depoimento

O relato de quem venceu a Covid-19

Médico uro-oncologista de Barretos detalha seu sofrimento e o que utilizou para encarar a doença

Katia Camargo
26/07/2020 às 00:21.
Atualizado em 28/03/2022 às 20:42
"Só quando nossa existência fica em jogo é que pensamos o quanto somos felizes e não percebemos!" (Divulgação)

"Só quando nossa existência fica em jogo é que pensamos o quanto somos felizes e não percebemos!" (Divulgação)

O médico Fernando Zapparoli Gonçalves, 42 anos, é uro-oncologista, cirurgião especializado em casos de alta complexidade e está acostumado a operar e cuidar de pacientes com tumores urológicos. O profissional da Saúde lida diariamente com quadros desafiadores da profissão, incluindo a luta contra o câncer de milhares de pessoas que já ajudou durante a carreira — e em seus consultórios em Barretos e São José do Rio Preto, Interior de São Paulo. Recentemente, o profissional se viu frente a um desafio pessoal que muitos médicos e pacientes têm enfrentado por conta da pandemia do novo coronavírus: o adoecimento por Covid-19. Num depoimento detalhista e revelador, ele conta ao Correio Popular como encarou essa experiência. O médico enfrentou a doença isolado em um quarto da sua casa, chegou a coletar os seus próprios exames de sangue e fez uso de diferentes medicamentos. Na conversa, ele relata os primeiros sintomas, o agravamento do quadro, o isolamento em casa para proteger seus familiares, o medo da morte e a distância e saudade, por amor e proteção, que tem enfrentado nos últimos 100 dias ao ficar longe dos pais e sogro. Ele ainda traz uma reflexão do quanto vencer a Covid-19 contribuiu para valorizar seu dia a dia e o que de fato importa na vida. Correio Popular - Em que momento o senhor acredita que tenha sido contaminado pelo novo coronavírus? Fernando Zapparoli Gonçalves - Nós, médicos, estamos mais expostos, pois passamos muitas horas do dia em contato com inúmeras pessoas ou dentro dos hospitais. Eu acredito que, muito provavelmente, tenha adquirido a Covid-19 operando de máscara e óculos de proteção. Nunca saberei ao certo onde ou quando isso ocorreu. Apenas tenho convicção que foi trabalhando como médico. Geralmente fico horas dentro de uma sala de cirurgia operando, principalmente casos oncológicos, que não podem esperar o fim da pandemia. O tratamento do câncer é “tempo dependente”, ou seja, o postergar do tratamento pode agravar o quadro e diminuir as chances de cura desta enfermidade. Quando sentiu e quais foram os primeiros sintomas? Os primeiros sintomas começaram em um domingo, 7 de junho, com alteração do paladar. No dia seguinte comecei a sentir um mal-estar e uma indisposição. Não percebi (na época) como Covid-19. Já na terça-feira, 9 de junho, cheguei a atender no consultório sentindo um leve mal-estar pela manhã e, no período da tarde estava fazendo uma cirurgia de câncer de próstata, em São José do Rio Preto, comecei a tossir e sentir um mal-estar. Então, foi nesse momento que percebi que estava com a Covid-19. No mesmo dia voltei dirigindo 100km para casa, tomei um banho no banheiro de fora de casa e me isolei em um quarto com banheiro. Qual foi a sua primeira atitude quando descobriu que estava infectado? Ao chegar em casa me tranquei no quarto e iniciei o tratamento com Hidroxicloroquina, Azitromicina, Anitta, Ivermectina e Zinco. Não vou entrar no mérito se tem evidência ou deixa de ter evidência. Apenas, neste momento, existe de um lado — ficar em casa tomando dipirona e tendo fé em um desfecho favorável. São medicações com poucos efeitos colaterais, com potencial de ajudar a diminuir a carga viral na primeira fase desta doença, porém com poucos trabalhos robustos e com nível de evidência científica de excelência. As medicações que usei foram associadas à mesma fé e dipirona. O primeiro exame fiz na quarta-feira e colhi Swab nasal para detecção do vírus em um hospital público de Barretos, onde resido. Descobri após a coleta em Barretos que o exame demoraria 14-21 dias para sair o resultado, pois o material é coletado e encaminhado