Núcleo urbano informal localizado na Área de Proteção Ambiental (APA) Campo Grande, em Campinas (Divulgação)
Os moradores de sete núcleos urbanos informais localizados na Área de Proteção Ambiental (APA) Campo Grande, situada no distrito de Campinas de mesmo nome, enfrentam uma série de desafios na regularização de suas propriedades. Atualmente, estão buscando um diálogo com a Prefeitura de Campinas para a aplicação da legislação vigente. Esta legislação visa resolver o impasse em benefício das aproximadamente 1.600 famílias residentes nessas áreas, as quais desejam evitar a demolição de suas residências pelo Poder Público.
Esses núcleos, embora informais, já estão consolidados em termos de ocupação, com características que dificultam uma reversão imobiliária. Isso se deve ao longo período de ocupação, à natureza das construções, à disposição das vias de circulação e à presença de equipamentos públicos. Essa condição é respaldada pela Lei 13.465/2017, conhecida como Lei da Reurb, que trata da regularização fundiária tanto em áreas urbanas quanto rurais.
Os sete núcleos - Espaço Feliz, Estância Pantanal, Paraíso das Palmeiras, Recanto do Lago, Sítio do Lago, Sítio Monte Verde e Sítio Montes Claros - cada um com sua própria associação, surgiram a partir de um loteamento irregular da área dentro da APA Campo Grande. Desde a criação da APA em 2011, entretanto, não foi desenvolvido um plano de manejo, embora isso seja obrigatório por lei e tenha sido objeto de cobranças pelo Ministério Público.
Apesar de a criação de um conselho gestor ser também obrigatória no momento da criação da APA, isso só foi efetivado há dois anos, e suas reuniões começaram recentemente, de forma virtual e sem a participação de representantes das associações locais.
Segundo Tiago Martins, advogado especializado em Direito Ambiental e mestre em Direito e Políticas Públicas, representante das partes envolvidas no litígio, é fundamental reconhecer a relevância ambiental tanto da Área de Proteção Ambiental (APA) quanto do Parque Municipal do Campo Grande, ambos localizados no distrito de Campinas com o mesmo nome. Ambos desempenham um papel crucial no contexto biológico e na preservação dos recursos naturais de Campinas, especialmente dos mananciais. No entanto, ele enfatiza a necessidade de evitar uma visão simplista da situação.
Martins destaca que, embora a região da APA seja considerada juridicamente como área rural de acordo com o decreto municipal 17.357/2011, a realidade é bastante diferente. A área, segundo o advogado, está sob uma intensa pressão urbana e tem servido como um refúgio para o crescimento desordenado da cidade em larga escala. Ele ressalta que essa pressão não se restringe apenas aos assentamentos informais, conhecidos como "favelas" pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mas também abrange loteamentos irregulares e clandestinos, nenhum dos quais é representado por seus clientes.
Ele destaca que, em comparação, o processo licitatório para o plano de manejo da APA Campinas, que abrange os distritos de Sousas e Joaquim Egídio, na região leste, e parte do bairro Carlos Gomes, na região norte da cidade, durou apenas um ano, enquanto o estudo subjacente ao plano levou mais dois anos para ser concluído.
"A APA é uma unidade de conservação de uso sustentável. É a mais flexível de todas, pois ela permite que além de proteger os recursos naturais, os seus moradores a utilizem dentro de critérios específicos que vem de um plano de manejo. Agora, a toque de caixa, estão elaborando um plano de manejo para justificar a impossibilidade de regularização dos núcleos urbanos informais consolidados no local para que então a Prefeitura tome a mais simplória das medidas, que seria a demolição. As associações não querem criar um embate com o Poder Público, apenas querem apresentar aspectos técnicos. Buscam o diálogo", esclarece o advogado.
Em setembro do ano passado, a Prefeitura moveu uma Ação Civil Pública contra as associações com o objetivo de realizar demolições. De acordo com Martins, as associações já apresentaram defesa e documentos técnicos que levaram um ano e meio para serem concluídos e que evidenciam o processo de consolidação urbana da região foram incluídos no processo. Entre esses documentos está o parecer jurídico de um renomado especialista em Direito Ambiental, que é uma autoridade na área, destacando a viabilidade jurídica da aplicação da Lei da Reurb nesse caso específico.
