FLEXIBILIZAÇÃO DO TRABALHO

Nômades digitais conciliam sonho de conhecer o mundo com o trabalho remoto

Relatório aponta 35 milhões de pessoas no planeta que trabalham enquanto visitam outros países

Isadora Stentzler/ [email protected]
13/09/2023 às 08:33.
Atualizado em 13/09/2023 às 08:33
Coworking em Barão Geraldo faz agendamentos para interessados em trabalhar no espaço colaborativo; local propiciou, por exemplo, que nômade digital oriundo da Alemanha pudesse trabalhar no fuso horário alemão diretamente de Campinas (Rodrigo Zanotto)

Coworking em Barão Geraldo faz agendamentos para interessados em trabalhar no espaço colaborativo; local propiciou, por exemplo, que nômade digital oriundo da Alemanha pudesse trabalhar no fuso horário alemão diretamente de Campinas (Rodrigo Zanotto)

Foi no auge da pandemia, em maio de 2020, que a jornalista Marina Guedes, hoje com 43 anos, decidiu se tornar nômade digital. Apaixonada por viagens, ela já vivia em um veleiro contando histórias como freelancer, até optar por fazer algo próprio unindo o amor pelo mar e o nomadismo digital. “Eu tinha vontade de trabalhar com assuntos ligados ao mar e conservação. Após ficar por quase 10 anos em Manaus, senti que era hora de fazer algo ligado ao mar. Tentei uma pós na Austrália. Não deu certo. Foi então que tive a ideia de viajar de barco. O que queria mesmo era viajar, que é a coisa que mais gosto na vida. Acho que em termos de nomadismo digital, posso dizer que entrou na minha vida durante a viagem de veleiro”, conta. Conciliar viagens com a possibilidade de fazer jornalismo foi essencial para ela lançar em 2020 o Maré Sonora, podcast que vai ao ar quinzenalmente, aos domingos, e que a permitiu se tornar uma nômade digital. Nele, ela traz histórias inspiradoras ligadas ao mar e também aborda assuntos sobre ciência, fotografia e viagens.

Marina recorda que ainda aos 16 anos, quando fez o primeiro intercâmbio, decidiu que não pararia de viajar. Desde então já foram 26 países visitados, incluindo aqueles que figuravam nos seus sonhos e que o nomadismo digital permitiu, como a ida para Polinésia Francesa, Nova Zelândia, Tasmânia, Geórgia do Sul e Antártida. “Passei dois meses num barco no começo desse ano”, relata ao lembrar sobre os dois últimos destinos. “Era um dos meus sonhos ir para a Geórgia do Sul. Uma das melhores viagens da minha vida.” Hoje, ela tem uma base na cidade de Rieti, na Itália, a 80 quilômetros de Roma, mas a maior parte do tempo passa navegando atrás de histórias. Segundo o Relatório Global de Tendências Migratórias 2022, da Fragomen, empresa especializada em migração, o nomadismo digital, como o de Marina, já conta com mais de 35 milhões de adeptos ao redor do globo. Esse conceito se apresenta como um modelo flexibilizado de trabalho, em que não há necessariamente um local fixo, como uma empresa. Embora possa ter horários a serem cumpridos, ele pode ser realizado em qualquer lugar do mundo e tem como fator essencial as ferramentas digitais.

Com a pandemia e o trabalho em home office esse perfil foi fortalecido, consolidando-se como forte tendência, já que muitas empresas passaram a adotar modelos híbridos de trabalho depois do fim da fase mais aguda da pandemia de covid-19. É dessa forma que muitas pessoas conseguem criar uma rotina permanente de viagens permanente aliadas ao trabalho. À medida que as empresas continuam a formalizar políticas de trabalho híbrido, os programas de imigração de trabalho remoto são favorecidos como um mecanismo para atrair investimentos e ajudar a reconstruir as economias afetadas pela pandemia. Apesar de um ritmo mais lento de mudanças na política para estas áreas, a lista de países com vistos para trabalho remoto e nomadismo digital continua a crescer.

