AVANÇOS LEGAIS E SOCIAIS

Lei Maria da Penha também vale para mulheres trans

Entendimento foi do STJ, ao acatar pedido do MP de São Paulo, e cria jurisprudência

Isadora Stentzler
16/04/2022 às 19:11.
Atualizado em 17/04/2022 às 10:46
O STJ estendeu as medidas da Lei Maria da Penha a mulheres transexuais e travestis (Kamá Ribeiro)

O STJ estendeu as medidas da Lei Maria da Penha a mulheres transexuais e travestis (Kamá Ribeiro)

“Se a Lei Maria da Penha valesse antes, não tinha acontecido o que aconteceu comigo”, reflete Isabela*, protegida agora em Campinas, referindo-se à decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que estendeu as medidas da Lei Maria da Penha a mulheres transexuais e travestis. 

No último ano, a jovem travesti, de 19 anos, vivenciou horrores em uma casa onde era mantida como prostituta, no interior de São Paulo, por entender que aquele era seu “lugar”. Hoje, ela reconhece que a Justiça poderia ficar a seu favor. 
Isabela é uma jovem franzina, de fala mansa e voz baixa. Chegou em Campinas há uma semana. Antes, vivia em uma casa com outras 25 pessoas, onde era agredida por sua condição de gênero. Além de toda a violência doméstica sofrida no local, ela ainda era obrigada a manter uma rotina de uma exploração sexual, rompida depois de uma fuga, há duas semanas.

Quando ainda tinha 18 anos e morava em um Estado do Norte do país, que a reportagem também não citará para evitar a identificação da jovem, ela foi seduzida pela proposta de mudar de vida no Estado de São Paulo. Foi-lhe prometida a aplicação de prótese de silicone, além de dinheiro e clientes que pagariam valores altos pelos programas. 

Ouvia continuamente que ela nunca seria uma mulher de verdade se não tivesse essas coisas. Para uma jovem travesti, ter seu corpo reconhecido como o de uma mulher cisgênero é parte importante do processo que perpassa pela identidade e autoestima. Por isso, ela decidiu embarcar para o estado paulista. 

Porém, ao chegar não encontrou sequer sombra do sonho vislumbrado. Foi colocada em uma casa com outras 25 mulheres, todas presas a dívidas pagas a uma cafetina, que lhes agredia, caso não realizassem o pagamento. 
Além disso, seus cabelos foram cortados, sobrancelhas raspadas e todas as roupas e perucas cobradas por valores escorchantes. A dívida crescia enquanto seu corpo se esgotava em programas.

Levou um ano para que tudo fosse pago, porém foi apenas durante um tiroteio, sofrido em um ponto de programa, é que ela viu a oportunidade de fugir e romper o ciclo de violência que vivia naquela situação. 

Lei Maria da Penha 

A Lei Maria da Penha foi sancionada em 7 de agosto de 2006 e criou mecanismos para prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Em decisão histórica, no início deste mês, o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a legislação também vale em caso de violência contra mulheres trans, já que a Lei é para questão de gênero e não para sexo biológico. 

O entendimento do STJ ocorreu ao julgar um caso apresentado pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) e criou jurisprudência para todo o território nacional.

O caso tratava de uma mulher trans que havia requerido a concessão de medidas protetivas contra o próprio pai em virtude de agressões praticadas por ele. 

Segundo os relatos, o pai era usuário de drogas e bebidas alcoólicas e, no dia dos fatos, atacou a filha batendo sua cabeça contra a parede. A vítima conseguiu fugir e foi socorrida por policiais militares. 

De acordo com a advogada e professora de Direito Penal e Processual Penal da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de Campinas, Christiany Pegorari Conte, a decisão obtida nesse caso é um marco na ampliação dos direitos para a população LGBTQIA +. 

“É um entendimento importante, visto que a aplicabilidade da lei Maria da Penha a pessoas trans em outras instâncias não era consolidada. Havia entendimentos divergentes a respeito desse assunto. Um posicionamento do tribunal superior é um precedente importante para a interpretação da legislação e ampliação da proteção”, destaca. 

Avanços

A presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos de Campinas (ABGLT), Symmy Larrat, também aponta que a mudança propiciará maior proteção a pessoas trans e travestis, considerando-se que é dentro do ambiente domiciliar, muitas vezes, onde sofrem a primeira violência. “Para nós é uma vitória, porque lutamos por isso”, afirmou.

“Há uma divergência de estado para estado e o STJ, uma instância superior, determinando isso, unifica o entendimento no Judiciário, promovendo o acesso dessas pessoas, mulheres trans e travestis, a esse direito. E a gente começa a encarar que a transfobia acontece também e inicialmente em âmbito familiar, em âmbito doméstico.” Symmy, quando olha para o município, acredita que muitos avanços possam ocorrer com a inclusão desse público nas medidas da Lei Maria da Penha. 

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