LEI DA REURB
A questão atual teve origem na comercialização de lotes em áreas privadas com características urbanas, de forma irregular. Embora os terrenos tenham sido efetivamente vendidos por seus proprietários, diversos requisitos jurídicos essenciais não foram observados durante esse processo. Martins destaca que esses lotes não foram objeto de grilagem ou outros tipos de crimes que os caracterizariam como clandestinos.
Segundo Martins, existe uma transição entre o loteamento irregular e a consolidação dos núcleos urbanos informais, e a regularização definitiva desses núcleos passa pela aplicação da Lei da Reurb, como mencionado anteriormente.
"No entanto, não estamos usando a Lei da Reurb como uma maneira de evitar a responsabilização daqueles que realizaram loteamentos irregulares. O que ocorreu na área é uma situação comum em todo o Brasil, especialmente em municípios em expansão. Muitas vezes, um proprietário vende um terreno e o comprador realiza o loteamento sem seguir as devidas regulamentações. Essas áreas irregulares são uma realidade nacional e não se restringem exclusivamente às pessoas de baixa renda", esclarece Martins.
Ele destaca que "existem prédios e condomínios habitados por pessoas de grande poder aquisitivo que não estão devidamente regularizados, seja por questões documentais ou simplesmente porque o crescimento ocorreu sem a devida fiscalização por parte do Poder Público. Diante dessa realidade, o legislador reconheceu a necessidade de estabelecer uma normativa eficaz para regularizar essas áreas. Caso contrário, o município continuaria perdendo receitas tributárias e os residentes dessas áreas permaneceriam privados do acesso a serviços essenciais, como energia elétrica e água".
Nos núcleos localizados dentro da APA Campo Grande, alguns serviços básicos estão disponíveis, porém Martins ressalta que a CPFL, por exemplo, enfrenta dificuldades legais para fornecer seus serviços, devido à indefinição entre irregularidade e clandestinidade, e por não poder agir sem a autorização da Prefeitura.
Ele também observa que "uma vez que a Reurb seja implementada, cada lote passa a ser de propriedade formal de cada dono de lote, pois se trata de um processo de regularização. Cada lote receberá sua documentação e será incorporado ao plano diretor da cidade, devendo obedecer às normas estabelecidas pelo Código de Conduta Urbanística municipal. Ou seja, os benefícios não se limitam apenas aos direitos, mas também às responsabilidades".
IMPORTÂNCIA DA APA
Martins enfatiza que A APA Campo Grande desempenha um papel fundamental no abastecimento de água para Campinas e seus municípios vizinhos, especialmente devido à presença de 62 nascentes em seu território. Ele afirma que a aplicação da Lei da Reurb em áreas de proteção ambiental é viável, e estudos realizados confirmam essa possibilidade para a região em questão. O advogado ressalta que o que falta agora é um diálogo efetivo entre os três principais atores envolvidos na situação: a sociedade civil organizada, representada pelas associações; a Prefeitura, que, segundo ele, ainda não demonstrou abertura para o diálogo; e o Ministério Público Estadual.
"O diálogo torna-se essencial agora, considerando que a APA Campo Grande é crucial para a manutenção do equilíbrio ecológico e o abastecimento de água na região de Campinas. Isso não é incompatível com a possibilidade de aplicação da Reurb na área. Vale ressaltar que isso não implica na transformação da área em um local para novos loteamentos ou condomínios. Trata-se, na verdade, da regularização de uma área urbana já consolidada. Qualquer outro empreendimento imobiliário futuro precisará ser realizado fora dos limites da APA", esclarece o advogado.
AÇÕES EM ANDAMENTO
Atualmente, duas Ações Civis Públicas estão em curso relacionadas ao caso. A primeira foi movida pela Prefeitura contra as associações em setembro do ano passado, buscando a demolição das construções. A segunda, iniciada pelo Ministério Público Estadual em novembro também do ano passado, tem como objetivo pressionar a Prefeitura de Campinas a desenvolver um plano de manejo para a área.
