Maria Angeles Botello, diretora de importação da vinícola Casa Scalecci: “Eu sou muito teimosa e faço questão de que uma parte da colheita das uvas seja feita manualmente” (Alessandro Torres)
Maria Angeles Botello é uma empresária espanhola que vive há 55 anos no Brasil, sendo os últimos dez em Campinas. Daqui, ela ajuda a administrar, como diretora de importação, a vinícola da família, a Casa Scalecci, docemente abrigada na pequena cidade de Pachino, próxima à Siracusa, na Sicília, a maior ilha da Itália. Angela, como é chamada, também está à frente de uma importadora instalada por aqui, através da qual ajuda a divulgar a enocultura em todas as suas nuances. Na última semana, às vésperas de embarcar para a Itália, ela visitou o Correio Popular, onde foi recebida pelo presidente-executivo do jornal, Ítalo Hamilton Barioni. Na oportunidade, ela falou, com paixão e simpatia, sobre a tradição da sua família na produção de vinho, mas também discorreu sobre história, arte, gastronomia, relações humanas e respeito ao meio ambiente. A entrevista que segue equipara-se à experiência de se abrir uma garrafa de um refrescante vinho branco, com leve acidez, escoltada por insinuantes ostras ou, para quem prefere, um delicado peixe grelhado com aspargos. Boa leitura e salute!
A senhora é uma cidadã espanhola, não?
Sim, nasci no norte da Espanha, em Léon. Uma terra de bons vinhos, mas vinhos muito fortes, com muito tanino. Meu esposo, que é italiano, trabalhava como executivo de uma multinacional, dentro do setor cerâmico. Nada a ver com vinho, embora a bebida fizesse parte da tradição da família dele, algo muito forte. Mas é curiosa a maneira como nos conhecemos.
Como foi?
Um belo dia, saí de carro com umas amigas para ir a uma festa. Acabamos batendo no carro dele. Estávamos preocupadas com o que iria acontecer, mas ele saiu do carro todo charmoso e tranquilo dizendo que não havia acontecido nada. E convidou a gente para tomar um refresco. Resultado: depois de seis meses estávamos casados.
E como vieram para o Brasil?
Meu marido precisava vir para o Brasil, por causa de compromissos profissionais. Depois que nos casamos, viemos.
Isso foi em que ano?
Foi em 1971. Nós nos estabelecemos em São Paulo e ele continuou trabalhando no setor cerâmico. Depois de um tempo, o pai dele morreu e a mãe passou a cuidar das terras da família, dos vinhedos. Obviamente, ela precisava de ajuda para dar conta de tudo. Quando minha sogra faleceu, meu marido teve que tomar conta das terras, ao mesmo tempo em que dirigia uma indústria cerâmica em Mogi Mirim. As terras vinham do bisavô dele e passaram de geração para geração. Quando herdou as terras, o pai dele resolveu incrementar os negócios e adquiriu mais propriedades e plantou mais uvas.
Isso na Sicília, não é?
Sim. Devo dizer que todo siciliano é um viticultor nato. Os sicilianos ou fazem vinho para vender ou para o consumo da família. É algo que eles levam no sangue. Penso que foram os gregos que levaram essa cultura para a Sicília. Meu marido pensou sobre como administrar a propriedade e resolveu iniciar a produção a partir de Nero D'Avola.
Que é uma uva que simboliza a Sicília, não?
Sim, é a uva ícone da Sicília. Os sicilianos falam que quando deus Baco chora, as lágrimas dele são uvas Nero D'Avola. Claro, siciliano é assim, tem que ter tudo melhor.
Qual a origem do nome da vinícola?
Meu sogro comprou uma propriedade que se chamava Scalecci. As terras pertenciam a uma princesa espanhola. Quando fomos escolher um nome para a vinícola, eu pensei que nada ficaria melhor do que Casa Scalecci.
Como era feita a vinificação na época do seu sogro?
Naquela época, as famílias da região não vinificavam e nem engarrafavam o vinho. Elas levavam a produção do mosto para uma cantina comunitária. De lá, enviavam a produção até o porto através de um vinhoduto. A estrutura ainda existe, embora não seja mais utilizada. Minha sogra vendia esse mosto para uma cantina local. Esse mosto também era muito exportado para a França, porque servia para dar força, cor e graduação alcoólica para outros vinhos. Isso acabou lá pelo início do século passado.
O siciliano em particular é muito ligado às tradições, não é verdade?
