ENTREVISTA

Maestro quer aproximar a Sinfônica de Campinas da população

Carlos Prazeres revela os planos da Orquestra campineira para 2024

Cibele Vieira/ [email protected]
10/12/2023 às 09:26.
Atualizado em 10/12/2023 às 09:26
Carlos Prazeres visitou a sede do Correio a convite de Ítalo Hamilton Barioni (Kamá Ribeiro)

Carlos Prazeres visitou a sede do Correio a convite de Ítalo Hamilton Barioni (Kamá Ribeiro)

Ele possui uma herança musical profundamente enraizada em seu DNA. Seu legado musical começou com o maestro Carlos Prazeres, seu pai, enquanto sua mãe, Manuela, destacava-se como uma talentosa cantora de coral. Até mesmo seu irmão mais novo seguiu os passos e também se tornou um maestro. Diante desse contexto musical inspirador, ele abraçou a arte da música, enfrentando experiências desafiadoras que expandiram seus horizontes em relação aos experimentos na música clássica.

Com a regência de duas orquestras em cidades geograficamente distantes e culturalmente diversas, sua visão é clara: ele almeja construir novos públicos e promover uma compreensão mais ampla da música clássica. Acredita fervorosamente na necessidade de tornar essa forma de arte mais acessível à população em geral. Seu desafio reside em tornar a música de Carlos Gomes mais pop e fortalecer o senso de pertencimento da comunidade em relação à Orquestra Sinfônica de Campinas. Ele pondera sabiamente que manter uma sinfônica só é justificável se for uma demanda real da sociedade.

Carlos Prazeres, carioca de 49 anos, mantém uma rotina de ponte aérea, mas encontra em Campinas uma cidade acolhedora, onde se deleita percorrendo a pé seus cafés e ruas encantadoras. A convite do presidente-executivo do Correio Popular, Ítalo Hamilton Barioni, ele compartilhou sua história, desafios e planos durante sua visita ao jornal.

Qual sua origem, como chegou aqui e o que pretende? 

Sou carioca, nasci na Tijuca e depois morei em vários bairros do Rio de Janeiro. Quando eu era um "garoto de Ipanema", fui chamado para assumir a Sinfônica da Bahia. Ali passei a ser um baiano também - estou há 12 anos lá - e agora de forma concomitante tenho esse desafio com a cidade de Campinas. São cidades muito diferentes, mas a gente vai entendendo e desenvolvendo um certo método, com as coisas pensadas e programadas. Outro dia a BBC de Londres fez uma pesquisa sobre o que o público gostaria nos concertos sinfônicos. Entre as respostas mais recorrentes estão que o maestro se dirigisse à plateia e que o concerto não passasse de 1 hora de duração. Por isso tenho pensado fazer concertos mais curtos na próxima temporada e ampliar a conversa com o público. Isso as vezes é criticado na música clássica, mas vou assumir esse risco.

E a sua família, de onde veio? 

Meus pais vieram de um meio muito pobre, foram imigrantes portugueses que vieram analfabetos de Portugal, país que em 1920 tinha um índice de 80% de analfabetismo. Meu pai foi estudar teologia, com bolsa no seminário, para fugir da pobreza. Suas irmãs eram empregadas domésticas e seu irmão açougueiro. No seminário, os padres viram que ele tinha talento para a música e foi enviado para fazer teologia em Roma e lá estudou música na Academia Santa Cecília, onde frequentou a mesma sala que Zubin Mehta, Claudio Abbado, Hans Swarowsky, com um professor chamado Franco Ferrara. Quando voltou ao Brasil, foi fazer regência na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e começou a reger alguns corais, fundando o Movimento Coral no Brasil. Nos corais conheceu minha mãe, mas como era casado e com três filhos, se separou, casou com minha mãe e teve dois filhos, eu e meu irmão Felipe, que também é maestro no Municipal do Rio de Janeiro. 

Como se deu sua entrada na música?

