RELÍQUIAS

Nos trilhos de uma paixão

Filho de ferroviário, professor aposentado é aficionado por ferrovias ? em especial pela Companhia Mogiana de Estradas de Ferro

Francisco Lima Neto
01/03/2020 às 11:02.
Atualizado em 29/03/2022 às 19:27

O professor de geografia aposentado José Augusto Sales Saponari, de 76 anos, é um aficionado por ferrovias, em especial, pela Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. O encantamento era tamanho, que Seo Augusto, como é mais conhecido, fazia de tudo para acompanhar o pai, ferroviário, ao trabalho. Nem o fim da era das ferrovias, nem o passar dos anos conseguiram apagar esse amor. Sua casa é praticamente um museu dedicado à época áurea dos trens. O amor por tudo que envolve as ferrovias vem de berço. Seo Augusto nasceu imerso nesse meio. "Toda a minha família trabalhava nas ferrovias. Da família da minha mãe, a maior parte. Os irmãos e os primos dela, muitos primos, trabalhavam na ferrovia. A parte do meu pai também, mas era menos gente", explica. "Meu avô era guarda de trem, tinha um tio meu que trabalhava no restaurante. Tinha gente que na instalação das linhas, tinha também manobrista. Eu tinha parentes nas mais diversas funções", conta. De acordo com ele, nas décadas de 1920 e 1930, o charme era trabalhar na ferrovia. E isso despertava até inveja nas pessoas. Mas, ao contrário do que podia parecer, a situação não era fácil. "A maioria não tinha nem o ensino primário. Geralmente, os funcionários entravam trabalhando de graça por um ano para aprender o serviço, e só depois eram efetivados. Foi assim com meu pai também. Ele era telegrafista, praticamente analfabeto. Minha mãe era professora primária e ensinou ele a ler. E ele a ensinou a cozinhar", conta, rindo. Um de seus tios era desenhista dos vagões da Mogiana. O pai era telegrafista da Companhia Paulista de Estradas de Ferro. "A minha ligação com a Mogiana é meu lado sensível, humilde. A Paulista seguia a esnobação inglesa. No restaurante do trem você só ia se estivesse de terno. Era uma linha muito rigorosa com o comportamento das pessoas. A Mogiana não tinha esse rigor todo", detalha. Pela região passavam a Estrada de Ferro Sorocabana, a Companhia Mogiana de Estradas de Ferro e a Companhia Paulista de Estradas de Ferro. Seo Augusto viveu a época áurea das três, na década de 1950. "Eu era capeta na escola, terrível e aprontava em casa. Eu aprontava de propósito pra minha mãe me mandar de castigo com meu pai para o trabalho", ri, rememorando as peripécias infantis. Mal sabia a mãe que não passava de uma tática para ficar com o pai em meio àquele universo mágico. "Eu adorava. Iam outros meninos de castigo também. Lá, a gente brincava de esconde-esconde, Tarzan, nos vagões parados. Eu aprontava todo dia para ir de castigo e minha mãe nunca percebia isso. Eu vivi naquele mundo", conta saudoso. Seo Augusto era levado e repetiu de ano várias vezes. Em uma certa época, o pai trabalhava no escritório da ferrovia, onde hoje é a Estação Cultura de Campinas. "Eu levava almoço para ele. Eu chegava escondido pelo lado de fora, bem abaixado e punha a marmita na janela dele, no horário de ir pra escola. Ele me puxava e todo dia era um sermão, era a mesma ladainha. Me comparava com os filhos dos amigos dele, que eram estudiosos e passavam de ano, todo dia era isso, brigava comigo e me mandava ir para a escola", conta. Seo Augusto revela uma frustração: nunca ter trabalhado na ferrovia. "Meu sonho e de todos os meninos era ser maquinista. Meu pai não queria de jeito nenhum, queria que eu estudasse. Em parte foi bom, mas ficou uma mágoa. Eu queria ser maquinista. Tinha esse sonho de viajar com a locomotiva", confessa. Para ele, foi um grande baque o processo de desativação das ferrovias. "Foi a morte. A gente morre um pouco por dentro porque não foi só a minha família. Indiretamente, atingiu todo mundo", opina. A construção das ferrovias envolveu materiais finos vindos da Europa. "Os tijolos da Estação Cultura são ingleses. Tudo o que era grosseiro, como tijolos e madeira, era inglês. As coisas finas, como os lustres, os cristais, as louças, eram austríacos, franceses ou belgas", diz. Fim das companhias alimentou hábito de colecionar Com o fim das companhias de trem, muito de seus objetos ficaram abandonados. "Os nossos ancestrais deram a vida por isso aí e, de repente, ficou tudo jogado, aberto. Eu que sou filho, neto, cunhado, primo, sobrinho de ferroviários, me doía o coração ver as pessoas dando marteladas numa mesa pra poder fazer fogueira à noite", diz José Augusto Sales Saponari. Por conta disso, o hábito de colecionar itens da ferrovia, desde pequeno, se intensificou. E tudo o que encontrava pela frente era guardado. A ponto de a casa onde mora, no Jardim Eulina, ter se tornado uma espécie de museu da ferrovia. Visitar a casa é como ingressar numa outra época, com mais charme e leveza. Na sala, os assentos são todos bancos de trem ou da Estação Mogiana. Uma mesa, que fazia parte dos móveis de escritório da Mogiana, serve para exibir diversas louças, que eram utilizadas para servir refeições em vagões restaurantes de trens da Mogiana e da Estrada de Ferro Araraquarense. Na porta da residência, um capacho da Estação Sorocabana. Do lado direito tem um sino de trem. Uma parede ostenta uma placa com as regras da Companhia Mogiana, como, por exemplo, a proibição de viajar sem bilhete ou de cuspir dentro dos vagões. Ainda na sala, dois telégrafos, como os utilizados pelo pai no trabalho, estão em posição de destaque. Um telefone antigo, de madeira, que ainda funciona, está fixado na parede. Uma estante comporta várias miniaturas de locomotivas. Mais de 30 lanternas de sinalização, que ficavam no último vagão, estão expostas. Há uma coleção de moringas e potes, que serviam para armazenar água e café da Mogiana. Dois desses potes são raríssimos. Foram feitos em comemoração à instalação da República. A casa respira história. Ele tem um conjunto de bolsas que os guardas usavam dentro do trem para guardar os bilhetes e dinheiro dentro dos vagões, até 1950. Seo Augusto tem um livro com o título A Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, no seu 75º aniversário (1872-1947). "Achei décadas atrás, quando a estação nem era Estação Cultura ainda. Estava jogado no meio de camisinhas e restos de marmitex. Uma antiga janela de vagão foi instalada na cozinha da casa. Nas portas há a inscrição CM, que significa Companhia Mogiana. Todas pintadas de marrom e amarelo, como eram os vagões antigos. Pela casa há vários quadros com pinturas de estações ferroviárias diversas, cadeados e chaves imensos e pesadíssimos de ferrovias. O acervo é imenso. "Minha pretensão é deixar pra um museu, mas também não sei até que ponto. A gente vê tanta coisa errada. Tenho parente que doou coisas e sumiram. Tenho muita coisa, coisa guardada para restaurar", finaliza. 

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