Sim, muito ligado. Na tradição siciliana, é costume que as mulheres herdem as casas e os homens, as terras. É um costume machista que ainda existe. Então, meu marido herdou as terras. A pergunta era, "o que vou fazer agora"? Ele carregava a cultura do vinho, mas nunca havia trabalhado diretamente com a produção. Foi então que ele decidiu contratar um enólogo, formado em Marsala. Então ele começou a vinificar os nossos vinhos. O primeiro vinho nosso foi o Massasaro, que é feito com as uvas Nero D'Avola (70%) e Cabernet Sauvignon. É um vinho muito bom, que teve muito êxito.
Qual o significado do nome?
Como eu falei, a vinícola segue uma tradição familiar. Então, decidimos batizar o vinho com o nome de um antepassado. Na Sicília, o neto leva o nome do avô. Massasaro era o avô do meu marido. "Massa" significa "proprietário de grandes terrenos". E "Saro" é o diminutivo de "Rosário", que é um nome masculino na Sicília.
Esse primeiro vinho "nasceu" em que ano?
Há cerca de dez anos. Nossa caminhada no mundo do vinho é curta, mas a nossa vinícola tem 120 anos. O que se diz é que produzir vinho não é muito difícil. Difíceis são apenas os primeiros 300 anos. Temos 120, então espero que meus netos consigam chegar lá.
Esses dez anos parecem coincidir com uma espécie de guinada na produção dos vinhos sicilianos. Os produtores optaram por substituir quantidade por qualidade. Isso procede? E foi nessa onda que a Casa Scalecci embarcou?
Exatamente. E esse é um aspecto que a gente leva muito a sério. Nós temos 17 hectares cultivados com vinhedos. Dependendo do ano, produzimos entre 100 mil e 150 mil litros de vinho. Este ano produzimos 100 mil porque choveu no momento errado. Nós primamos pela qualidade. Como meu marido tem outros negócios, a vinícola tem como principal compromisso preservar a cultura e história familiar. Como você disse, a Sicília deu uma guinada em relação à produção de vinhos. A maior parte é produzida a partir da Nero D'Avola, mas lá tem outra uva muito boa, que é a Grillo. Então, os produtores passaram a cuidar mais da produção e a observar o que se faz fora do limite da ilha. Para nós, foi importante ter vindo para o Brasil e conhecer outros países. Eu costumo brincar com meu marido que nós levamos o mundo para a Sicília.
Cercada pelo mar, com solo de calcário e com 300 dias de sol por ano, a Sicília possui um terroir privilegiado para o cultivo de uvas; A Casa Scalecci produz entre 100 mil e 150 mil litros de vinhos por ano, todos eles com destacadas características gastronômicas (Divulgação)
Na prática, como foi essa incorporação de práticas de outras culturas?
Eu sou muito teimosa e faço questão de que uma parte da colheita das uvas seja feita manualmente. Tem lugares onde isso não é possível, mas onde é viável, fazemos. Isso exige esforço e especialidade. Nós temos sorte. O enólogo não é o artista do vinho. O artista do vinho é o terroir e a mão de obra que trabalha esse terroir. Nossos trabalhadores são muito atenciosos com a tarefa que executam. Há um respeito muito grande pela terra, pelas plantas. O enólogo é quem dá o retoque final. Nós temos muita sorte nesse sentido. Respeitamos a biodiversidade. Agora estamos obtendo o selo de vinhos naturais. Com isso, fomos aumentando nossas aspirações, e fizemos outros vinhos.
Que vinhos a senhora destaca do portifólio da Casa Scalecci?
Por exemplo, nós temos o Ronsaro e o Ronciccio. Ronsaro é meu marido e Ronciccio, meu sogro. Depois desses, como eu tenho quatro netos, decidi fazer algo que ajudasse a fazer com que eles ficassem ligados à tradição familiar. E aí criamos um vinho para cada um deles, de acordo com as características de cada um. Então surgiram o La Principessa, o Il Cavalieri, o Zingara e o Principino, que vai sair e 2024. E os netos são muito orgulhosos de seus vinhos.
Tem também o Passione...
