GÊNERO

O direito de escolher o próprio nome

Direito garantido por lei ajuda adolescentes transexuais a passarem pelo momento de transição

Virgínia Alves
28/01/2018 às 09:52.
Atualizado em 22/04/2022 às 09:55
Flor conta que o professor a ajudou muito, o que foi fundamental para assumir o seu novo nome (Arquivo pessoal)

Flor conta que o professor a ajudou muito, o que foi fundamental para assumir o seu novo nome (Arquivo pessoal)

O Ministério da Educação (MEC) homologou a autorização do uso nome social de travestis e transexuais nos registros escolares da educação básica. A nova norma busca propagar o respeito e minimizar as estatísticas de violência e abandono escolar em função de bullyng, assédio, constrangimento e preconceito. O nome social é aquele pelo qual as travestis, mulheres trans ou homens trans optam por ser chamados, de acordo com sua identidade de gênero. A mudança era uma atinga reivindicação do movimento LGBT. “É um passo relevante para o princípio do respeito às diferenças e o combate aos preconceitos”, enfatizou o ministro Mendonça Filho. A psicóloga e sexóloga Bárbara Menêses, do Centro de Referência LGBT da Prefeitura de Campinas, ressalta que a resolução só trará pontos positivos às travestis e transexuais. Ela acredita que a transição para a adolescência é a fase em que acontecem os maiores conflitos internos. “É uma fase de muita importância para as crianças e os adolescentes conseguirem se reconhecer enquanto pessoas. Eles estão buscando essa identificação, saber quem são e o que pensam”, explica a psicóloga. Com a edição da medida, o ministério atende à demanda de pessoas trans que querem ter sua identidade de gênero reconhecida. Em 2015, uma resolução do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (CNDC/LGBT) definiu parâmetros para acesso e permanência de pessoas trans em diferentes espaços sociais, entre eles o direito ao uso do nome social nas redes de ensino. Poder usar o nome escolhido, para a psicóloga, trará mais confiança para encarar a situação de aceitação que costumam acontecer nessa fase. “Quando essas pessoas estão começando a se perceber transexuais já vem um sofrimento todo muito grande por conta de uma inadequação, por conta de ter uma noção de que essas pessoas estão andando numa contramão do que se espera delas, então o nome é uma parte fundamental”, explica. Ela ressalta ainda que na escola é quando o adolescente tem mais dificuldades, já que é quando muitos deles já estão no processo de mudança e já não se identificam claramente com o sexo biológico. “O nome é uma das principais causas de sofrimento, meus pacientes adolescentes contam muito que eles abandonam a escola pelo fato de serem chamados pelo nome de registro. Isso é muito sério, eles já não se identificam com esse nome”, explica. Erick Barbi, homem trans de 39 anos, passou 22 anos tentando entender o que acontecia com o próprio corpo e mente. Depois de tentar se enquadrar em diferentes grupos, só sentiu completo quando assumiu a transexualidade. Para ele, a infância e adolescência marcaram os dias mais traumáticos. “Desde pequeno, sempre que conhecia alguém e esta pessoa perguntava meu nome, eu respondia ‘ Erick’. Meu nome de registro é bem parecido, então eu omitia a letra ‘A’ do final”, conta. Só que a felicidade só durava até alguém que me conhecia me chamar pelo nome de registro. Ter que explicar era pior ainda”, relembra. Os primeiros dias na escola também foram complicados para Erick. “Classe nova, alunos novos. Todos viam ali um menino. Então a professora chamava uma, duas, três vezes e só aí eu respondia, todo encolhido na carteira. E quando os que estavam próximo ligavam o nome à pessoa, começavam os comentários, as risadinhas”, conta. A psicóloga destaca que apesar do preconceito que os transexuais sofrem, é necessário todo mundo lembrar que apenas o trans tem o direito de opinar sobre a situação que passa diariamente no dia a dia na escola, no trabalho, com a sociedade. “A resolução dá o direito da pessoa ser quem ela é, de que a instituição de educação reconheça a identidade dessa pessoa e só quem pode falar da nossa identidade somos nós mesmos. Então se a Maria me fala que quer que chame João, a gente precisa respeitar que é João. Se o João quer se chamado de Maria, a gente precisa respeitar, é uma escolha dessa pessoa o nome”, exemplifica a profissional. Ela caracteriza ainda a resolução como uma avanço grande ao retrocesso que o preconceito acaba impondo na sociedade. Apoio dentro da sala de aula foi decisivo O professor de inglês João Oliveira, de 29 anos, se deparou pela primeira vez com a situação de lidar com um aluno no processo da transexualidade dentro da sala de aula. Oliveira percebeu que um dos alunos assinava o nome de nascimento e entre parêntese colocava o nome de Amélia. Ele precisou de alguns dias para tomar coragem e ir falar