CRISE HÍDRICA

Obra de barragem gera inquérito

Ex-prefeito Jonas é acusado de crime ambiental por alterar lei que permitiu desmatamento em APA

Raquel Valli/ Correio Popular
08/04/2021 às 13:01.
Atualizado em 21/03/2022 às 22:43
Obra da Barragem Pedreira, localizada na Área de Proteção Ambiental do distrito de Joaquim Egídio: remoção de fragmento florestal resultou em denúncia de crime ambiental contra ex-prefeito (Kamá Ribeiro/ Correio Popular)

Obra da Barragem Pedreira, localizada na Área de Proteção Ambiental do distrito de Joaquim Egídio: remoção de fragmento florestal resultou em denúncia de crime ambiental contra ex-prefeito (Kamá Ribeiro/ Correio Popular)

Após denúncia do Ministério Público, a Polícia Civil abriu inquérito para investigar o ex-prefeito de Campinas, Jonas Donizette (PSB), por crime ambiental. O ex-chefe do Executivo é acusado de propor e sancionar uma mudança no artigo 18 da lei municipal 10.850/2001 que permitiu o desmatamento de um segmento da Área de Proteção Ambiental (APA) Permanente localizada no Distrito de Sousas. A extração de árvores foi feita para permitir a construção da Barragem Pedreira, cuja obra ainda está em andamento.

O fragmento florestal destruído era remanescente da Mata Atlântica, bioma que protegido pela Lei Federal nº 11.428/2006. Segundo o geógrafo Márcio Ackermann, mestre pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas de São Paulo (IPT/SP), pesquisador da PUC Campinas e perito no processo, já foram derrubados cerca de 60 hectares de mata, o equivalente a 96,25 campos de futsal.

O perito Márcio Ackermann (abaixo): represa não atenderá à população

De acordo com o Decreto Municipal nº 18.229 de 2014, o Conselho Gestor da Área de Proteção Ambiental de Campinas (Congeapa) deveria ter sido obrigatoriamente consultado sobre a intenção do desmatamento. Mas, não houve nem a consulta e nem a anuência do órgão para que fosse feito o desmatamento. Segundo ambientalistas, a alteração feita por Jonas na legislação está enquadrada como crime ambiental pela Lei Federal nº 9.605/1998.da exige uma audiência pública, que não foi realizada, e o aval do Congeapa, que não foi concedido. Todo esse trâmite é exigido pela Lei Federal nº 9.985 de 2010, que trata sobre o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC).

"É inadmissível que um gestor público tome uma atitude impositiva desta forma, na canetada. É fato de que as árvores foram cortadas, além do erro gravíssimo de ter alterado a legislação sem a consulta ao Congeapa. É inadmissível que Campinas esteja sujeita a gestores públicos e a legisladores com esse tipo de comportamento. É inadmissível estarmos sujeitos a pessoas que estão pouco se importando em obedecer e cumprir a legislação", afirma o gestor ambiental Carlos Alexandre Fanton Silva, presidente da Federação Nacional dos Conselhos de Meio Ambiente (Fecondema) e presidente do Conselho Municipal de Meio Ambiente de Campinas (Conema) por dois mandatos (2014 e 2017).

Fanton Silva foi quem denunciou o caso ao Ministério Público, que foi transformado em inquérito policial. "Por lei, o Conselho tinha que se manifestar, mas o ex-prefeito atropelou o processo administrativo para impor a vontade dele, a fim de atender interesses escusos do Estado de São Paulo, que necessariamente não trazem benefício para a população de Campinas, e ocorrem em crime ambiental", declara o gestor ambiental.

O perito Márcio Ackermann também discorda da utilidade pública da represa. Sustenta que o custo da água seria inviável à população, dado o transporte e bombeamento necessários. Será preciso bombeá-la 100 metros acima da Bacia do Jaguari até o Rio Atibaia. "Nós estamos falando de uma região que tem déficit hídrico, onde falta água no período de seca. Mas, essa represa não vai atender à população. Com o custo da adução (encaminhamento de tubos) e do recalque (bombeamento), o valor fica tão caro que a tarifa para o consumidor ficará inviável. O discurso de utilidade pública é só um discurso, infelizmente. Como essa água é de utilidade pública se ela é inviável financeiramente para a empresa de saneamento de Campinas (Sanasa)?", questiona Ackermann.