O Passione veio porque o nosso lema é fazer vinho com paixão. Então, era preciso que tivéssemos um vinho com esse nome, que representasse esse sentimento. Minha nora é que faz os rótulos. Um dia ela estava lá na propriedade e tinha uma amendoeira florida. Ela fez a fotografia da flor da amendoeira e daí surgiu Passione, que é muito bom. Depois veio o Rosé. Eu queria muito um rosê, pensando especificamente no Brasil. Acontece que os vinhos rosés da Sicília são muito intensos, como os espanhóis. Não funcionaria no Brasil. Aí tive uma ideia que deixou o nosso enólogo de cabelo em pé, que era fazer um rosê a partir da uva Petit Verdot, que é muito tinta, muito escura. O enólogo achou que não daria certo, mas deu, graças à técnica que usamos. Assim, chegamos a um vinho que não tem a coloração de casca de cebola, como os franceses, e nem a cor intensa dos italianos. Nós chegamos a uma cor bonita, elegante e feminina e a um vinho muito bom. Um vinho que exportamos para vários lugares do mundo, mas que foi feito para o Brasil. Aliás, esqueci de dizer que abri uma importadora aqui em Campinas para atender diversos mercados.
A senhora citou a importância do terroir. Fale um pouco mais sobre as características dele.
Nós somos muito privilegiados. Nossa propriedade está localizada no nível do mar, perto de Siracusa. A nossa vinícola é a que está mais ao sul da Europa. Estamos a 400 metros do mar. As uvas se beneficiam muito da salinidade e do frescor que vem do mar. O nosso solo é de calcário e recebemos um vento quente que vem do deserto do Saara. Além disso, na Sicília faz sol durante 300 dias por ano. A insolação é muito intensa. Tudo isso é importante para o desenvolvimento das uvas que cultivamos. Todos os nossos vinhos são muitos gastronômicos.
Voltando à vinícola, qual a estrutura dela atualmente?
Temos seis trabalhadores, que são nossa maior riqueza. Eu ligo daqui para eles e peço que sigam para o campo e descrevam o que veem no dialeto siciliano. Eles sempre ficam sem jeito. Mas é a forma como gosto de mostrar o carinho que temos com as videiras. Na época da colheita, contratamos trabalhadores avulsos. A colheita é feita normalmente em setembro, mas é a planta quem fala. Na parte comercial, tenho uma das filhas que vai uma vez por mês para lá. Um dado importante é que o governo dá muita subvenção para os viticultores. Financiam painéis solares, por exemplo. E temos os vendedores. Lá, competimos com outras vinícolas da região. Temos vinho em praticamente todos os restaurantes locais. Nós exportamos para a China, porque meu marido tem negócios no país. Também exportamos para o Peru, Alemanha e França. Nós também produzimos azeite de uma qualidade extraordinária. Aqui, nosso estoque fica em Mogi Mirim, em contêineres climatizados.
A senhora vai com que periodicidade para a Sicília?
É importante estar lá em períodos específicos. Nos próximos dias vou para lá para organizar as cartas de vinhos dos restaurantes, que fazem as compras para o verão. Retorno em fevereiro. Meu marido vai sempre para lá. Ele é um homem muito dinâmico e ativo, que faz questão de envolver a família nos negócios.
A senhora tem quantos filhos?
Tenho três, duas mulheres e um rapaz. As meninas são brasileiras e o menino, espanhol. As duas vivem hoje em Barcelona.
A senhora prefere os blends ou os monovarietais?
Muitas pessoas me perguntam por que não nos dedicamos apenas aos monovarietais. Eles são importantes, claro. Nós temos um vinho 100% Nero D'Avola. Ocorre que os blends trazem mais diversidade e complexidade. Para mim, são mais divertidos. Todos os nossos tintos têm o Nero D'Avola como base, mas têm outras uvas também. O próximo a ser produzido é um Malbec. As uvas foram plantadas há quatro anos.
A Sicília é um enorme caldeirão cultural. Se olharmos em retrospectiva, vamos ver que a ilha recebeu influências dos gregos, árabes, bizantinos, etruscos, entre outros. A produção dos vinhos sicilianos, imagino, deve ter se beneficiado dessa diversidade, não?
Exatamente. A cidade onde estamos, Pachino, abriga um porto. Lá tem tantas coisas maravilhosas, tantas coisas arqueologicamente bonitas. Mas também existe um problema. Se você faz uma escavação mais profunda para cultivar uma videira, é possível que encontre um artefato arqueológico. E isso pode gerar o isolamento da área para a realização de pesquisas. Lá se respira cultura por todos os lados. Por ser uma cidade portuária, nós também temos uma riqueza enorme de peixes e frutos do mar. Também temos queijos fantásticos. Tudo isso, claro, combina muito com vinhos.
Como foi para vocês e para a vinícola o período mais grave da pandemia de covid-19?
