Ausência

Nascimentos diminuem, mas sobem registros sem nome do pai em Campinas

Em 2016, 2,2% dos recém-nascidos só tinham a mãe na certidão; agora, são 4,1%

Isadora Stentzler/ isadora.stentzler@rac.com.br
19/07/2022 às 09:08.
Atualizado em 19/07/2022 às 09:08

Uma antiga fotografia é uma das poucas lembranças que Isabela do Prado Soares tem de seu pai, cujo nome não constava na certidão de nascimento dela até os 3 anos de idade (Gustavo Tilio)

Entre 1° de janeiro e 15 de julho deste ano, 381 recém-nascidos em Campinas não tiveram o nome do pai registrado na certidão de nascimento, segundo dados do Portal da Transparência da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), levantados pelo Correio Popular. O índice representa 4,1% de todos os 9.100 nascimentos registrados neste ano. Para auxiliar no reconhecimento da paternidade e garantir os direitos às crianças, o Conselho Nacional das Defensoras e Defensores Públicos-Gerais (Condege) — junto com a Defensoria Pública de São Paulo — mantém o Programa “Meu pai tem nome”.

Enquanto o número de nascimentos em Campinas diminuiu em seis anos, os registros sem identificação do pai aumentaram nesse mesmo período. Em 2016, houve 20.284 nascimentos na cidade, dos quais 2,2% (449 recém-nascidos) não tinham o nome do pai no registro. No ano seguinte, 2017, o índice de registros com ausência do pai subiu para 3,2%.

Ano a ano, o número de nascimentos foi diminuindo em Campinas, mas o índice de registros com pai ausente aumentou. Em 2019, o percentual subiu para 3,5%; em 2020 para 3,8%; e em 2021, para 4%. Em 2022, só nos primeiros seis meses e meio, o índice é de 4,1%. Na média do acumulado de 2016 a 2022, foram 4,2 mil recém-nascidos nessa condição: 3,4% de todos os 123.347 nascimentos no período. 

Reconhecimento de paternidade 

Na contrapartida das ausências, iniciativas da Defensoria Pública do Estado de São Paulo junto ao Condege buscam sanar esse gargalo com ações para o reconhecimento de paternidade. Uma delas é o programa “Meu pai tem nome”, que ocorre em conjunto com todas as Defensorias Públicas do Estado em um dia D, no mês de março. Além disso, o ano inteiro, a Defensoria Pública realiza atendimentos que buscam, por vias extra-judiciais e judiciais, garantir o reconhecimento da paternidade, muitas por meio de exame de DNA.

O não reconhecimento por parte de pais ocorre por diversos fatores, como abandono, não identificação do pai ou mesmo pela negligência paterna, que é quando a mãe sabe quem é o pai, faz o contato e mesmo assim há a negação da paternidade. Nesses casos, muitas mães optam por buscar a Justiça e garantir o direito aos filhos. 

Só neste ano, de acordo com indicadores da Arpen, foram 105 reconhecimentos de paternidade. Esses casos não dizem respeito, necessariamente, ao número de nascidos no ano, pois podem ser processos envolvendo nascimentos mais antigos que, só agora, tiveram o reconhecimento do pai. 

Em todo o ano passado, esse número foi de 212. Na série histórica levantada pelo Correio Popular, de 2016 a 2022, o acumulado aponta para 1.265 reconhecimentos. 

A Defensoria Pública do Estado de São Paulo atua nessa frente, atendendo mães que buscam a garantia desse direito. De acordo com a defensora pública Aline do Couto, assessora cível da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, na maioria dos casos, as crianças ainda são pequenas e os pais foram acionados pelas mães, ainda durante a gravidez, mas negligenciaram a paternidade.

