Jovens ganharam uma nova vida: oportunidade de estudar e remuneração
Venda de panos de prato e doces é a principal atividade realizada por crianças e adolescentes na cidade, alcançando 45,66% dos casos; em seguida, estão panfletagem (19%), mendicância (12,16%) e limpeza de lápides (11,44%) (Kamá Ribeiro)
Aos 20 anos, Isaías Bonfim Novaes de Almeida relembra o que pensava, seis anos atrás, quando catava papelão para ajudar a família. “Eu olhava para as crianças saindo da escola e queria ser uma delas”, conta. O jovem, que hoje estuda no curso técnico de Manutenção de Aeronaves, oferecido pela Azul Linhas Aéreas, foi resgatado, aos 16 anos, do trabalho infantil e faz parte de um grupo de 3.807 crianças e adolescentes retirados dessa situação ao longo dos últimos 11 anos em Campinas.
Os números são do Serviço Municipal de Abordagem Social de Crianças e Adolescentes – Movimento Vida Melhor e foram divulgados ontem, durante o seminário Campinas no Enfrentamento ao Trabalho Infantil, em alusão ao Dia Mundial contra o Trabalho Infantil, que ocorre amanhã.
Só neste ano, em 225 ações, 69 adolescentes e crianças foram regatados. Nessa conta, também estão incluídos bebês, que ficam expostos ao Sol e chuva no colo dos pais, enquanto eles trabalham em situação de informalidade. Em todo o ano passado, o número chegou a 385, um índice 37% maior que 2020.
Meninos pretos e pardos, em serviço de venda e oriundos da Região Sul de Campinas, são a maioria dos resgatados em situação de trabalho.
A estatística ainda aponta que as atividades mais identificadas são: vendas de produtos (panos de prato, alimentos, etc.), caracterizando 45,66% dos casos; seguida por panfletagem (19%), mendicância (12,16%) e limpeza de lápides (11,44%). As regiões do município nas quais ocorrem mais abordagens são: Leste (36, 23%) e Sul (34,57%). Os dados evidenciam que, os meninos representam 75,64% dos casos, e as meninas, 24,36%. Entre as raças, é a negra que mais sofre: 54,59% das crianças eram autodeclaradas pretas ou pardas.
No entanto, acredita-se na existência de mais casos, ocorrendo, sobretudo, em espaços privados, o que impossibilita o conhecimento pelas autoridades, serviços de atendimento ou programas, gerando subnotificação.
“Temos um enorme desafio em desnaturalizar a situação do trabalho infantil”, aponta a assistente social Verônica Aparecida Zibordi Rosa, coordenadora técnica do serviço de abordagem social para crianças e adolescentes do Movimento Vida Melhor (MVM). “Muitas pessoas ainda consideram o trabalho infantil como uma situação normal, o que torna um adolescente ou criança invisível nos semáforos ou em outras atividades, como por exemplo, trabalho com materiais recicláveis. O mito de que é melhor trabalhar que roubar ainda está muito presente na fala da população, quando na verdade deveríamos dizer é melhor estudar do que trabalhar. Criança precisa estudar, brincar e trabalhar só quando tiver idade.”
Oportunidade após o resgate
Isaías foi encontrado enquanto vendia bancos com o irmão e o pai, em um ponto localizado no bairro Jardim Amoreiras. Naquele dia, conta, saiu de casa com uma pilha de bancos, e caminhou do Distrito do Ouro Verde até uma rua no Jardim Amoreiras, onde começaria as vendas.
A rotina desgastante era uma sina que carregava desde os 12 anos, quando a família chegou a Campinas, vinda do Rio de Janeiro. Sem recursos para manter uma casa, eles ocuparam uma área no Ouro verde, onde ergueram um barraco para cinco pessoas: ele, dois irmãos, pai e mãe. Nesses tempos, Isaías dividia um beliche com o irmão em uma sala-cozinha, de onde sentia o vento entrar pelas frestas da madeira que sustentava o local. No outro cômodo, dormiam seus pais e a outra irmã.
