Ele confirmou que tinha usado cocaína, mas não fentanil.
"A gente não sabe dizer os motivos pelos quais colocam o fentanil nas drogas, mas esses quatro casos não foram agudos. Foram casos em que o efeito principal era outra droga, mas a presença do opioide chamou a atenção - em uma concentração que não estava causando efeito agudo. Ninguém foi intubado, mas tinha esse efeito diferente de 2016. Os casos de 2016 foram casos agudos, graves, em que foi preciso entrar com antídoto".
Cuidado na apreensão
Os especialistas do CIATox apontaram que o alerta também é útil para os integrantes das forças policiais, que, eventualmente, podem participar de apreensões da substância.
Para exemplificar, o coordenador executivo do CIATox, José Luiz da Costa, mostrou um vídeo à reportagem. Dois policiais dos EUA contam a experiência que tiveram ao inalar por acidente a substância. Ao lacrá-la em um saco, o ar saiu espalhando uma pequena quantidade de pó. Eles relataram dificuldade para respirar, profunda desorientação e a sensação de que o corpo estava desligando totalmente. Nos Estados Unidos, laboratórios de síntese são muito mais comuns. Apenas em 2022, estima-se que cerca de 70 mil pessoas morreram por causa do fentanil nos Estados Unidos.
Aqui no Brasil, a recomendação é que os policiais não se descuidem e protejam-se com luvas e máscaras em caso de participação em alguma apreensão.
Por enquanto, os especialistas do CIATox analisam que o fentanil pode causar mortes, mas o uso não deve evoluir muito no Brasil. A preocupação é necessária, especialmente na contaminação de drogas mais utilizadas. Ele considera ser difícil que laboratórios de síntese de fentanil sejam encontrados no Brasil. O mais provável, de acordo com o professor José Luiz, é que a droga utilizada de maneira não terapêutica seja produto de descaminho da indústria farmacêutica. Isso pode acontecer por meio de roubo de carga ou de desvio em hospitais, por exemplo.
Ele destacou a parceria entre o CIATox e o governo federal, que firmaram um convênio por três anos com o investimento de mais de R$ 2 milhões.
"O financiamento desse laboratório, de como estamos fazendo esse monitoramento hoje em dia, é do governo federal, por meio de um convênio firmado entre a Unicamp e a Secretaria Nacional de Política sobre Drogas (SENAD), do Ministério da Justiça. Desde o ano passado fazemos esse monitoramento sobre o uso de drogas em hospitais, festas e assim por diante", concluiu.