A jornalista Marina Guedes já trabalhou como freelancer enquanto vivia em um veleiro; hoje ela conta histórias em um podcast e já visitou locais como Tasmânia, Polinésia Francesa e Bahamas (foto) (Arquivo Pessoal)

A jornalista Marina Guedes já trabalhou como freelancer enquanto vivia em um veleiro; hoje ela conta histórias em um podcast e já visitou locais como Tasmânia, Polinésia Francesa e Bahamas (foto) (Arquivo Pessoal)

Recentemente, na América Latina, o Brasil implementou um visto de um ano para nômades digitais. O visto oferece aos estrangeiros empregados fora do Brasil, ou que prestam serviços fora do país, a opção de residir e trabalhar remotamente do Brasil sem patrocínio do empregador local. Além disso, existem pelo menos 25 países que têm programas de trabalho para nômades digitais. Em um coworking localizado em Barão Geraldo, nômades digitais criam suas bases de trabalho enquanto permanecem em atividades de pesquisa. O proprietário do local e produtor cultural Eduardo Beluzzo, de 50 anos, conta que o espaço se mantém há oito anos como um local colaborativo. Ele não funciona com “portas abertas”. As pessoas precisam telefonar e agendar a sua ida. A partir disso, todos aqueles que querem usar a casa recebem uma chave. Esse modelo propiciou, por exemplo, que um nômade digital vindo da Alemanha pudesse trabalhar diretamente de Campinas e de acordo com o fuso alemão, relata Beluzzo, que ainda chama atenção para o efeito reverso: a exportação de nômades digitais. “Muitos nômades têm esse espaço como base e saem daqui para suas viagens temporárias. A pandemia fomentou o nomadismo digital, mas como nosso modelo tem outra proposta, ele acolhe pessoas que vivem dessa forma nos períodos de ‘descanso’”, analisa.

De acordo com a consultora de negócios do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), Juliana Segallio, há uma tendência de mercado que favorece os modelos híbridos, mas ela alerta para os cuidados necessários que devem ser tomados por quem for se arriscar no nomadismo. Ela cita três fatores que precisam ser levados em consideração. “Primeiro, seja muito obsessivo em relação ao conhecimento do cliente ideal”, aponta. Ela orienta que cada nômade encontre o produto a ser oferecido e, mais do que isso, a quem será oferecido, para que não haja surpresas no período de viagens. “Alguns profissionais são muito apaixonados, mas esquecem quem é que compra. Então seja obsessivo em conhecer o foco do cliente.” O segundo radar é dominar e conhecer o meio digital, ferramenta que proporcionará o nômade a ser, de fato, digital. O terceiro é organizar os testes das ações. “É preciso entender que as pessoas mudam de hábitos e seguem tendências. Então o empresário precisa testar as formas de trabalhar e monitorar essa estratégia, que pode ser mudada adiante.” HORA DE DESACELERAR Apesar da sedução de trabalhar longe de um escritório e poder viajar o mundo, não são todas as pessoas que se encaixam nesse modelo. Após visitar 10 estados brasileiros e 15 países em dois anos como nômade digital, o publicitário Henrique Trovó, hoje com 29 anos, optou por desacelerar o ritmo. Ele começou a ser nômade em maio de 2021, logo após conseguir um trabalho remoto. Natural de Campinas, ele morava e trabalhava, na época, na capital São Paulo. Após a mudança de emprego, decidiu que colocaria em prática o sonho de sua infância: viver viajando. “Eu era CLT, mas nesse trabalho eu tinha mais flexibilidade. Canoa Quebrada, no Ceará, foi o primeiro lugar que eu fui”, recorda Trovó ao falar sobre o começo da jornada no nomadismo digital. Com essa flexibilidade, ele dividia sua rotina com reuniões pela manhã, pausas ao meio-dia para ir à praia, volta ao compromissos da tarde e fim do expediente às 18h. Depois do Ceará, ele passou por Rio de Janeiro, Sul da Bahia e Uberlândia - intercalando com vindas a Campinas, onde visitava a família

Para dar conta das viagens, ele reservava os destinos com antecedências. Em alguns lugares, o publicitário morava por meses. Em outros, por apenas algumas semanas. Ele conta que levava tudo o que possuía em uma mochila de 18 mil litros. Foi assim que ele viajou para a Croácia e ao Leste Europeu, até chegar o fim do ano passado. “Eu estava cansado” recorda. “Chega um momento em que é tanto estímulo, tanta coisa nova, que comecei a ficar cansado. Uma pessoa normal trabalha 11 meses e viaja um. Eu estava 11 meses viajando e apenas parava em um. Decidi que precisava diminuir o ritmo e que me mudaria para Aracaju, onde comecei a namorar e adotei um gato.” A viagem de despedida foi para Buenos Aires, período que coincidiu com o fechamento da empresa em que ele trabalhava. Hoje, desempregado, guarda com carinho o que viveu enquanto nômade, mas não pretende voltar a esse ritmo tão cedo. “Tenho saudade de ser nômade. Eu vivi isso! Foi incrível! Foi o meu sonho, mas no momento eu só quero um trabalho remoto para poder ter flexibilidade.”

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