DESRESPEITO AOS POVOS ORIGINÁRIOS

Indígenas denunciam fala racista em evento na Unicamp

Agressões verbais foram proferidas por estudante de filosofia de outra universidade no sábado, em roda de conversa promovida por grupo de estudos

Luis Edaurdo de Sousa/ luis.reis@rac.com.br
22/08/2023 às 09:15.
Atualizado em 22/08/2023 às 09:15

Estudantes que estavam no debate promovido pelo Grupo de Estudos de Filosofia Indígena, no IFCH, durante o Unicamp de Portas Abertas, ficaram ‘em choque’ com o discurso racista (Alessandro Torres)

Estudantes indígenas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) denunciaram um caso de racismo nas dependências da universidade no último sábado, durante realização do evento Unicamp de Portas Abertas (UPA) – quando o campus abre as portas para que o público conheça os cursos oferecidos. O caso aconteceu menos de uma semana depois da colação de grau dos primeiros indígenas que se formaram na universidade após ingressarem na primeira edição do Vestibular Indígenas, em 2019.

As falas foram proferidas no período da tarde, no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), em uma roda de conversa promovida pelo Grupo de Estudos de Filosofia Indígena. Um aluno do curso de Filosofia da PUCCampinas, Washington de Oliveira Vieira, participava do debate como ouvinte e disse que “ninguém está interessado no idioma indígena”, “que as etnias indígenas devem se adequar à civilização” e que os “índios devem tirar a tanga e estudar nossa língua”. O discurso preconceituoso foi registrado em vídeo e publicado nas redes sociais.

Os alunos indígenas da universidade alegam ainda que o rapaz teria dito que os povos originários são “drogados”, “vagabundos” e “atrasados”. O Coletivo Acadêmicos Indígenas da Unicamp (AIU) enviou uma carta cobrando posicionamento da reitoria e disse que registrará um boletim de ocorrência.

A estudante de ciências sociais Marcela Pankararu, de 30 anos, estava no evento e presenciou o ocorrido. Ela conta que os estudantes ficaram em choque ao ouvir as falas racistas proferidas por Washington.

“A gente não esperava que isso acontecesse, foi um momento de choque, ninguém acreditou que ele estava falando aquilo. Nós dissemos que a fala dele era agressiva, mas mesmo assim ele continuou, não queria parar de falar, justificando que aquela era a opinião dele”, conta a jovem Pankararu.

Marcela detalha por pontos as falas agressivas emitidas pelo rapaz. “Ele começa dizendo que ninguém está interessado no nosso idioma, que nós é que devemos falar o português, assim como todo mundo. Até porque, na visão dele, nossas etnias não vão existir em breve. Disse que os ‘homens do ocidente’ inventaram tudo e devem ser dominantes, não fazendo sentido a continuidade da nossa existência.”

No vídeo, registrado por outros participantes do evento, é possível ouvir as ofensas. O rapaz fala que “o homem ocidental é aquele que criou a tecnologia, criou a bomba nuclear, criou uma série de coisas para se estabelecer como dominante, então a gente tem que se adequar, não tem essa. Eu acho que o 'índio' mesmo, no meu ponto de vista, tem que tirar aquela tanga dele, tá certo? E estudar nossa língua em vez de ficar falando essa língua que ninguém entende. Detalhe, tem que entender que a maioria das pessoas não está interessada em aprender tupiguarani nem língua nenhuma deles”, diz o homem, que somente parou ao ser interrompido por outro aluno.

Em outro vídeo é possível ouvir o momento em que o rapaz é convidado a se retirar. Ele reclama, mas não resiste, e deixa o local sob protestos. Apesar das falas racistas, nenhuma agressão física foi registrada.

O líder do coletivo, Arlindo Baré, cobra da PUC-Campinas algum procedimento para que casos como esse não voltem a acontecer. Para ele, é inadmissível que um estudante de filosofia reproduza estereótipos racistas acerca de qualquer etnia, seja indígena ou não.

“Entendemos que o principal objetivo do curso de filosofia é formar profissionais capazes de fazer análises críticas, rigorosas e profundas sobre questões das mais variadas dimensões da existência humana, incluindo individual, social, política, econômica, artística e espiritual. Dessa forma, não aceitamos a formação de universitários com pensamentos e comportamentos preconceituosos, racistas e xenofóbicos."

“Somos 1,7 milhão de indígenas no território brasileiro e seguiremos nas universidades e em outros espaços políticos na luta contra todos os tipos de violência que vitimam diariamente os nossos povos originários”, complementa.

O coletivo publicou o vídeo em seu Instagram junto a uma nota de repúdio.

“As falas contidas no vídeo celebram o genocídio e projeto colonial de extermínio dos povos indígenas”, ressalta o texto. “A exposição do GE de Filosofia Indígena no UPA demarca a importância do pensamento indígena para repensar as possibilidades de reconstrução de um mundo em ruínas e celebra a presença indígena na Universidade”, afirma outro trecho da nota.

A PUC-Campinas confirmou que Washington é aluno da instituição e se posicionou sobre o caso. “A PUCCampinas defende e preza, em todas suas atividades acadêmicas e institucionais, uma sociedade justa e fraterna, o que inclui o respeito às origens e às culturas diversas que compõem a nação brasileira. A Universidade condena com veemência a manifestação do estudante e reforça que a postura do aluno confronta a missão e os valores da instituição."

A Unicamp também se pronunciou através de nota, emitida pelo IFCH. “Durante a exposição do Grupo de Estudos de Filosofia Indígena, um dos participantes da atividade - que não é estudante da Unicamp- fez uma intervenção racista contra os povos indígenas. Mais do que emitir opiniões infundadas, sua fala demonstra preconceito e ignorância, desrespeita a diversidade de saberes e culturas, expressa e promove a violência contra os povos indígenas, manifestando um profundo desrespeito aos direitos humanos e incorrendo no crime de racismo. Diante desse episódio, o IFCH e toda sua comunidade se solidarizam com os povos indígenas, que hoje fazem parte dos saberes que ensinamos, aprendemos e compartilhamos, não apenas no IFCH, mas em toda a Unicamp.”

A reportagem tentou contato com Washington de Oliveira Vieira, responsável pelas ofensas, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.

FORMATURA

Na última semana, dois estudantes indígenas que ingressaram na universidade na primeira edição do Vestibular Indígena, em 2019, se formaram na graduação. De acordo com a Unicamp, a colação de grau contou com rituais realizados no Centro de Convenções, nos campi de Campinas e Limeira. Jeovane Ferreira Lima, estudante do povo Tariano, se formou no curso de midialogia, lecionado em Campinas. Já Luiz Medina, Guarani, concluiu o curso de administração pública na Faculdade de Ciências Aplicadas, em Limeira. De acordo com a Comissão Permanente para os Vestibulares da Unicamp (Comvest), atualmente a universidade tem uma população de alunos indígenas com 438 integrantes.

Arlindo Baré cobrou a adoção de medidas para que casos como esse não voltem a acontecer na Unicamp (Alessandro Torres)

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