Após o nascimento, os serviços oferecidos pela Defensoria ocorrem de duas formas: extra-judicial e judicial. “Muitas vezes, os pais não fazem o reconhecimento porque querem o exame de DNA. Para isso, temos convênio com o Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo (Imesc) e Universidade Estadual Paulista (Unesp) para fazer o exame de forma gratuita. Nos casos em que isso é feito extra-judicialmente, a demora é de cerca de 60 dias. Geralmente, após o exame, os pais acabam reconhecendo. Já quando o genitor não é conhecido, a gente precisa judicializar, e aí é mais demorado”, aponta.

Essa demora ocorre quando não ha muitas informações a respeito do genitor (nome incompleto ou desconhecimento de endereço) ou quando ele mora em outro Estado. O Imesc consegue viabilizar a coleta mesmo nessas condições, mas o processo acaba sendo mais moroso.

Com o reconhecimento e registro do pai, é possível viabilizar que essas famílias contem com o pagamento de pensão alimentícia. Ainda que o pai não aceite fazer isso, logo após o reconhecimento, Aline explica que é possível solicitar a garantia. Esse é um dos motivos, aponta a defensora, que faz com que mães busquem mais cedo o reconhecimento paterno. 

É possível ainda que a própria criança, quando chega à idade adulta, faça o pedido de reconhecimento. “Isso nunca vai prescrever, é um direito da criança ter o reconhecimento de seu vínculo biológico. Mesmo que o pai tenha morrido, é possível o reconhecimento, com irmãos. A partir dos 18 anos, é uma escolha da criança, agora maior de idade. Mas muitos acabam não buscando mais. É o pensamento de que ‘ah, se me abandonou, não faço muita questão de ter no meu registro’”.

Registro não supre ausência 

Aos 21 anos, Isabela do Prado Soares disse que tem poucas lembranças de seu pai. Até os 3 anos, ela conviveu com o limbo de não ter o nome do pai no registro, mas o reconhecimento da paternidade não supriu a ausência da companhia, que carrega até hoje.

“Ele teve outros filhos e foi presente com eles. Sempre me perguntei: por que comigo não? Me pego pensando nessas coisas. Ainda há um trauma de abandono e acho que isso foi um dos desencadeadores do meu transtorno de borderline. Mas desconstruí muito a visão de família, acho que isso me auxiliou de alguma forma”, pondera. 

Isabela lembra que a primeira lembrança com seu pai veio aos 3 anos. Quando faltavam dois meses para ela nascer, o pai se afastou da mãe de Isabela, deixando-a lidar com o parto e os primeiros anos da filha, sozinha.

Quando Isabela tinha 3 anos, o pai retornou e registrou a menina. Das memórias da jovem, estão as histórias de que o pai era músico e havia se envolvido com drogas, viajando pelo Brasil com seu trabalho. No ano de 2004, ele retornou à família. Naquele dia, conta Isabela, ele chegou segurando um ovo de Páscoa, mas ela, sem reconhecer o homem, escondeu-se embaixo da mesa. “Eu não tinha consciência de que era meu pai. Para mim, era um ser estranho e não sabia por quê deveria interagir com ele.”

Essa estranheza a companhou até os 8 anos. Uma das recordações que a faz chorar é quando se lembra que ganhou dele um lápis para desenhar. Em um dia, enquanto rabiscava um caderno, pediu à mãe: “Queria ter meu pai para apontar meu lápis”. 

Ainda que o pai tenha feito o registro no documento e ela soubesse quem ele era, não contou com sua companhia em cada Dia dos Pais. Na escola, era o pai de uma amiga quem a acompanhava nas homenagens.

O que ela mantém de recordação é uma foto tirada na sua tenra idade, ao lado do pai e da mãe. 

“Ele morreu e só descobri isso porque um dia o busquei nas redes sociais. Um amigo disse que eu me parecia muito com minha mãe e falei que era porque ele não conhecia meu pai. Quando busquei no Facebook, vi que só tinha uma tarja, em memória. O que eu soube é que foi de overdose. Ele não esteve comigo durante toda a minha vida e essa diferença não será sentida agora. Entendo que família é algo muito mais amplo que apenas pai e mãe, são amigos também”, avalia.

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