Meu pai fundou a Orquestra Petrobras no Rio, depois de anos regendo o Coral. Então eu e meu irmão fomos criados nesse ambiente, convivendo no meio dos músicos. Eu escolhi o oboé e meu irmão escolheu o violino como instrumentos. Em 1997, ganhei uma bolsa para estudar na Academia da Filarmônica de Berlim. Em 1999, meu pai foi vítima de um sequestro relâmpago e morreu baleado no Rio de Janeiro. Eu não cheguei a tempo nem do funeral. Naquele dia nós perdemos nossa referência musical e, ao mesmo tempo, eu e meu irmão passamos a ser os pais da casa, função que assumimos até hoje. No meio dessa tragédia, voltei para a Alemanha, conclui meus estudos e ao voltar ao Brasil fui trabalhar como músico (1º Oboé) em algumas Orquestras, como a Sinfônica Brasileira, a do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e a da Petrobras. 

Porque decidiu ser regente?

Em 2005, resolvei estudar para regente. Não foi para seguir meu pai, mas porque acreditava que era uma forma de mudar a sociedade, além do prazer de dar minha interpretação para uma obra. A regência, não tem como negar que é muito incrível, mas muito difícil também, a gente leva muita bordoada. Mas eu queria fazer e comecei a estudar e logo depois fui chamado pelo meu professor Isaac Karabtchevsky, que me chamou para ser o seu assistente na Petrobras Sinfônica, a orquestra que meu pai fundou. Fiquei nessa função por oito anos, até me chamarem para a Orquestra Sinfônica da Bahia, minha primeira orquestra. Encontrei uma orquestra pequena, muita avariada e com vários músicos se aposentando, muitos problemas, passamos o pão que o diabo amassou até 2014. Mas fomos construindo o público e chegou num ponto que a orquestra estava quase acabando, até que por pressão da sociedade, a orquestra virou uma organização social e recebeu um aporte do governo da Bahia. Este ano foi considerada a Melhor Orquestra do País pelo Prêmio Profissionais da Música. Mas recebemos muitas críticas, baseadas em preconceitos. 

As orquestras mudaram muito?

A música clássica hoje basicamente não tem nenhuma diferença de orquestra do que Liszt ou Beethoven faziam, eles se apresentavam com a mesma roupa ou ritual que a gente faz hoje. Mas hoje a sociedade tem telefone celular onde está disponível o Itunes, o Spotify, o Deezer, o Youtube, onde ela tem disponível o que quiser, com som incrível. Então a gente é perguntado se não temos que estudar as mudanças do concerto do futuro? Acho que temos. Não quero que vire bagunça, não quero colocar uma bateria numa sinfonia de Beethoven, pelo contrário, sou muito purista, ainda estudo as formas de fazer mais parecido com que Beethoven fazia. Mas, ao mesmo tempo, temos que pensar no que atrairia o jovem para uma sinfonia de Beethoven. Fiz uma experiência uma vez com a banda baianasystem. Comecei o concerto com a nona de Beethoven, desembocou para uma música deles, quando a plateia estava ensandecida começamos um trecho da "Missa Solene", passamos para outra música, depois o alegrete da Sétima Sinfonia de Beethoven. E todo mundo ali foi para ouvir um show de rock e acabaram sendo confrontados com Beethoven. Claro que fui muito criticado por isso, e a gente vai aprendendo com os erros também, temos que entender nossos excessos, voltar. E entender a nossa sociedade, equilibrar. No ano passado fiz um concerto São João aqui em Campinas, não lotou. Talvez se tivesse feito um sertanejo ou rock tivesse mais público. Estou aprendendo as peculiaridades da cidade. 

O maestro Carlos Prazeres, carioca de 49 anos, conduz um ensaio oficial da Orquestra Sinfônica de Campinas (Rodrigo Zanotto)

O maestro Carlos Prazeres, carioca de 49 anos, conduz um ensaio oficial da Orquestra Sinfônica de Campinas (Rodrigo Zanotto)

Qual sua relação com a sinfônica e seu público? 

A primeira coisa que eu penso que seja de suprema importância na relação de uma sinfônica com a cidade é um elemento primordial: o público. Acho que num país como o Brasil, com tantos problemas sociais, uma sinfônica só se justifica quando ela é uma demanda da sociedade, do público. Aqui em Campinas eu já peguei um legado muito importante, que foi o legado do maestro Benito Juarez. E ele tinha uma visão muito parecida com a minha, que é a de popularizar a música clássica. O "popularizar", neste caso, não deve ser confundido com nenhum outro conceito de música popular. Popularizar a música clássica é acessibilizar essa música clássica. A música popular é uma ferramenta que utilizamos para isso, eventualmente. 