com Amélia Flor Soares Silva. “Não sabia muito bem lidar com a situação, mas criei coragem e perguntei se ela gostaria de ser chamada assim em sala de aula”, conta. Amélia, de 21 anos, conta que a conversa com o professor de inglês foi emocionante. Dentro de um ambiente onde não conseguia ser ela mesma, ela encontrou confiança no professor e passou a assumir o nome escolhido na escola. “Sua mente de fato era aberta e acredito que ele tinha um pouco de conhecimento da sua posição de privilégio por ser homem cisgênero numa sociedade machista e transfóbica”, conta. Ela chegou até cogitar a trancar a matrícula na escola, mas o coordenador garantiu que não aconteceria nenhum tipo de agressão ou preconceito. “Meu professor demorou algumas tarefas para falar comigo, mas quando falou eu logo fui afirmando de modo direto que era uma mulher trans. Ele compreendeu, olhou nos meus olhos e disse que poderia me chamar do modo como eu quisesse”, relembra. Depois da conversa, o semestre passou de forma mais suave para Amélia. Um dos dias mais marcantes para ela, foi quando ela não assinou Amélia na lista de chamada e o professor devolveu o material pedindo para que ela assinasse o nome de verdade lá. “Daquele momento em diante eu sabia que podia confiar nele”, conta. O semestre foi fechado com chave de ouro em uma apresentação de final de ano. Os alunos precisavam apresentar um projeto e a jovem escolheu que era o melhor momento para revelar Amélia para o diretor da escola. “Para minha sorte o João estava lá. Eu ia conseguir enfrentar todos os olhares se a única pessoa que eu confiasse estivesse lá. Não foi perfeita, esqueci algumas coisas, apresentei e o João chorou. Tenho certeza que toquei ao menos uma pessoa lá. Exatamente quem estava aberto a aprender e a sentir junto comigo”, conta. O professor conta emocionado que Amélia acabou caindo como um presente durante o semestre. “Foi a primeira vez que passei por isso e fiquei feliz pela forma como lidamos com a situação. Me lembrarei sempre com carinho daquela aluna que me fez crescer tanto”, encerra o professor. Família precisa buscar apoio psicológico e jurídico para encarar todo o processo Quando o adolescente resolve que está na hora da transição, um dos maiores receios é contar principalmente para o pai e a mãe o que está acontecendo. Muitas vezes, até o processo definitivo de aceitação, a pessoa acaba acreditando que existe algo de errado consigo mesmo e até transtornos emocionais podem acontecer. A psicóloga e sexóloga Bárbara Menêses, do Centro de Referência LGBT da Prefeitura de Campinas, garante que quando existe a possibilidade de diálogo aberto com os pais, é mais fácil para o filho ou filha lidar com a situação que ele obrigatoriamente passará fora de casa. “Quanto mais a família consegue apoiar ou, pelo menos, respeitar esse processo, eles se sentem muito mais seguros para enfrentar o mundão”. Ela destaca que é importante entender que todas as famílias acabam passando por algumas fases. Entre as principais delas, está a de tentar encontrar um culpado pela situação. “Quando percebe alguma coisa, que essa criança ou adolescente demonstra uma tendência de, a princípio, homossexualidade, depois a tendência à transexualidade ainda não declarada, as famílias tendem a achar um culpado”, diz. Segundo a psicóloga, cria-se um conflito dentro da própria casa e as justificativas encontradas são diversas: que a criança foi mimada pelos pais, que houve ausência da autoridade, a separação do casal, entre outras coisas. Depois do conflito, as famílias tendem a procurar por alguém que tenha influenciado os filhos fora de casa: um amigo, a novela, a amiga homossexual. Sem encontrar um culpado, os pais acabam entrando na fase da negação e acreditam que a decisão é só uma fase, que o adolescente está passando. Em seguida, entra a fase complexa de agressividade. É nesse momento que podem acontecer dos adolescentes serem expulsos da própria casa, é quando os pais acabam tirando o dinheiro da mesada e usando expressões pesadas na tentativa de reverter a situação. É também nesse momento que as violências físicas e sexuais acabam acontecendo. “São situações tenebrosas por conta de uma falsa ideia de que isso vai mudar a condição dessa pessoa”, conta. Só depois de passar por todas as fases é que a maioria das famílias acaba pensando em procurar por ajuda. Bárbara reforça que as famílias também estão passando por uma transição e que um acompanhamento só trará pontos positivos aos dois lados. “Não é uma criança ou adolescente trans, é uma família. Tem toda uma expectativa em cima desse filho que precisa ser reajustada, a questão da transexualidade não precisa ser um problema. É fundamental essa família buscar informação. Buscar os serviços que oferecem o apoio psicológico e jurídico”, finaliza.

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