A Rádio Sucata, banda da qual Paulo Salmaci faz parte, utiliza os instrumentos alternativos e ajuda a difundir a importância da prática de ações sustentáveis (Nato Canto)
Que utilidade poderia ter, para uma banda musical, objetos descartados como latas de biscoito, tubos de papelão, chuveiro velho, filmes de radiografia, chaves quebradas ou capsulas de café usadas? Pois tudo isso em mãos criativas tem utilidade, valor e, pasmem, um lindo som! Quem garante é o músico campineiro Paulo Salmaci, um luthier - construtor de instrumentos musicais - focado na sustentabilidade. Mas não pense que ele faz brinquedinhos que logo são descartados.
Pelo contrário, ele constrói instrumentos musicais que são usados até nas apresentações de sua banda, chamada Radio Sucata. Suas inovações nessa área já somam cerca de 50 instrumentos diferenciados feitos com objetos que iriam para o lixo e essa criatividade lhe rendeu, no início deste ano, o primeiro lugar no Prêmio Brasil Criativo 2023, na categoria Música, que envolveu projetos de todo país.
"As pessoas ficam encantadas ao se depararem com objetos de descarte produzindo sons semelhantes aos de instrumentos musicais convencionais. Foi o que aconteceu comigo, quando fiz o primeiro instrumento com materiais que iriam para o lixo", comenta Salmaci, que além de músico e luthier, é pesquisador, produtor e professor. A banda Rádio Sucata também está ativa com as apresentações do projeto "Reciclando a MPB", contemplado e patrocinado pelo Fundo de Investimentos Culturais de Campinas (FICC). Em outubro, serão realizadas as duas últimas apresentações em Campinas, em datas e locais a serem confirmados. O show tem cerca de uma hora e meia de duração, e além do repertório com canções de artistas reconhecidos da Música Popular Brasileira, há também composições próprias, incluindo ritmos dançantes como baião e samba reggae. E todos os instrumentos usados para o show são construídos de sucatas.
CURIOSIDADE INFANTIL
Paulo conta que desde criança era curioso sobre o funcionamento das coisas, gostava de modificar as funções dos objetos e criar novidades. Ele nasceu em Campinas, passou parte da infância em Goiás, na adolescência a família mudou para Mogi Mirim e já adulto ele retornou a Campinas para estudar e trabalhar. A música entrou na sua vida na adolescência e se firmou quando começou a tocar (percussão e bateria) na Banda Municipal de Mogi Mirim, que executava um repertório mesclado de erudito e popular. Em 2004, depois de passar pelo Conservatório de Tatuí, retornou a Campinas para cursar música na Unicamp e revela que, após se formar, "levava uma vida de músico tradicional, tocando em bares e dando aulas".
A união de sua criatividade com a música nasceu "quase sem querer, de maneira não planejada". Ele lembra que quando ainda estudava na Unicamp participava de um grupo de percussão chamado Tambaleio, com instrumentos africanos afinados por corda. "O problema é que ninguém sabia afinar e eu comecei a investigar o sistema de afinação de tambores com cordinhas e, para praticar, construí um tambor com um tubo de papelão que achei jogado na rua e com o plástico de uma garrafa de refrigerante eu fiz a membrana que substituiu o couro. E dali saiu um som incrível, me impressionei com aquilo", relata.
Aquela experiência o tocou de maneira tão significativa que passou a observar outros tipos de sons que saiam de cada objeto encontrado. Foi assim que começou testar a construção de outros instrumentos, buscando novas sonoridades, sempre usando os materiais descartados pela cidade. Foi quando observou a grande quantidade de sucatas no lixo e que ainda poderiam ter alguma utilidade.
O músico e luthier e alguns dos instrumentos que cria (Rodrigo Zanotto)
CONSCIÊNCIA AMBIENTAL
"Durante parte da minha vida tive um comportamento não sustentável no que diz respeito à separação de lixo, consumo e descarte", reconhece Salmaci. Mas ao começar a prestar atenção na possibilidade de reutilização de embalagens, peças metálicas e outros objetos que iam para o lixo e viraram música, ele se aprofundou no assunto. "Amadureci minha consciência ambiental e hoje não consigo descartar embalagens em qualquer lugar, me preocupo com isso", diz.
Essa preocupação ambiental passou a ser também um dos objetivos do trabalho do músico. "Espero que as pessoas sejam influenciadas por meu trabalho, é um esforço individual que leva ao coletivo. Um trabalho de formiguinha que muita gente não dá valor, mas qualquer ação pode ajudar na mudança de rumo", afirma. Por esta razão, uma das facetas de seu trabalho é oferecer oficinas de construção de instrumentos em escolas, organizações sociais e até em empresas. Ele explica que não vende instrumentos e nem constrói sob encomenda, mas ensina a construir. Para alcançar diferentes públicos, tem oficinas com conteúdo diferente.
Algumas são voltadas para crianças - mais lúdicas e educativas -, enquanto outras são formatadas para adultos, idosos e até alguns projetos de atividades específicas para serem desenvolvidos dentro de empresas. O foco, entretanto, é o mesmo: o uso de materiais alternativos e de descarte.
INSTRUMENTOS CRIATIVOS
A maior parte dos instrumentos musicais criados por Salmaci é réplica, como o surdo, o caxixi, o timbal. E outros surgem na forma de instrumentos novos (como o tubak), cuja sonoridade e utilização não permitem a comparação com um instrumento convencional. Um bom exemplo é um chocalho feito por ele usando chaves, tampas de garrafa e pneu de barro, batizado de carrirola (uma mistura de carrilhão com pandeirola). Ele fica num pedestal ao lado da bateria e é tocado com baquetas, e pode ser visto nos shows da Rádio Sucata.
Teve uma época, relata o músico, que ele estava com uma boa quantidade de instrumentos construídos e, como chamavam bastante a atenção, ele decidiu dar vida a eles. "Queria mostrar que não era só um trabalho artesanal caseiro, mas que funciona e se tiver capricho na construção pode se tornar um instrumento com um som de qualidade, podendo ser usado até em shows", comenta. Foi assim que nasceu a banda Rádio Sucata, que atua em shows com repertório infantil, teatro, contação de histórias musicalizadas, entre outras atividades.
Outro instrumento que chama a atenção nos shows é a marimba de vidro (que toca harmonia e melodia) e um instrumento de tubos percutidos batizado de "baixo lata", por fazer a função do contrabaixo na banda. É construído de latinhas de refrigerantes e o som é extraído com uma espécie de baqueta de PVC parecida com um chinelo. A banda conta ainda com uma bateria completa de tambores feitos com pedaços de plástico, papelão, antenas de TV, peças de bicicleta e latas de tinta. E uma percussão múltipla, onde o músico precisa administrar cerca de 20 instrumentos como os pandeiros e uma série de chocalhos. "Quem assistir ao show vai perceber a sonoridade de uma música feita com todos os elementos", garante o músico que integra a banda formada por quatro percussionistas e um cantor.
"Vejo que esse trabalho tem alguns pontos interessantes, como o estímulo à criatividade, mostrando que é possível criar coisas inovadoras, a parte da sustentabilidade porque ressignificamos aquilo que é considerado lixo, e o incentivo a um comportamento correto no descarte de materiais", pondera Salmaci. Ele mantém um canal da Rádio Sucata no Youtube, onde ensina o passo a passo para a construção de vários instrumentos usando sucata. "Assim como a poesia, a arte de ressignificar transforma as pessoas, pois traz consigo a magia da surpresa resultante da mais bela das capacidades humanas: a criatividade", conclui. A agenda do músico e luthier pode ser consultada no Instagram @radiosucata.