Recebe muitas críticas por esse conceito de popularização?

Vou dar como exemplo do que acontece comigo hoje na Bahia, onde faço cerca de cinco ou seis concertos de música popular durante o ano, numa temporada anual de 50 concertos. Mas muitas vezes esse concerto popular acaba ganhando repercussão e às vezes pessoas invejosas e mal-intencionadas fazem questão de deturpar essa imagem, pegam uma lupa e dizem: a orquestra não podia estar fazendo isso aqui. Essas mesmas pessoas se calaram agora, quando a Sinfônica Brasileira, na semana passada, fez um concerto com o Belo. E achei ótimo, porque ela tem feito um trabalho lindo, impecável, de comunhão com a sociedade e de convite a artistas incríveis da música clássica. E de repente ela se associou ao projeto Aquarius e colocar o Belo junto à sinfônica, muito mais do que promover uma variedade musical, é promover uma comunhão social. Todo o público do Belo passa a conhecer a Sinfônica Brasileira e passa a dizer: esta orquestra é minha também. Isso é muito importante. Entendo a o papel da orquestra como uma extensão e em comunhão com a sociedade.

Ouvir uma sinfônica numa sala de concertos muda a experiência?

Temos que entender que uma orquestra sinfônica possui uma atividade secular de busca de evolução de seus instrumentos. Então quando a gente pluga uma orquestra ao som a gente tira um pouco da sua potencialidade. Quando Ravel escreveu "Rapsódia Espanhola", quando Debussy escreveu "La Mer" - estou falando do repertório francês porque os franceses têm uma maneira muito única de explorar os timbres da orquestra - mas também as obras de Wagner, Beethoven e outros, esses músicos já herdaram séculos de estudo sobre aquela formação. E aquilo é um pensar acústico. Essa é uma condição e por mais que se contrate uma empresa de sonorização incrível, se aquilo não fosse um pensar acústico, a Filarmônica de Berlim faria seus concertos em praça pública. Quando se tem, por exemplo, uma flauta tocando num registro grave (como a "Sinfonia do Novo Mundo") e a sala de concertos inteira calada, você gera uma tensão naquela quantidade de gente ouvindo, que jamais seria gerada para um público de três mil pessoas, independente se você faz essa sinfonia no Taquaral ou no Parque das Águas. Essa tensão se dará somente na sala de concertos. Mas não podemos ficar encastelados na Sala de Concertos. 

Como avalia o seu primeiro ano à frente da Orquestra Sinfônica de Campinas?

Os concertos do Teatro Castro Mendes estão lotados já no primeiro ano, que é uma meta que eu tinha estabelecido para dois anos, porque os concertos estavam ficando vazios, no início regi concertos para pouca gente, agora temos mais público, mas ainda é muito pouco. Tenho um desafio hoje que é fazer o campineiro ressignificar Carlos Gomes. Precisamos ter orgulho dele, um dos maiores compositores do país, sua obra precisa ser compreendida e admirada. Estamos fazendo o concurso para repor as vagas de Campinas, o Dário (prefeito Dário Saadi) e a Alexandra (secretária de Cultura e Turismo, Alexandra Caprioli) têm feito um trabalho incansável. 

Quais as principais diferenças entre Campinas e Salvador, cidades onde rege as respectivas orquestras sinfônicas? 

São cidades diametralmente opostas no sentido político. São duas cidades muito diferentes. Tem coisas aqui que eu sei que não posso, não devo e nem quero cometer. Já na Bahia, se não cometo algumas ousadias, me chamam de caretão e chato. Em algumas coisas, sei que Campinas é mais conservadora, não posso passar de algumas linhas. Mas sinto aqui uma necessidade muito grande dessa ousadia sinfônica, que foi plantada aqui pelo Benito. E ela existe independente de qualquer viés ideológico. E eu me identifico com isso, de entender o que é o concerto do futuro. Sei o limite de cada cidade, mas tenho conseguido uma complementação. Tenho levado um pouco mais para a Bahia esse olhar revolucionário do Benito e trazido da Bahia algumas ousadias, como esse concerto recente com a Luedji Luna. Não fiz lobby para vir para Campinas, mas o meu lado espiritual me faz procurar entender para que eu fui chamado. Salvador é a maior cidade negra fora da África, Campinas foi a última cidade a abolir a escravidão no Brasil. Como eu posso colaborar para melhorar meu País, que tem uma tensão racial muito grande, embora se negue isso? Ao trazer a Teresa Cristina para a frente da nossa orquestra, a gente teve não apenas um concerto bonito de samba. Tivemos uma maioria branca olhando uma negra bem-sucedida em lugar de destaque, aclamada nacional e internacionalmente, à frente da Orquestra Sinfônica de Campinas. Essa troca é muito bonita, é subliminar. É a nossa parte para ter uma sociedade melhor, mais diversa, mais justa. A diversidade no Brasil é nosso maior orgulho! 