A Sanasa adiantou que tem interesse na água da represa, apesar de ainda não saber o custo para a população. "A Sanasa esclarece que tem interesse em utilizar a água da represa de Pedreira, obra em execução pelo Estado de São Paulo. O sistema adutor, porém, ainda não está definido pelo DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica), nem mesmo o custo operacional de todo o sistema. O responsável pela operação também precisa ser definido. Somente com essas demandas definidas, a Sanasa analisará a viabilidade econômica da proposta".

Ainda de acordo com o perito, é possível recuperar todo o dano ambiental com replantio. Segundo ele, "é isso que deve ser feito". Em relação à segurança hídrica, o especialista aponta que é preciso fazer um estudo sério porque o projeto da barragem é da década de 1980 e está defasado. Foi concebido para resolver o problema de falta d'água da refinaria de Paulínia. Mas, como a Replan desenvolveu outras tecnologias para resolvê-lo, o projeto expirou.

Ackermann questiona, ainda, o fato de a obra estar em andamento, se a base da licença está relacionada, segundo ele, a um crime que está sendo investigado. "Por que o Ministério Público não a suspende os trabalhos enquanto essa investigação criminal está em curso? Não consigo entender como o MP não tem uma atitude de prevenção. Estamos falando da Mata Atlântica, um ecossistema que sofre ameaça de extinção". Questionado pela reportagem, o Ministério Público de São Paulo informou que "a Promotoria não tem elementos para responder sobre a suspensão desse inquérito criminal porque a investigação ainda não foi relatada ao MPSP pela polícia".

O ex-prefeito Jonas Donizette (abaixo): “tudo feito dentro da lei”

DAEE diz que ainda não foi notificado sobre denúncia

Polícia solicitou laudo ao Instituto de Criminalística e ouviu ambientalista que levou o caso ao Ministério Público

Procurado pelo Correio Popular, o ex-prefeito Jonas Donizette (PSB) negou as acusações. "Tudo foi feito dentro da lei, levando em conta o interesse público de segurança hídrica", assegurou. Quando questionado sobre a mudança da lei sem a consulta ao Conselho que regula a área de proteção ambiental, evocou questões de ordem política. "Esse rapaz foi candidato a vereador me apoiando na minha reeleição, mas perdeu. Depois disso, se tornou um 'denuncista'. Fico por aqui". A referência é ao presidente Fecondema, Carlos Alexandre Fanton Silva, que em 2018 se candidatou ao Legislativo pelo PV e em 2020, pelo PTB.

O imbróglio da represa chegou até a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp). A deputada estadual Marina Helou (Rede Sustentabilidade) enviou ofícios solicitando o posicionamento do Ministério Público Federal; do Ministério Público Estadual - Gaema Campinas; do delegado José Henrique Ventura, diretor do Departamento de Polícia Judiciária de São Paulo Interior 2 (Deinter 2); e do delegado da Seccional da Polícia Civil de Campinas, Nestor Sampaio Penteado.

Ao Correio Popular, a deputada afirmou que "esse caso é absurdo porque as regras, os critérios e os cuidados para a aprovação de um empreendimento desse porte não foram respeitados". Segundo a parlamentar, "os exemplos dos crimes ambientais cometidos em Mariana (MG) e Brumadinho (MG) deveriam servir de alerta para agirmos com responsabilidade com as pessoas e o meio ambiente. Foi nesse sentido que acionamos o MP e a Polícia Civil, e apoiamos as organizações ambientalistas. Nosso mandato se baseia em dados, em evidências e na escuta do cidadão. Não vimos nenhuma das coisas neste caso: o Conselho Gestor da APA de Campinas (Área de Proteção Ambiental) não foi ouvido e os estudos apresentados são falhos, limitados e insuficientes".

O Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), do governo estadual de São Paulo, é responsável pela obra. Questionado pelo Correio sobre o inquérito, respondeu que "não tem conhecimento sobre a ação e que não foi acionado". Quando perguntado se pretende seguir com a construção da barragem, informou que "continua executando as obras dentro dos preceitos legais, amparado por todas as autorizações e licenças de órgãos pertinentes".

O delegado José Roberto Rocha, titular do 12º Distrito Policial (DP), é o responsável pela investigação. Solicitou ao Instituto de Criminalística de Campinas um laudo e já ouviu o gestor ambiental Carlos Alexandre Fanton Silva, e a presidente do Congeapa, Cláudia Esmeriz. "Estão agendadas outras testemunhas e representantes de entidades referidas", adiantou o delegado.

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