COMPROMISSO

Mulheres que lutam por elas e pelas outras

Na maioria das comunidades, lideranças femininas ajudam no atendimento das demandas dos moradores

Israel Moreira, especial para o Correio e Ronnie Romanini
08/03/2023 às 09:51.
Atualizado em 08/03/2023 às 09:51
A recicladora e líder comunitária Adriana Correia da Silva: “Se moramos em uma comunidade é porque somos carentes e precisamos” (Rodrigo Zanotto)

A recicladora e líder comunitária Adriana Correia da Silva: “Se moramos em uma comunidade é porque somos carentes e precisamos” (Rodrigo Zanotto)

As mulheres periféricas, negras, que são mães solo e batalham diariamente pela própria sobrevivência e a dos filhos, algumas vezes precisando fugir de violências dentro e fora de casa, fazem parte de um dos grupos mais castigados pela desigualdade social, de gênero e por uma cultura patriarcal e excludente. Mesmo assim, em Campinas, são essas mulheres pretas, pobres e mães solo que lideram as lutas para tentar garantir às comunidades onde vivem o básico que o ser humano precisa, como alimentação e até informação, especialmente para mulheres que estão nas mesmas condições delas.

A Central Única das Favelas (Cufa) de Campinas não possui um levantamento, mas a experiência adquirida pela entidade ao longo dos anos de trabalho nas áreas mais vulneráveis de Campinas evidencia que quase a totalidade das comunidades atendidas pela Cufa tem mulheres na liderança. São pessoas que não se satisfazem em lutar as suas batalhas individuais, superar os obstáculos que a própria família encontra no caminho. Elas também tentam ajudar quem está no entorno.

Uma dessas mulheres é Adriana Correia da Silva, que mora na região da comunidade da Matinha, no Parque Oziel. Sem saber ler e escrever, ela não tinha muitas oportunidades de emprego. Adriana precisou de auxílio para conseguir sustentar a família e atuar em prol dos demais. Posteriormente, conseguiu a oportunidade de obter uma renda trabalhando com reciclagem, o que faz até hoje.

"Foi uma coisa que aprendi na marra, na garra, porque eu precisava daquele emprego por ter filhos pequenos. Eu não tinha muitas oportunidades. Abracei a que me deram e, com ela, conseguia pagar meu aluguel e comprar comida." A mesma mulher que lhe deu oportunidade de trabalho conseguiu ajudá-la novamente alguns anos depois com a compra de um barraco por R$ 10 mil, para ela fugir do aluguel. A ajuda recebida a inspirou. "Chegando na Matinha, eu me deparei com cenas muito fortes, que ficaram marcadas na minha vida até hoje. Eu vi ali um monte de gente pedindo por socorro."

Adriana não sabia o que fazer e se sentia de mãos atadas, mas ao refletir sobre a ajuda recebida e o alívio que o fim do aluguel trouxe, pensou em também lutar pelos demais. Ela representou a comunidade na luta ao longo de anos, conseguindo mantimentos para a população mais vulnerável sempre que possível. Nem mesmo uma triste notícia surgida no início do ano foi o suficiente para tirá-la da missão. O barraco que serviu para ela sair do aluguel não resistiu às tempestades de janeiro. Ela contou com a ajuda de amigos e conseguiu arrecadar o equivalente a dois meses de aluguel, mas o retorno à obrigação de um pagamento mensal para morar já é algo que impacta na renda.

"Eu não consigo nem lembrar detalhes. Eu achei que ia entrar em depressão, mas tenho um Deus e pessoas maravilhosas que ficaram ali perto de mim, me aconselhando. Pensei que há males que vêm para o bem e que eu teria que me recuperar para ajudar outras mães iguais a mim, que lutam, que não têm outra ajuda. Elas precisam de mim. Então, eu me levantei, estou com a cabeça erguida e continuo ajudando dia após dia."