para análise em São Paulo. Na sexta-feira, como estava me sentindo bem, fui para Ribeirão Preto colher outro exame de Swab e sorologias de forma privada. Me senti muito mal em Ribeirão, com febre de 39 graus e procurei hospital. Por lá fizeram tomografia de tórax, gasometria arterial (não sabia que doía tanto) e outros exames laboratoriais. Na tomografia foram identificadas alterações compatíveis com pneumopatia por Covid (25% nos dois pulmões). Como eu estava sem critérios de internação me deram alta. Sem febre e sem sintomas de falta de ar, voltei dirigindo bem devagarinho, sozinho, de Ribeirão Preto a Barretos. Não levei ninguém da família junto com medo de contaminá-los. Pode descrever como a doença foi progredindo? Como estava com alteração pulmonar e entrando na segunda fase da doença iniciei, por conta própria, anticoagulantes em subcutâneo e corticoide via oral. Nos dias 12,13 e 14 de julho foram dias terríveis com febre 38-39, diarreias incoercíveis. Tomei oito litros de água por dia e como a saturação estava boa, aguentei firme em casa! Segunda-feira, dia 15, fui novamente em hospital em Barretos e a tomografia passou para 35% de acometimento pulmonar bilateral. Fizeram corticoide EV e como estava sem dependência de oxigênio me deram alta. Na sequência, os exames de sangue da segunda-feira e o de terça-feira, colhidos no meu quarto por mim, estavam péssimos. Tive muito receio pelo que poderia estar por vir, de piorar, da falta de ar chegar, de ser intubado, de morrer sozinho em um leito de UTI. Partir de forma abrupta, assim de repente e solitário. O senhor não ficou internado, mas teve apoio de outros médicos? No dia 16 de julho comecei a ter assistência médica por videochamada com um amigo de faculdade, Dr. Eduardo Sellan que é infectologista na Unicamp. Ele trocou a Prednisona por Dexametasona e aumentou a dose do anticoagulante em subcutâneo. E iniciei uma fisioterapia vigorosa com aula “on-line” e aparelhos respiratórios simples de reabilitação! Tudo isso sem sair do quarto. Eu mesmo colhi meu sangue por três vezes. Minha esposa, que é médica também, levava frascos higienizados com álcool líquido a 70% para análise em hospital. Era alimentado pela janela em pequenas quantidades para não gerar lixo. Lavava minha louça na pia do banheiro e deixava pratos e talheres limpos debaixo da pia para serem retirados quando saísse da quarentena. Fiquei por longos 14 dias. Mas o sacrifício foi válido, uma vez que minha esposa e meus dois filhos não manifestaram a doença. Também não há comprovação científica, porém, assim que desconfiei que eu pudesse estar com Covid-19, eles fizeram uso de Annita e Ivermectina por três dias, logo no início dos meus sintomas e provavelmente no período de incubação de uma eventual doença neles. Como foi o fim do isolamento? O grande momento: “saída do quarto”. Segui à risca os protocolos. Deixei o quarto logo cedo no 15° dia de sintomas, vestindo apenas shorts do pijama e chinelo deixado pela esposa na porta do quarto por fora. Tomei longo banho com muito sabonete em outro banheiro. O quarto ficou trancado por quatro dias com todos meus pertences, inclusive o celular dentro dele. Instalei aplicativo de mensagem em aparelho antigo que se encontrava fora do quarto. Como estava muito fraco, tinha emagrecido 9 kg em 14 dias e me sentia muito cansado aos médios esforços, ainda precisei de mais uma semana de reabilitação antes de voltar a trabalhar. Em algum momento, o senhor sentiu medo de contrair a Covid-19? Nós, médicos, que estamos mais expostos ao contágio que a população em geral, estamos cientes que podemos contrair a doença a qualquer momento. Eu particularmente sempre tive medo de adoecer. Principalmente devido ao sobrepeso e problemas alérgicos. Também tinha muito medo de passar a doença para meus pais e sogro que são idosos. Isto fez com que há mais de 100 dias não tivesse contato físico com eles. O que realmente está muito difícil pela grande saudade. O que aprendeu com a Covid-19 e que mensagem pode deixar para os colegas de profissão