Com a falta de emprego formal para os pais e a inexistência de renda, ele e o irmão, um ano mais novo, foram para baixo dos faróis, onde abordavam carros para vender pacotes de balas.
“Eu trabalhava sujo. Muitos adultos chegavam a falar ‘nossa, desde cedo trabalhando’, como se fosse algo para se orgulhar. Mas as crianças me olhavam de um jeito diferente. É até um pouco ruim lembrar disso”, conta.
Do farol, Isaías passou a catar papelão, até que ele e a família conseguiram erguer uma casa de tijolos no mesmo terreno. Com um pouco mais de segurança, seu pai investiu na compra de bancos, e passou a vender o móvel em um bairro longe de casa.
Foram quatro anos de bicos até ser encontrado, em uma tarde, por uma equipe do MVM. “Eram uma mulher e um homem e eles me explicaram sobre um programa. Fizeram várias perguntas e disseram que eu poderia participar. Eu achei que isso era mentira, que não existia, por que iam me oferecer isso? E em sete meses, eu estava estudando no Senai”.
Isaías disse que o programa lhe deu oportunidades que jamais almejou. No ano passado, ele ainda foi convidado a ilustrar a Cartilha de Enfrentamento ao Trabalho Infantil do Município de Campinas. Nela, ele retratou, na capa, o momento em que, catando papelão, via as crianças saindo da escola.
Hoje, sendo um dos 12 selecionados em um processo seletivo da Azul Linhas Aéreas, ele aponta que nenhuma criança deveria ter uma história como a dele. “A criança precisa estar na escola, em cursos, brincando. Eu perdi muito disso. Fez parte da minha história e até hoje sinto quando vejo uma criança na situação que eu vivi. É preciso dar acesso ao ensino a todos, de forma igual.”
Programa leva à especialização
O programa para o qual Isaías foi encaminhado, o Programa Construindo Autonomia para o Futuro (Procaf), é um braço do MVM. Criado em 2014, ele acolhe adolescentes com idades entre 15 e 17 anos e lhes oferece uma formação em Auxiliar de Chocolateiro, Pizzaiolo e Salgaedeiro, ofertada pelo Senai, curso do Pacote Office, mais um módulo que inclui preparação para o mercado de trabalho.
As aulas acontecem três vezes por semana e, por cada uma delas, os adolescentes recebem R$ 50, o que garante uma quantia de R$ 150 na semana. O recurso é porque, sem ele, muitos acabam retornando ao trabalho nas ruas e, com isso, se dá a garantia de que permanecerão na formação. Na contrapartida, eles precisam estar regularmente matriculados na escola.
Desde 2014, 280 adolescentes resgatados da situação de trabalho já se formaram no programa. Atualmente, o Procaf possui 32 alunos em formação.
Coordenadora pedagógica do Procaf, Ana Paula Fragoso Pinke, diz que os adolescentes são convidados a aderir ao programa, mas muitos acabam resistindo e permanecem nas ruas. Segundo Ana, os adolescentes vêm de uma defasagem de ensino em que eles mesmos não conseguem se reconhecer como sujeitos de direitos.
“A gente vê a dificuldade que eles têm de se enxergar como sujeito de direito, com dificuldade de se expressar, porque não têm embasamento. Muitos dizem ‘eu sou burro mesmo, eu não sei fazer nada’. Alguns não sabem nem ler ou escrever. A gente precisa desconstruir com eles a questão do trabalho infantil porque, culturalmente, eles vêm de famílias em que é obvio que precisem trabalhar muito cedo, todos trabalharam muito cedo, então, para eles, é natural. Acho que a gente planta a sementinha e eles descobrem outras possibilidades”, reforça.
O programa tem duração de seis meses e ainda conta com uma parceria com o Centro de Integração Empresa-Escola (CIEE), para onde é encaminhado o perfil dos alunos a serem indicados a programas de menor aprendiz, onde o trabalho coexiste com o estudo.
Ao final do programa, os alunos ainda são convidados a escrever uma carta que integra o livro “A ressignificação da escrita: as marcas de cada um”. Nas últimas três edições, estudantes puderam contar suas histórias. No entanto, soa quase unânime nos textos: o que a criança precisa é estudar.