FLAGELO DA FOME

O desafio de garantir acesso à alimentação de qualidade

Aumento da miséria e mudanças climáticas são fatores preocupantes no Brasil

Ronnie Romanini/ [email protected]
25/10/2022 às 10:10.
Atualizado em 25/10/2022 às 10:10
A socióloga Mariana Maia aponta que, embora o município de Campinas disponha de uma rede de abastecimento, a Ceasa, os alimentos não chegam até as populações da periferia em diversidade e qualidade adequadas (Gustavo Tilio)

A socióloga Mariana Maia aponta que, embora o município de Campinas disponha de uma rede de abastecimento, a Ceasa, os alimentos não chegam até as populações da periferia em diversidade e qualidade adequadas (Gustavo Tilio)

Com a expectativa anunciada pela Organização das Nações Unidas (ONU) de que a população mundial atingirá a marca histórica de 8 bilhões de pessoas no dia 15 de novembro de 2022, a humanidade passará por desafios em diversos setores, entre os quais o de garantir a segurança alimentar da população. A volta do crescimento da pobreza no Brasil, as mudanças climáticas e novas formas de produção, abastecimento e consumo influenciarão os próximos anos e décadas.

No final do século XVIII, surge a teoria “malthusiana” de que a pobreza e a fome fariam parte do futuro da população. Isso porque o aumento populacional superaria o crescimento da oferta de alimentos, causando um desequilíbrio. 

Entretanto, o autor da teoria ignorou as possibilidades de que a produção de alimentos poderia ser aprimorada, assim como as relações sociais (um exemplo é a inserção da mulher no mercado de trabalho e a diminuição do número de filhos). Portanto, hoje, essa relação não se comprova e o que defende a teoria não explica a insegurança alimentar com a qual que bilhões de pessoas convivem. 

De acordo com a ONU, em 2021 o mundo passou a contar com 2,3 bilhões de pessoas em situação de insegurança alimentar moderada ou grave. A fome e a miséria existiam no passado e ainda acometem milhões de famílias no presente, cuja perspectiva futura passa por uma mudança na forma de pensar e produzir.

"É preciso reconhecer que a produção de commodities não significa necessariamente disponibilidade de alimentos. Ou seja, mesmo com o aumento da produção de soja e carne - com o Brasil passando a maior exportador mundial -, a população em situação de insegurança alimentar chegou a 30 milhões no país", afirmou o docente do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Roberto Luiz do Carmo, que também é pesquisador do Núcleo de Estudos de População (NEPO - Elza Berquó) da mesma universidade. 

De acordo com Roberto, a produção de alimentos tem crescido de maneira significativa ao longo dos últimos 50 anos, porém, orientada ao mercado. Em alguns casos, ao mercado externo. "Existe um conjunto expressivo da população brasileira que não tem acesso a esse mercado de alimentos. Essa discrepância entre a produção e o acesso precisará ser equacionada nas próximas décadas. Contudo, nesse caso, é importante ter clareza que a questão do crescimento populacional não é determinante, como usualmente é colocado pela perspectiva Malthusiana."

O professor citou que o programa Bom Prato, criado pelo Governo Estadual e destinado a oferecer refeições à população vulnerável por um preço acessível, passou a servir em torno de 50% a mais de refeições em 2022.

Com uma perspectiva pouco otimista quanto às mudanças climáticas e eventos extremos, o Brasil é um país que pode ser bastante afetado. Para o pesquisador, a adaptação será essencial e definirá as possibilidades de manutenção da capacidade de produção de alimentos.

Para a socióloga Mariana Maia, que integra o Departamento de Segurança Alimentar e Nutricional da Secretaria Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos da Prefeitura de Campinas, o olhar para o futuro não poderá prescindir da ecologia e sustentabilidade. De acordo com ela, hoje, alguns grandes produtores já adotaram práticas agroflorestais e agroecológicas que preservam mais o meio ambiente. O futuro com uma agricultura sustentável pode demorar, mas é inevitável na visão dela.

Para isso, a Prefeitura de Campinas tem um projeto cujo objetivo é o de, justamente, aprimorar a segurança alimentar na cidade, promovendo uma alimentação mais saudável e incluindo a população na produção: o Programa de Agricultura Urbana e Periurbana. "É o nosso maior investimento a médio e longo prazo. O objetivo é claro e pragmático: produzir alimento para colher um mês, 40 dias depois, como um pé de alface. Mas também tem o aspecto da política pública, da organização, da produção de alimentos. O programa traz essa ‘pegada’ agroecológica, que não usa insumos agrícolas químicos, que podem empobrecer a terra. Um dos objetivos, então, é o de retomar a biodiversidade, a preservação ambiental, a longo prazo e obter um impacto nesse abastecimento. A proposta é que as pessoas possam plantar e colher o mais próximo da sua casa."

A proximidade com a residência não é por acaso. Mariana acredita que um desafio dos municípios é justamente o de investir em uma agricultura familiar. Campinas tem uma área rural, mas comprimida pelo processo de urbanização, portanto, essa área perde a função produtiva e torna-se dependente. 

"Temos uma rede de abastecimento, a Ceasa. Mas esse alimento não chega na periferia em diversidade e qualidade. O alimento acaba sendo muito mais caro por causa do transporte, desse custo. Os ultraprocessados ficam por mais tempo no mercadinho do bairro, por exemplo. Ele tem investimento empresarial, industrial, uma política de ponta a ponta. O ultraprocessado chega ao mercadinho da periferia, o que não acontece com o produto in natura, em que há a necessidade de um movimento do comerciante ou da população para buscá-lo."

A socióloga explicou que é certo que precisaremos repensar os alimentos que consumimos, tanto pela população quanto pelos produtores, com um olhar mais ecologicamente sustentável. 

"Além dos malefícios dos ultraprocessados para a saúde, há um excesso de resíduos. Produzimos muito lixo plástico e não temos uma política reversa de resíduos que seja significativa. Nós vamos precisar passar por algumas taxações. O Brasil tem alguns incentivos para refrigerantes, bebidas açucaradas. São alimentos mais baratos do que uma fruta. E o impacto que isso tem em uma família de baixa renda é muito grande. Vivemos um problema de saúde pública que são as doenças crônicas não transmissíveis, que estão vinculadas à alimentação. Refrigerante, bebida açucarada em excesso, comida com excesso de gordura e sal que traz hipertensão, diabetes, colesterol."

Como a fome é multifatorial, o combate a ela também precisaria envolver diversos setores e medidas. E, principalmente, ser tratada em âmbito nacional. "Acredito que há políticas públicas que são possíveis de ser implementadas com esse movimento, com a melhora da questão logística. Por exemplo, ter mercados populares, sacolões próximos às periferias e com custo menor."

Dentro de uma ótica cultural, um grande desafio para as próximas décadas será o resgate da soberania alimentar, da memória, de valorizar mais os alimentos produzidos em território nacional. Para isso, é imprescindível investir na agricultura familiar e na produção de pequena escala, inserindo novas pessoas e dando assistência, inclusive tecnológica, para quem realiza esse tipo de produção. 

'Evolução Populacional'

Esta é a segunda matéria publicada sobre os dilemas e desafios para o futuro da população que, no Brasil, continuará crescendo até o final da década de 2040, atingindo 231 milhões. Toda terça-feira, até o dia 15 de novembro, o Correio Popular publicará reportagens abordando temas relativos ao crescimento populacional.

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