Eu e meu marido estávamos na Sicília nesta época. Ficamos por lá por dois anos. Meu marido ficou muito nervoso. Ele é um homem muito ativo, mas não tinha o que fazer. Aí ele resolveu construir a sede da vinícola. Hoje, temos um restaurante e temos espaço para hospedar turistas que nos visitam. Tenho clientes do Brasil que já foram para lá. É uma experiência muito boa ver como a uva é cultivada, como o vinho é produzido e, claro, fazer degustações.
Como foi a sua adaptação ao Brasil e como a senhora vê o país atualmente?
Como eu disse, cheguei ao Brasil em 1971. Nunca tinha saído da Espanha e nem ficado longe da minha família. Além disso, não falava português. O começo foi difícil. Moramos em São Paulo por mais de 40 anos. Meu filho nasceu em Madri, mas veio com três meses para cá. E minhas filhas nasceram em São Paulo. Foram educadas na língua portuguesa. Nós mergulhamos na cultura brasileira e passamos por todos os problemas políticos e econômicos do país. Eu tive muita sorte. Os dois pilares que ajudaram a me sustentar foram meu ginecologista e meu pediatra.
E como se mudaram para Campinas?
Depois de 45 anos, tivemos um problema de assalto. Entraram em nossa casa e sofremos certa violência. Isso gerou um trauma, principalmente para minhas filhas. Isso fez com que decidíssemos nos mudar para o interior, para um condomínio, para ter mais segurança. Estou amando Campinas. Faz dez anos que estou aqui e estou achando maravilhoso. Campinas é uma cidade que tem tudo e está muito perto de São Paulo.
A senhora falou sobre tradição em vários sentidos, mas principalmente sobre a tradição da família na produção de vinhos. A senhora e seu marido estão preocupados em garantir que seus filhos e netos deem sequência a essa atividade?
É curioso, porque o mundo do vinho é muito poético e traz muito glamour. Meus netos pensam que é somente isso, mas não é. Dá muito trabalho. Nós queremos que os netos assumam o negócio, junto com uma das filhas. Provavelmente alguém vai se interessar. É o nosso desejo. É um trabalho muito bonito.
No mundo do vinho, sempre é possível aprender algo novo. É uma fonte inesgotável de informação, não é?
Sim. Eu, por exemplo, li que os franceses faziam a colheita noturna das uvas. A fruta se beneficia disso porque a temperatura é menor. Na Sicília, a temperatura no verão supera 40 graus tranquilamente. Eu sugeri ao meu marido que adotássemos a colheita noturna, mas ele achou que isso não daria certo. Ele dizia: "Imagina, meu pai nunca fez isso. Aqui, isso não daria certo". Devagar, eu o convenci. Adotamos o procedimento, que deu bons resultados. E nossos trabalhadores agradeceram, porque não sofrem tanto com o calor.
Algum novo projeto em gestação?
Tem um, sobre o qual gostaria de falar. Na próxima colheita, eu quero fazer uma festa como antigamente. Quero colocar todo mundo para amassar as uvas com os pés. Também quero músicas e comidas sicilianas. Vai ser bonito.
Como a senhora avalia os vinhos brasileiros?
Registramos uma grande evolução na qualidade nos últimos anos.
Eu tenho a oportunidade de visitar e trocar experiências com várias vinícolas. Devo dizer que as vinícolas do Sul do Brasil estão produzindo vinhos muito bons. Nós produzimos um prosecco muito bom da uva Grillo. Mas não dá para trazer para o Brasil porque aqui tem espumantes maravilhosos e muito mais baratos porque não pagam impostos de importação.
A senhora tem um vinho com seu nome também, não é mesmo?
Sim, deixe-me contar essa história. Quem olha o rótulo talvez pense que o vinho não tem nada a ver com a Itália, porque tem a imagem de uma dançarina de flamenco. Eu gosto muito de pintura e tinha esse quadro em casa. Quando fizemos 50 anos de casamento, meu marido quis me presentear com um vinho com meu nome e com essa imagem. O nome dele é L'Angela.
Fora os seus, que outros vinhos a senhora gosta de tomar?
Gosto mito dos espanhóis, da Ribeira Del Duero. Gosto dos franceses. Gosto do Inzolia, da Sicília, que uma uva muito fresca. O gosto pelo vinho é muito particular.
Além de abrir um bom vinho, que outros hobbies a senhora tem?
Eu gosto muito de ler. Gosto de escrever também. Mas não tem sobrado muito tempo para essas coisas ultimamente.