Adriana lamentou a forma como grande parte da sociedade encara a periferia, o que deixa ainda mais difícil para as mulheres conseguir empregos, aumentar a renda e viver a vida com menos sofrimento. "[Queria que no futuro] a gente fosse vista com outro olhar. Se moramos em uma comunidade é porque somos carentes e precisamos. Na comunidade moram pais e mães de famílias maravilhosas. Eu sou preta, tenho muito orgulho de ser preta, muito orgulho da mulher que me tornei. Quantas mães já me disseram que foram fazer entrevistas de emprego e, ao dizer que moravam na comunidade da Matinha, no Parque Oziel, foram barradas? Existe preconceito e não é de hoje, é de muito tempo."

Conhecimento é arma

Outra importante liderança comunitária é Ana Paula Santana Fernandes, que mora no Jardim Rosália IV. Ela diz que foi durante a pandemia de covid-19 que ganhou coragem para ser ainda mais atuante e ampliar a luta. Sobrevivente de uma tentativa de feminicídio, ela analisa que compartilhar a própria história pode ajudar outras mulheres a terem a mesma coragem de lutar, nem que seja por elas próprias.

"A vontade de ajudar ao próximo é gritante dentro do meu coração. Essa vontade grita violentamente porque eu sei o quanto já sofri na vida e eu vejo o quanto essas mulheres se espelham, acreditam e precisam da minha ajuda . Eu luto por mim, pela minha família e pela minha comunidade porque acredito nesse projeto, nas mulheres da comunidade. E eu ainda acredito em um mundo melhor."

No Jardim Rosália IV são 102 famílias que precisam de doações mensais para conseguir sobreviver. Destas, 87 são lideradas por mães solo. Apenas três delas recebem pensão alimentícia, segundo a líder Paula. Além da coragem, ela cita a informação como um instrumento para a libertação dessas mulheres. Por isso, ela costuma realizar palestras abordando temas relevantes para a realidade delas.

"Trouxemos palestras sobre Conselho Tutelar, saúde mental, sobre leis que essas mulheres desconheciam. Elas ouviam falar da Lei Maria da Penha, mas não entendiam o conteúdo por inteiro. Em todas as palestras elas sofreram sustos tremendos. Em vários momentos havia um alvoroço porque as mulheres não conheciam os seus direitos como mães, não sabiam para que serve o Conselho Tutelar. Não sabiam das leis, dos seus direitos. Tinha mulheres sendo abusadas, estupradas, que não sabiam que isso estava acontecendo com elas e da existência de uma lei para protegê-las."

Paula ainda citou que muitas mulheres sofrem caladas e estão tão calejadas pelo sofrimento que não sabem identificar. "As mulheres sofrem muito. Sofrem caladas. E por causa da desinformação elas não sabem quais ferramentas podem usar para se libertar, resolver o problema. As palestras são maravilhosas. A sociedade aprisionou essas mulheres e as palestras acontecem para libertá-las."

A ação sobre legislação também rendeu frutos importantes. Paula contou que o coletivo "Mulheres pela Justiça" está movendo ações judiciais para auxiliar as que buscam os seus direitos. "Elas não conseguiam se divorciar dos seus ex-maridos, não conseguiam ter pensão, então o coletivo está ajudando a mulherada toda que não tinha acesso a essas informações. Mulheres que não sabiam que tinham direito à pensão, a se divorciar, porque eram oprimidas pelos seus ex-companheiros. Hoje as coisas mudaram de figura. Elas estão mais corajosas. O desejo de Paula, agora, é que cada vez mais as mulheres desta e de outras comunidades se informem, fiquem atentas à legislação e busquem, se possível, estudar. "Conhecer as leis é uma forma de proteção. Eu me municiei de informações para me proteger dessa sociedade que grita contra a mulher. A mulher agressiva não mete medo. O que mete medo nas pessoas é uma mulher inteligente - e a inteligência vem da sabedoria, informação, estudo. Mulheres que estudam e estão sempre bem informadas do que acontece ao redor, curiosas, que buscam informações, são muito inteligentes e têm o poder de uma bazuca. Ninguém consegue derrubá-las. E é isso que busco para as mulheres da comunidade", sentencia

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