A música clássica é bem compreendida? 

Para mim a música clássica é cercada de estereótipos, a primeira é o etarismo (só gosta de quem é mais velho). O segundo estereótipo é a elite (só ouve quem tem dinheiro). E outro é música para relaxar (se ouvir segundo movimento da sinfonia de Shostakovich vai quebrar esse conceito), ela tem também esse lugar, mas é um gênero muito grande! Então esses conceitos são de uma visão muito pobre para observar a música clássica! Antigamente as pessoas se aprofundavam nas leituras, eram preparadas para a música dos grandes compositores. Hoje é tudo rápido, as pessoas não têm paciência. Então precisamos levar a mensagem de outra forma, e a música clássica é muito completa.

No próximo sábado, dia 16, acontece o Concerto de Natal, há novidades?

Esse concerto vai chamar "Natal Italiano" e queremos levar a música de Verdi, Puccini, Bellini para muitas pessoas. Isso é preciso pensar pontualmente. Jingle Bell a gente ouve no shopping, no concerto vamos colocar Noturno da Ópera Condor, para um "módulo meditação", onde vou pedir para as pessoas fecharem os olhos e pensar nos excessos do ano, em como ressignificar sua vida no próximo ano e pensar na música de Carlos Gomes. Vamos fazer a abertura da obra La Gazza Ladra, de Rossini, que é muito empolgante. E também a Ave Maria da Ópera Otelo, além de Noite Feliz, entre outras. 

E para a temporada de 2024? 

Na abertura da temporada do próximo ano vamos tocar O Guarani, de maneira muito bonita, bem executada e quero trazer o melhor violonista do mundo (estou torcendo para dar certo) que é o Pablo Sains-Villega, para que as pessoas possam entender algumas nuances da obra de Carlos Gomes. Eu estou me apaixonando pela obra dele, que é um abraço no meu país. Então quero salpicar Carlos Gomes pela temporada, para que as pessoas entendam e admirem sua obra. Pretendo buscar um elo de pertencimento com a sociedade. Teremos uma série chamada Mix Tape, uma experiência diferente misturando artistas populares com a música clássica, compondo e interagindo no programa e será levada para as praças. E quero que os jovens experenciem a música de Anton Bruckner, uma das coisas mais incríveis e revolucionárias do planeta (aquilo deu origem à música de Star Wars). Também vamos fazer a nona sinfonia de Beethoven e a terceira sinfonia de Mahler. Vou precisar entender melhor como o campineiro gosta de ouvir a música popular e colocar na orquestra de forma bacana, com bom gosto. Teremos uma bonita temporada. 

Você tem conseguido vivenciar Campinas? 

Na época de estudante eu passei muitos carnavais em Campinas, com amigos estudantes que moravam aqui, íamos jogar sinuca no Giovanetti. Campinas hoje é agradável, acolhedora, dá para andar na rua, tem muitos cafés interessantes, restaurantezinhos muito bons, vou correr no Taquaral, gosto muito. 

Algum tema te preocupa atualmente?

Estou próximo a fazer 50 anos (20 de março de 2024), quando a gente recebe o selo de coroa. E isso é uma questão a ser trabalhada psicologicamente. E a gente tem que ser jovial, a vida toda. Tenho pensado muito sobre a morte, a finitude, o preparo para o envelhecimento, são questões que tem permeado a minha cabeça. 

Como relaxa?

Para relaxar gosto de ir para academia, mas não tenho conseguido frequentar. Mas meu hobby é ouvir música! Uma das populares que gosto é o disco de Gilberto Gil chamado "Concerto para Cordas e Máquinas de Ritmo", tem a música do Caetano "Panis et Circenses", que me toca muito! E nos finais de semana gosto de tomar um chopinho com os amigos.

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