ESPECIAL

NA: solidariedade ajuda a prevenir o suicídio

A tentativa de por fim à própria vida é tratada pela Organização Mundial de Saúde como um problema de saúde pública: índices têm aumentado no mundo

Luis Manzoli
17/09/2016 às 19:48.
Atualizado em 23/04/2022 às 00:08
Lema dos Neuróticos Anônimos, que atuam com base na filosofia do AA; (Patrícia Domingos)

Lema dos Neuróticos Anônimos, que atuam com base na filosofia do AA; (Patrícia Domingos)

Em uma pequena sala anexa ao salão paroquial da igreja Nossa Senhora de Fátima, no bairro do Taquaral, em Campinas, seis pessoas dividem histórias de dor e superação. Não parece, mas quatro delas já tentaram se matar ou ao menos já levaram essa hipótese a sério. Eles são os Neuróticos Anônimos (NA) e, a despeito do nome pouco lisonjeiro, lutam por uma causa bastante digna: afugentar o fantasma do suicídio e acabar com o tabu, individual e social, em torno do tema. O mal é tratado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um problema de saúde pública. Não é por acaso. Nos últimos 60 anos, os índices de suicídio têm aumentado no mundo, até caírem na década de 90. Entre os anos de 2000 e 2012, entre os 172 países que enviam dados sobre suicídio para a OMS, em apenas 29 (17%), observou-se elevação de tais índices. E o Brasil está entre eles. Foto: Patrícia Domingos Detalhe da reunião do grupo do Taquaral, em Campinas: sem cobrança e censura, participantes se transformam em uma família Por aqui, o índice de mortalidade por suicídio foi de 5,8 mortes para cada 100 mil habitantes em 2012. São 32 casos por dia — mais que os óbitos provocados pelo HIV e alguns tipos de câncer. No mundo, são mais de 800 mil registros por ano (ou 40 mortes por segundo). Para o NA, a melhor forma de combater o problema é justamente falando sobre ele. Algo que o grupo já faz há quase 20 anos, e que apenas recentemente tem sido adotado pela comunidade de forma geral — existe a ideia comum de que falar sobre o suicídio pode ser o empurrãozinho que faltava para quem pensa em se matar, uma concepção que tem se mostrado cada vez mais ilusória. No NA, que segue a mesma base teórica dos Alcoólicos Anônimos, os próprios atendidos são, também, os voluntários que levam o programa adiante. Se revezam na “liderança” das sessões e arrecadam dinheiro entre si para manter o café, com bolo e biscoitos, servidos no intervalo das reuniões — no dia que a reportagem participou do encontro, foram arrecadados R$ 37,50. Uma caixa de lenços repousa ao lado da cadeira usada para os relatos. Inicialmente, o ambiente pode parecer ameaçador, com tantos cartazes e “ordens” a serem seguidas, mas com poucos minutos, e diante de depoimentos transparentes e emocionados, é impossível não se sentir acolhido. Força para seguir Em Campinas, o NA tem dois grupos. Um deles tem as reuniões aos sábados, na Nossa Senhora de Fátima. O outro, aos domingos, na Igreja do Carmo. Os encontros são totalmente abertos. E, muito embora o suicídio não seja o “carro-chefe” do projeto, é nele que desembocam a maior parte dos relatos. A aposentada Eloisa (os nomes usados aqui são fictícios — o anonimato é essencial para o funcionamento do NA), de 75 anos, começou a frequentar o grupo há 16 anos. Seu marido se matou em 1986, e a deixou com quatro filhos, de 7, 9, 11 e 12 anos. “Ele tentou três vezes, de formas diferentes. Até que conseguiu. Foi um choque. Era uma pessoa alegre, falante, mas internamente não administrava seus problemas”, diz. Para ela, o pior sentimento é o de culpa. “Hoje sei que não podia fazer nada, que era um problema dele. Mas foi muito difícil superar.” Foi com o NA que ela encontrou forças para seguir adiante. “No começo não acreditava que fosse ajudar. Hoje, já estou bem, mas não consigo deixar de vir. Fiz amigos, pessoas que me respeitam e me querem bem”, diz. O grupo também reúne quem já sofreu com o problema na própria pele. Como Pedro, de 51 anos, que sofre de transtorno bipolar e ficou 15 dias na UTI depois de tentar se matar em 2004. “Nessa época eu trabalhava 12 horas por dia. Minha vida era trabalho, trabalho. Não aguentei.” O caso de Denise, de 41 anos, é mais recente. Ela sofre de depressão e, há pouco mais de um ano, decidiu que cometeria suicídio. Resolveu avisar a mãe, a tempo de evitar o pior. “Aqui que tive o insight. Descobri que não posso controlar minha vida. Isso depende do poder superior. Sou impotente sobre mim mesma. Isso para mim foi uma catarse, um achado”, diz. As causas do