e para as outras pessoas e famílias que estão passando por isso? Aos colegas médicos eu acho que é importante pensar em Covid-19 sempre, já que somos grupo de risco. Na primeira fase ninguém sabe, tomei as coisas todas. Nem por isso deixei de ter forma grave. Mas e se não tivesse tomado? Teria sido mais grave? Hoje eu teria tomado novamente. Pois qualquer alternativa com baixos efeitos colaterais é melhor do que não fazer nada. Apenas dipirona, como advogam alguns “cientificistas”, é pouco para o que já se sabe da primeira e segunda fase desta doença. A ciência começa com relatos de casos, série de casos, estudos retrospectivos, estudos prospectivos, prospectivos randomizados, randomizados duplo cegos, meta análises e assim vai. Muito difícil neste momento termos estudos de excelência metodológica fora de ambiente hospitalar, mesmo porque existem inúmeras questões éticas envolvidas. Fico muito entristecido quando vejo que boas teorias e ideias de tratamentos incipientes barrem no ceticismo e vaidade de alguns. Entre o “nada” e “uma tentativa”, fico com a segunda. Também tenho certeza que muitos defensores do “nada” farão uso de “alguma alternativa” quando a febre e a pneumopatia por Covid-19 baterem à porta. É muito importante procurar orientação de profissional infectologista ou que esteja envolvido no tratamento desta doença. Na segunda fase da doença, acredito que no meu caso — cada pessoa pode ter evolução diferente — o corticoide, a Enoxaparina (anticoagulante), fisioterapia respiratória e hidratação vigorosa fizeram toda diferença na minha evolução. Mudando a história natural da doença com toda certeza. Como foi a sensação de perceber que havia vencido a doença? É uma sensação fantástica saber que tudo aquilo, aquele sofrimento, aquela angústia, aquela solidão e o medo da morte passaram. Na sua área, que é a oncologia, é preciso passar esperança ao paciente, como foi ter que manter essa esperança frente a Covid-19? A área da oncologia nos ensina a ter muita esperança e fé. Fé em um Deus, que é único e criador de tudo que há. Pode ter diferentes nomes e entendimentos de acordo com cada religião. Mas acreditem: Ele existe e muitas vezes não entendemos o porquê dos nossos caminhos. Mas para tudo há um motivo ou um aprendizado. Temos sempre que seguir em frente, fazendo o bem, ajudando o próximo, vivendo e sendo grato por todos os dias da nossa existência. Depois dessa experiência com a Covid-19, o senhor acredita que cada pessoa que volta para casa com vida é um vencedor? Com certeza, para aquele paciente que entrou na terceira fase da doença e teve estado de saúde mais agravado e volta para casa é com certeza um grande vencedor! Assim como todos os profissionais da Saúde que estiveram engajados para a recuperação da saúde deste paciente. Conseguir se recuperar e voltar para as pessoas que amamos é transformador? O senhor sai diferente do ponto de vista humanitário dessa experiência? Estes dias doente e isolado da família pensei muito na vida. E na vida a gente nunca perde! Ou a gente ganha ou a gente aprende! Hoje tenho ainda mais certeza que a vida do dia a dia é boa demais, família, o ar que respiramos, o sol. Parece estranho não darmos importância para estas coisas simples! Só quando nossa existência fica em jogo é que pensamos o quanto somos felizes e não percebemos! Se pudesse definir em uma palavra o que representou ter passado pela experiência da Covid-19, qual seria? Desafio a ser vencido com muita fé, esperança e ciência. PERFIL Fernando Zapparoli Gonçalves é médico uro-oncologista, doutor em Urologia pela Universidade de São Paulo (USP), com residência médica na Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e no Hospital A.C. Camargo. É especialista em Urologia e em Cancerologia Cirúrgica. Por muitos anos, trabalhou no Hospital de Amor de Barretos, um dos principais centros de tratamento do câncer da América Latina. Atende nas regiões de Barretos e São José do Rio Preto. E-mail de contato: [email protected]

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