Especificamente em relação à primeira ação, Martins observa que a Prefeitura não menciona em momento algum a Lei da Reurb. "Isso pode ter sido uma estratégia deliberada deles, talvez para evitar abordar a questão da regularização dos imóveis. Além disso, parece que há um receio de admitir que o núcleo está consolidado e que, com a criação do Conselho Gestor, o Ministério Público possa instaurar uma ação contra a Prefeitura para a aplicação da Reurb, como aconteceu com a implantação do plano de manejo. No entanto, tudo isso poderia ter sido evitado com um diálogo efetivo".
Ele continua explicando que "o foco do Ministério Público é obter um plano de manejo e a demolição dos empreendimentos clandestinos. Já conversamos com o Ministério Público e eles afirmaram que se a Prefeitura estiver disposta a dialogar, eles também estarão".
Martins lamenta que, embora seja comum uma Ação Civil Pública durar até uma década, seja impraticável que, após nove meses desde o início da ação movida pela Prefeitura contra as associações, nem todos os réus tenham sido citados até o momento. "Já me dirigi ao juizo e apresentei voluntariamente meus clientes, além de defender seus interesses. Caso contrário, provavelmente, apenas três dos meus sete clientes teriam sido citados até agora", lamenta.
FAZENDO HISTÓRIA
Em agosto do ano passado, Campinas testemunhou a implementação pioneira da Reurb na cidade. Ao contrário da Reurb de interesse social, destinada a regularizar áreas com alto grau de vulnerabilidade econômica e social, e cujo custo é totalmente assumido pelo poder público, a implementação realizada assemelha-se àquela que as associações de moradores dos núcleos localizados na APA Campo Grande reivindicam, conhecida como Reurb de interesse específico. Nesse último caso, o ônus financeiro recai inteiramente sobre os interessados, sem sobrecarregar o Poder Público, e visa especificamente os chamados "núcleos urbanos informais consolidados".
"Campinas, como o maior município do interior do país, pode fazer história com uma política pública paradigmática e isso não quer dizer que vai ser de qualquer jeito, que o município não vá impor diversas medidas compensatórias ambientais, não que isso será feito do dia para a noite, que não vá haver rigidez, responsabilizações e afins. É simplesmente a oportunidade de estabelecer uma política de desenvolvimento urbano e evitar que ações como as que estão na Justiça agora durem anos, pois quanto mais demorar para que isso seja finalizado, mais consolidação e mais pressão urbanística desordenada vai haver no local", explana Martins.
Ele diz ainda que "hoje, a Prefeitura tem receio de implantar políticas públicas na área por medo de ficar constatado que ela não agiu na boa gestão da APA. Mas se agiu ou não agiu, não é o nosso interesse brigar com o Poder Público. Hoje o nosso interesse é, em comum acordo, juntar forças para que a gente possa dar um direcionamento para a APA, corrigindo o que precisa ser corrigido, mantendo as moradias que ali estão, que são de pessoas que investiram nesses imóveis, naquele lugar. Não são pessoas ricas. Não são condomínios de pessoas ricas. São pessoas que têm o direito em relação à Reurb, que não é uma escolha da Prefeitura, uma vez que ela é um direito subjetivo dessas pessoas, ou seja, está previsto em lei. Não é uma alternativa que a Prefeitura, de bom grado fará a essas pessoas. É um direito delas".
PARQUE MUNICIPAL DO CAMPO GRANDE
O Parque Municipal do Campo Grande é uma área de preservação de proteção integral localizada no distrito campineiro de mesmo nome.
Atualmente, em decorrência da Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Estadual contra a Prefeitura de Campinas, o juiz responsável determinou, conforme relato do advogado, a delimitação de uma área de três mil metros ao redor do Parque, na qual não devem ser realizadas construções.