sofrimento, além de transtornos mentais conhecidos, em especial a depressão, são múltiplas. Os relatos incluem dificuldades na infância e adolescência, brigas na família, problemas de relacionamento e socialização, além de excesso de trabalho. Em comum, apenas o encontro da “cura” no NA, por meio do compartilhamento de sentimentos e a uma audiência que não julga e não pune. No NA, os participantes são “voluntários de si mesmos”, e o apoio vem justamente de quem também precisa ser ajudado. “Quando cheguei aqui estava exausta. Não aguentava mais lutar contra mim mesma. Hoje estou mais em pé do que nunca. O NA me ajudou a tirar um monstro das minhas costas”, afirma Denise. SETEMBRO AMARELO É impossível falar sobre prevenção ao suicídio sem mencionar o trabalho do CVV (Centro de Valorização da Vida). Há mais de 40 anos, a entidade atende pessoas em situações extremas — pelo telefone (no número 141) e, mais recentemente, por ferramentas de comunicação virtual. Campinas não tem um posto do CVV (mas o atendimento ainda pode ser feito no modo on-line). Na Região Metropolitana, apenas Americana tem o serviço. Há dois anos, a entidade lançou a campanha Setembro Amarelo, para estimular a divulgação de informações e realizar atividades sobre a prevenção ao suicídio — a cor faz referência ao ato de iluminar, lançar luz sobre um tema ainda obscuro. Eliane Soares, de 44 anos, voluntária do CVV de Piracicaba, diz que o objetivo é despertar a atenção em pessoas próximas a possíveis vítimas. “Mais de 90% dos suicídios poderiam ser evitados com acompanhamento médico”, diz Eliane. Amigos da Vida: apoio à prova de julgamentos Não fosse a sinalização na fachada, a Sociedade Amigos da Vida passaria como mais uma típica casa de vila, no bairro da Ponte Preta, em Campinas. A entidade congrega 47 voluntários que se revezam, em turnos de três horas semanais, usando telefones e um sistema de chat pela internet para oferecer o bom e velho ombro amigo a quem não consegue, sozinho, superar o desamparo. A associação é uma espécie de dissidência do CVV, que se tornou independente por não conseguir cumprir a jornada exigida pela entidade, com atendimento 24h. Na Amigos da Vida, o funcionamento vai das 9h às 0h. O modo de ação, no entanto, segue o mesmo. Os voluntários não dão conselhos e não julgam quem busca atendimento. “Aqui a gente age como todo mundo deveria agir com o outro. Ouvimos, não julgamos, mostramos interesse pelo sentimento”, diz a voluntária Maria José Lima. No ano passado, a entidade realizou 7.677 atendimentos — uma média de 21 por dia. De fevereiro a agosto deste ano, foram 480 pessoas atendidas pelo sistema de chat na internet, uma novidade da associação. “E ainda tivemos mais 221 na lista de espera, que não conseguiram ser ouvidas”, diz Maria José, reforçando a necessidade por mais voluntários. Na Amigos da Vida, o voluntariado é essencial. A associação não conta com financiamento público, e realiza bazares esporádicos para se sustentar. A ONG conta ainda com dinheiro dos próprios voluntários — eles dividem, por exemplo, o custo com aluguel do imóvel, de R$ 1,6 mil, e cuidam de toda a atividade administrativa. Na equipe da entidade, estão advogados, empresários, donas de casa, professores. Gente que não se incomoda em ceder parte do seu tempo para ajudar quem precisa. E que não necessariamente já teve experiências ligadas ao suicídio. “É um trabalho voluntário diferente, por lidarmos com pessoas no limite. Temos uma grande responsabilidade”, diz Maria José. Para isso, os voluntários passam por cursos frequentes para atualização, além de grupos de discussão dos casos atendidos. Novo comportamento “Naturalmente, quando alguém nos relata um problema, temos a necessidade quase automática de opinar, dizer para ela fazer isso e aquilo. Aqui precisamos aprender a nos comportar de forma diferente. Quem nos procura simplesmente não tem com quem falar. Eles só querem alguém que os ouça”, conta a voluntária Maria Lúcia Baltazar, que atua há 14 anos na associação. Outra integrante do grupo, Lúcia Marangoni diz que mudou até o modo de agir com familiares e amigos desde que começou a trabalhar na entidade, há seis anos. “Minha reação inicial muitas vezes era de criticar, agora deixo falar, escuto mais, tento compartilhar aquele sentimento”, conta. Ajuda Quem quiser ajudar a Amigos da Vida pode depositar qualquer quantia na conta 9.067-0, agência 4.038-X, no Banco do Brasil. 

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