CAMPINAS

Herança afro faz parte do cotidiano de bairro

Casa Tainã, na Vila Castelo Branco, é ponto de encontro e difusão da arte e tradição

Rogério Verzignasse
20/11/2013 às 06:30.
Atualizado em 24/04/2022 às 23:06

A entidade ocupa as dependências de uma praça de esportes desativada, no coração do bairro. As piscinas estão vazias, os canteiros tomados pelo mato. Mas quem entra da porta para dentro descobre um universo deslumbrante de cores, imagens e sons. A Casa de Cultura Tainã se transformou em referência nacional na difusão de expressões artísticas de origem africana. E hoje, Dia da Consciência Negra, a programação artística intensa agendada para a cidade toda celebra o que, há 24 anos, passou a fazer parte do cotidiano da Vila Castelo Branco.O bairro nasceu na década de 60, como um dos primeiros núcleos de habitação popular em Campinas. Para lá, se mudaram muitas famílias modestas, que se espalhavam por cortiços e submoradias da região central. Há teorias acadêmicas e teses que, historicamente, associam o bairro a uma ultrapassada cultura de segregação social e racial.Mas, se a ideia da classe dominante na época era mandar essa população para longe do Centro, o efeito foi exatamente o contrário. TCA vila se tornou tradicionalíssima, desenvolvida. E os moradores, predominantemente negros, não se fecharam no gueto. Ao contrário, o local se tornou modelo para divulgar valores e conhecimentos a gente de todas as origens, e de todos os bairros.Um dos fundadores da casa, Antônio Carlos Santos Silva, conhecido como TC, é um batuqueiro autêntico, percussionista conhecido e reconhecido pela cidade toda. Um cidadão de 61 anos que jamais frequentou a universidade, mas que carrega uma bagagem cultural imensa, que passa de pai para filho. Ele nasceu naquele bairro, cantinho que o povo conhece como Vila Bela, e foi testemunha de desentendimentos, intolerâncias, opressão policial. Cresceu, literalmente sentindo na pele, o que era ser um negro. Teve dez filhos. Nunca saiu do bairro.TC, longe de se lamentar, se ocupa para aprimorar a Tainã, braço campineiro da Rede Mocambo, que por todo o Brasil compartilha informações e conhecimento com cerca de 200 centros culturais afro e comunidades quilombolas. A própria casa de cultura na Castelo Branco ganhou os ares de um “quilombo urbano”. É um centro de convivência onde os moradores do bairro se encontram, se aconselham, se divertem. EssênciaPor ali, se tocam tambores e instrumentos milenares de corda e percussão, trazidos de nações africanas. Os quadros espalhados pelas paredes mostram a presença histórica no negro, representado em rodas de jongo, escolas de samba e grupos musicais. Pelo quintal imenso foram plantados baobás, árvore símbolo das raízes africanas. O quiosque das atividades culturais é emblemático. A estrutura é de bambu, os tijolos são de barro, a cobertura usa telhas de fibra vegetal.A casa de cultura usa gratuitamente o espaço cedido pela Prefeitura. Mas não chega um centavo dos caixas do Município. Para pagar as contas básicas e comprar material, o grupo conta com patrocínios ocasionais para um evento ou outro. Ou da apresentação, pela cidade toda, de uma orquestra de tambores. A entidade, enfim, se paga. Com o empenho voluntário, difunde arte. E os alunos não pagam um tostão.“Essa é a essência. A gente não procura lucro. Procura, sim, celebrar a arte afro. O Ocidente conheceu os negros por causa da escravidão. Hoje, a nossa missão é apresentar ao mundo o negro culto. A música, a dança, os hábitos, os valores. Hoje, a roda de capoeira e maracatu impressionam alemães que andam pela praça em Berlim. A África está presente, ativa, influente no cotidiano do planeta inteiro”, afirma. Identidade cultural Ali pela Castelo Branco, a poucas quadras da Casa de Cultura Tainã, mora Aluízio Jeremias. Um campineiro de 73 anos que nesta vida já foi de tudo: lixeiro, metalúrgico, servente de pedreiro, cobrador de ônibus. Mas, quando beirava os 30 anos, o homem começou a pintar quadros. O talento era nato. Desde menino, ele rabiscava cadernos e paredes. Adorava desenhar. E até se arriscou a pintar paisagens rurais. Começou a expor na feira de artesanato, quando ainda era realizada na Praça Carlos Gomes, mas não conseguia vender um quadro. Um belo dia, no entanto, o Jeremias descobriu que, para dar vida à obra, ele precisava pintar a sua própria história. “Oras, eu era negro. Nasci em uma casinha modesta do velho Cambuí. E meu cotidiano era ver a roda de samba no barzinho, o carroceiro passando, as crianças brincando. Eu virei pintor das cenas ao meu redor”, conta. Cantor dos bons e compositor, Jeremias passou por escolas de samba tradicionais da Foto: Gustavo Tilio/Especial para a AAN Quadros do pintor Aluízio Jeremias cidade. Foi carnavalesco da Estrela d’Alva. Compôs e puxou sambas na avenida quando defendeu a Rosas de Prata. E é ali mesmo, na Rosas, que ele continua sendo presidente de honra. E se orgulha de falar que, na Castelo Branco, a escola preserva o Carnaval na essência, com samba na quadra, comunidade envolvida.Ele vive da pintura. Mora em uma casinha de 40 metros quadrados, na Rua Valentin Segálio. Os cavaletes, pincéis e tubos de tinta se espalham por cada cômodo. As paredes são tomadas por quadros e grafitagem. Vive só, pintando o tempo todo. Ele tem três filhos e seis netos. Mas a turma pouco aparece. Separado da última mulher, ele se diverte: diz que voltou a curtir a vida de solteiro. Não segue nenhuma escola. Aprendeu e ainda aprende lendo muito, estudando, treinando. Só o que não muda é o tema. A comunidade negra campineira, através dos séculos, continua sendo a sua inspiração. SAIBA MAISA Casa de Cultura Tainã fica na Rua Inhambu, 645, na Vila Castelo Branco. O telefone é o (19) 3228-2993.

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