O advogado destaca que o ponto da APA Campo Grande mais próximo ao Parque Municipal do Campo Grande está a uma distância de 3,21 km (ou 3,18 km considerando a margem de erro), observando: "com três mil metros, ainda restam 210 m até a APA. No entanto, se considerarmos os loteamentos, o núcleo mais próximo do Parque está a 4 km."
Ele continua explicando que "a Prefeitura, forçando uma tese, argumenta que a APA Campo Grande possui características tanto de proteção integral quanto de uso sustentável, embora tal figura jurídica híbrida não exista no ordenamento jurídico brasileiro. Além disso, alega estar próxima ao Parque Municipal, o que não condiz com a realidade. Entre a APA e os núcleos e o Parque Municipal existem vários adensamentos urbanos, e não apenas áreas verdes."
GROTA AZUL
Um dos diversos núcleos urbanos situados dentro da APA Campo Grande é o Grota Azul, que se encontra entre os outros sete loteamentos. De acordo com Martins, os representantes deste núcleo foram convocados pela Prefeitura para iniciar o processo de regularização do loteamento, tendo um prazo de noventa dias após a notificação, datada de 7 de dezembro do ano passado. Agora, ele aguarda o chamado dos demais representantes, que são seus clientes.
PERSPECTIVAS FUTURAS
Martins esclarece que, "no futuro, com a regulamentação, aquele que detém a posse do imóvel, seguindo todas as exigências legais referentes às APAs, terá liberdade para dispor de sua propriedade conforme desejar, inclusive vendê-la posteriormente. No entanto, é importante ressaltar que a residência estará sujeita ao plano de manejo da APA Campo Grande. Esse plano de manejo não pode ser elaborado sem a participação dos moradores dos núcleos, pois é um processo democrático que, até o momento, não ocorreu dessa maneira."
Ele continua explicando que é provável que a Prefeitura se apoie na chamada "tese temporal", estabelecendo que a regularização será concedida apenas aos núcleos que estejam estabelecidos há um determinado período de tempo. Contudo, ele destaca que "a tese temporal da Reurb é apenas um critério de referência, pois o que define a consolidação de um loteamento como um 'núcleo urbano informal consolidado', apto para a Reurb, são diversos aspectos, como a infraestrutura presente (como ruas e rede de energia elétrica) e a circulação de pessoas na área. Não é necessário que essas pessoas residam no local. Pode ser uma chácara que a pessoa utiliza apenas nos finais de semana, por exemplo. A consolidação é determinada por vários critérios, e não apenas pelo tempo de ocupação."
O advogado também prevê que o sucesso da causa dependerá de três elementos: a condução de estudos técnicos que demonstrem a consolidação urbana da área; a participação das associações na formulação do plano de manejo e o diálogo entre a Prefeitura, o Ministério Público Estadual e a sociedade civil organizada, representada pelas associações.
Ele acrescenta que todos os conflitos fundiários, urbanos ou agrários, em todo o Brasil, só podem ser resolvidos com segurança jurídica, conforme demonstrado pelos estudos, "e continuarão a ser. Ninguém está agindo de forma errada." Ele enfatiza a importância da organização da sociedade civil no diálogo com o Conselho Gestor da APA e lamenta a dificuldade de acesso à Prefeitura: "Não consigo sequer conversar."
Martins encerra dizendo que "o nosso grande intuito não é confrontar a Prefeitura, nem o Ministério Público e sim, dialogar com ambos, porque não é porque o loteamento é irregular que ele não pode ser regularizado. A violação existiu, mas se encaixa em outra lei, a 6.766/1979, que é a Lei do Parcelamento do Solo Urbano e essa pessoa deverá ser responsabilizada na esfera civil, administrativa, que seja. Outra coisa é o direito dessas pessoas a ter a Reurb. Na Ação Civil Pública e em diversos processos administrativos, a Prefeitura tem misturado muito as coisas e é preciso separar o joio do trigo. E buscamos tudo isso, aliado a proteção do meio ambiente, pois estas questões (regularização dos imóveis e proteção do meio ambiente) têm de andar de mãos dadas". Siga o perfil do Correio Popular no Instagram.