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Idosos retomam sonho da alfabetização no pós-pandemia em Campinas

No EJA I, 243 pessoas com 60 anos ou mais buscam o direito de ler e escrever

Isadora Stentzler/ [email protected]
03/08/2022 às 09:38.
Atualizado em 03/08/2022 às 09:38
Maria Pereira de Souza, de 75 anos: ‘Decidi que estudaria para aprender a ler o ônibus. É muito difícil precisar pedir ajuda o tempo inteiro. Hoje, já estou conseguindo escrever meu nome’ (Dominique Torquato)

Maria Pereira de Souza, de 75 anos: ‘Decidi que estudaria para aprender a ler o ônibus. É muito difícil precisar pedir ajuda o tempo inteiro. Hoje, já estou conseguindo escrever meu nome’ (Dominique Torquato)

Dentro de uma sala de aula com 13 alunos é que Maria Pereira de Souza, de 75 anos, busca pela primeira vez a alfabetização. Aluna do programa de Educação de Jovens, Adultos e Idosos (EJA I) para séries iniciais da Fundação Municipal para Educação Comunitária (Fumec) de Campinas, ela é uma das 243 pessoas com 60 anos ou mais que buscam o direito de ler e escrever no pós-pandemia na cidade. Os dois anos de ensino remoto afastaram cerca de 10% desse grupo das salas de aula, número que busca ser recuperado agora. O retorno às aulas é acompanhado de histórias de pessoas que tiveram esse acesso barrado na infância, mas que não desistiram de conquistá-lo.

Segundo o gerente dos programas de Jovens Adultos e Idosos da Fumec, José Batista de Carvalho Filho, a evasão de alunos do EJA durante a pandemia foi influenciada por diversos fatores, dentre os quais está a própria dificuldade no início da alfabetização. 

Como muitos dos alunos do EJA estão no programa para as séries iniciais, ou seja, não têm conhecimento das palavras e números, a assimilação de conteúdos na forma remota era um difícil desafio. Com o retorno presencial, Carvalho Filho vê esse gargalo sendo sanado, a partir da capacitação dos professores e a inserção de novos modelos aliados à tecnologia para atuar com esse grupo.

“Com a pandemia e o isolamento das pessoas, buscamos meios alternativos para manter o contato com alunos visando garantir a permanência deles. Os alunos que apresentaram defasagem estão passando por um processo de revisão para que possam se sintonizar nesse processo de aprendizagem, até cumprirem o objetivo de ler e escrever de acordo com as metas do quinto ano”, explica. 

Maria é uma das estudantes mais velhas na turma que estava na tarde de terça-feira (2) no DIC IV. Junto com os colegas Manuel Bento Sampaio, de 75 anos, e Adalberto Chaves de Ramos, de 74, todos buscam romper as barreiras que o analfabetismo trouxe ao longo de suas vidas. 

Eles também possuem trajetórias parecidas, que se misturam com a vida simples no interior e a falta de perspectiva, que lhes furtou o direito ao estudo. “Eu decidi que estudaria para aprender a ler o ônibus. É muito difícil precisar pedir ajuda o tempo inteiro. Hoje, já estou conseguindo escrever meu nome. Mas agora que comecei, não quero parar”, disse Maria. 

Em Campinas, a estimativa é de que existam 15.530 pessoas não alfabetizadas ou que estejam no grupo de analfabetos absolutos. Só pela Fundação Municipal para Educação Comunitária (Fumec), existem 1.451 alunos matriculados nos programas de Ensino de Jovens e Adultos (EJA), sendo 848 no EJA para anos iniciais. 

Outro programa que existe no município e que também auxilia essas pessoas conquistarem o sonho de aprender a ler e a escrever é o Projeto Educativo de Integração Social (Peis), vinculado à Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Fundado há quase 40 anos, o programa é totalmente gratuito e voltado para a promoção do direito à educação de pessoas que não tiveram acesso ao ensino na idade própria. 

“O público-alvo da EJA é um público marcado por diversos marcadores sociais de diferença e desigualdade, são os sujeitos sistematicamente excluídos pelo sistema escolar e que geralmente têm trajetórias marcadas por múltiplas violações de direitos. Falamos de pessoas negras, pobres, pessoas egressas do sistema prisional, pessoas travestis e transexuais, enfim, sujeitos que são vítimas de múltiplos preconceitos. Mas no geral, a EJA é feminina e negra”, explica Tayná Victoria de Lima Mesquita, socióloga que integra o conselho pedagógico do Peis. “O sujeito da EJA retorna à escola com o estigma do fracasso e precisa ser muito bem acolhido e fortalecido em sua autoestima como sujeito de conhecimento.”

Da alfabetização à graduação 

A faxineira Dirce Maria da Silva Copertino, de 67 anos, conseguiu concluir o ensino fundamental e médio no ano de 2007 por meio do Peis. Mesmo após a conclusão das disciplinas, permaneceu no curso, pois ele lhe dá incentivo para persistir no sonho maior: o de cursar uma universidade.

Na pequena casa de quatro cômodos em que vive em um bairro de Hortolândia, a faxineira se debruça na escrita cursiva em um caderno de folha A4, todo pautado. Ali é onde traça as primeiras linhas do que sonha transformar em livro, no qual vai narrar sua sina “desde que se entendeu por gente”, aos 5 anos de idade. 

Isso porque Dirce é uma das tantas mulheres negras crescidas no interior que foram furtadas do estudo para trabalhar, ainda na mocidade.

Aos 11 anos, ela precisou largar a família e abandonar as aulas para trabalhar como doméstica. Naquele caderno em que traça sua história, ela descreve que não sabia limpar, tampouco cozinhar um alimento. A patroa da época, embora fosse professora, também não lhe deu o direito de aprender algo que fosse além dos afazeres domésticos. 

Ao alcançar os 19 anos, Dirce buscou, pela primeira vez, o ensino para jovens e adultos. Porém, entre idas e vindas, quatro no total, e sempre barrada pelo desafio da falta de dinheiro, foi só em 2007 que conquistou o título de alfabetizada.

“Comecei a ler com 50 e poucos anos. Tinha algo comigo: queria ler. Ninguém me incentivou. Ninguém disse que eu deveria estudar. Era eu que queria. Mesmo numa vida sofrida, de buscar ossos para ter meu alimento, decidi que um dia saberia ler e escrever. Hoje passo as noites lendo e sonho em terminar a faculdade e deixar meu livro, minha história.”

Em 2010, Dirce foi aprovada na faculdade de Serviço Social. Conseguiu cursar seis meses, até que seu marido adoeceu e ela precisou ajudá-lo. Quando as coisas melhoraram, foi a pandemia que lhe barrou a volta à universidade. Mas para quem não desistiu de aprender a ler até conquistar esse direito aos 50 anos, a graduação é certamente um sonho possível.

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