PEILA PRIMEIRA VEZ NO MUNDO

Pesquisa da Unicamp prova que leite materno cura covid

Paciente que sofre de imunodeficiência se livrou da doença tomando o alimento

Edimarcio A. Monteiro/ [email protected]
10/06/2022 às 09:11.
Atualizado em 10/06/2022 às 09:11
O leite materno, que proporciona aos bebês proteção imunológica para toda a vida, será usado para tratar pacientes imunodeficientes (Kamá Ribeiro)

O leite materno, que proporciona aos bebês proteção imunológica para toda a vida, será usado para tratar pacientes imunodeficientes (Kamá Ribeiro)

O leite materno de uma mulher vacinada foi usado com sucesso, pela primeira vez no mundo, para curar uma paciente com imunodeficiência genética rara acometida de um quadro crônico de covid-19. O trabalho foi desenvolvido por cientistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e abre as portas para pesquisas com o uso desse leite no tratamento de pessoas que nascem com doenças que afetam o sistema imunológico e podem causar de infecções graves a inflamação, alergias e câncer.

As estimativas apontam que as imunodeficiências primárias (IDPs) ocorram em mais de 1 a cada 2.000 nascimentos no mundo. A paciente com covid-19 tratada na Unicamp, portadora de síndrome de imunodesregulação, ingeriu, durante uma semana, 30 mililitros de leite materno a cada 3 horas, material doado por uma mulher imunizada contra o SARS-CoV-2 - nome do vírus que causa a doença.

O tratamento bem-sucedido foi divulgado em artigo publicado na revista científica Viruses, que teve como principal autora a pediatra e imunologista Maria Marluce dos Santos Vilela, professora da Faculdade de Ciência Médica (FCM) da Unicamp. Ela explica que o uso do leite materno foi decidido seguindo o mesmo princípio dos benefícios que traz para os bebês amamentados pelas mães.

"Os bebês se beneficiam de anticorpos presentes no leite materno. A amamentação é muito importante até os três meses de vida, mas deveria ser mantida até os seis meses", afirma Marluce. Essa é uma lição seguida a risca pela auxiliar de sala de aula Caroline de Moraes, mãe de Antonio, de 3 meses. "Eu sei da importância da amamentação e mantive mesmo com dificuldades no começo", afirma. Além de conter o equilíbrio de gorduras, carboidratos e proteínas na medida exata para promover o crescimento saudável do bebê, o leite materno possui substâncias que beneficiam o sistema imunológico, como anticorpos, fatores imunes, enzimas e células brancas do sangue.

A paciente tratada na Unicamp é portadora de uma doença genética que torna seu organismo incapaz de combater vírus e outros organismos que podem causar doenças. Ela teve covid-19 por mais de quatro meses. "Tenho acompanhado essa paciente desde criança e quando ela me contou que estava com covid-19 eu fiquei muito apreensiva. O erro inato da imunidade que ela apresenta deixa seu sistema de defesa todo desregulado. Sua resposta inflamatória é deficitária, há poucas células se mobilizando para o local da inflamação e baixa produção de anticorpos. As características de virulência dos agentes infeciosos podem levar a dois desfechos nesses casos: infecção crônica ou morte", explica a imunologista em reportagem publicada na agência da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), órgão que apoiou o trabalho.

Organismo humano

A pediatra explica que o sistema imunológico dos mamíferos, entre eles o ser humano, produz normalmente cinco tipos de anticorpos, que são as imunoglobulinas IgM, IgG, IgA, IgE e IgD. Portadores de síndrome de imunodesregulação, geralmente, têm pouco IgE e, em alguns casos, ausência completa de IgA, o principal anticorpo neutralizante de vírus e outros patógenos, que costuma estar presente no leite materno. Há apenas 157 casos dessa síndrome registrados no mundo. 

Nos primeiros 15 dias de infecção de covid-19, ela teve febre, perda de apetite, de peso, tosse e indisposição. Porém, o pulmão e demais sistemas do organismo mantiveram-se inalterados. Em parceria com o Hemocentro da Unicamp, o grupo de cientistas decidiu inicialmente tratar a paciente com administração intravenosa de plasma (sangue) de pessoas curadas de covid-19.

Ela foi mantida isolada em casa, com a mãe controlando a oxigenação, temperatura corporal e a nutrição, com os médicos fazendo o acompanhamento periódico por vídeo. "Ela apresentou uma melhora considerável do quadro, mas ainda testava positivo para covid-19", explica Marluce. Depois de 15 dias, os cientistas ficaram receosos que a infecção se prolongasse por mais tempo. O uso do leite materno foi decido após a divulgação de um estudo da Pfizer, empresa farmacêutica norte-americana produtora de vacina contra a covid, que mostrou que as mulheres lactantes vacinadas produziam leite com quantidade razoável de IgA.

"Decidimos então fazer a experiência assistencial de reposição de IgA via leite materno", explica a imunologista. O uso oral foi porque essa imunoglobulina é melhor absorvida pelas mucosas e vai grudando nos patógenos ao percorrer o sistema gastrointestinal. A eliminação é feita pelas fezes.

Após uma semana, o teste de covid-19 deu negativo, resultado que se repetiu em outro dois exames realizadas em intervalos de dez dias. Marluce que pretende desenvolver novas pesquisas usando o leite materno no tratamento de covid-19 e de outras doenças que atingem portadores de imunodeficiência genética. "É algo que é produzido de graça pelo organismo e que salva vidas", destaca a pesquisadora. Para Marluce, as condições sociais do país e licença-maternidade de quatro meses fazem com que esse poderoso produto natural seja desperdiçado. "Poucas empresas dão licença-maternidade de seis meses", afirma.

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