CORRESPONDÊNCIA

Hábito de escrever cartas sobrevive às redes sociais

Obstinados conservam o costume de se corresponder via texto escrito à mão

Bruno Luporini/[email protected]
19/06/2025 às 12:32.
Atualizado em 19/06/2025 às 13:54
De acordo com os Correios, em todo o mundo pode ser observada a queda no volume das correspondências tradicionais (Alessandro Torres)

De acordo com os Correios, em todo o mundo pode ser observada a queda no volume das correspondências tradicionais (Alessandro Torres)

O ato de escrever uma carta e enviá-la a alguém, antes considerada uma ação corriqueira, se transformou em raridade na era das redes sociais. Poucas pessoas ainda conservam o costume de se corresponder via texto escrito à mão no papel.

Mas alguns ainda insistem e preservam o hábito. "É uma arte", opina Maria Eduarda da Silva Lima, uma jovem escritora de apenas 15 anos. De acordo com os Correios, em todo o mundo pode ser observada a queda no volume das correspondências tradicionais. Nos últimos vinte anos, o envio de mensagens por cartas diminuiu cerca de 70%.

Segundo os Correios, não há dados específicos disponíveis de cartas convencionais, manuscritas. Isso porque as cartas simples estão incluídas no segmento de mensagens, ao lado das cartas registradas e telegramas. Este último ainda ocupa lugar de destaque para diversas áreas do mercado. Por ser considerado um documento oficial, o serviço é utilizado para realizar convocações de concursos, perícias médicas, cobranças judiciais entre outros. No entanto, os Correios não informaram a quantidade de telegramas enviados, apenas que são entregues cerca de 2 bilhões de mensagens impressas por ano no Brasil.

Na entrada do prédio central dos Correios, localizado na avenida Francisco Glicério, Centro de Campinas, há mais de 30 anos, Francisco da Silva, 58, vende envelopes e selos. Ele contou que vendia muitos envelopes para as cartas pessoais. "Desde 2006 isso mudou muito, hoje vendo mais embalagens para encomendas, envelopes e selos para cartas pessoais sai muito pouco". Da Silva explicou que a maioria dos envelopes e selos vendidos são para pessoas que desejam se comunicar com alguém que está preso. Pouco tempo depois dele relatar esse fato, a recepcionista Cibele Bernardes, 38, apareceu com a mãe Beatriz Bernardes, 68, para adquirir os produtos. Elas fazem parte a cinco anos de um projeto chamado Reeducandas. Organizado pelas Testemunhas de Jeová, o projeto tem como principal objetivo estabelecer uma comunicação religiosa com as detentas dos presídios paulistas. No entanto, Cibele relatou que na maioria das vezes, além dos dizeres religiosos, as mulheres desabafam sobre sua realidade e contam suas aflições e dores durante o tempo de reclusão. "É quase terapêutico e muitas, mesmo que não sigam a nossa religião, se constroem como pessoas melhores, pois as cartas são um gesto de cuidado e carinho", afirmou Cibele.

Cuidado e carinho que Maria Eduarda, 15, encontrou em suas cartas. A jovem lembrou que desde pequena se encantou pelo mundo das letras. Inicialmente ela escrevia para si mesma, sempre a punho, mensagens de amor e saudades. A vontade de enviar cartas se concretizou há três anos, quando começou a enviar mensagens físicas para amigos e para sua madrinha que mora na Espanha. O ato de escrever fez com que ela também se aproximasse da literatura. Maria Eduarda destacou a escritora estadunidense Amanda Lovelace como sua favorita atualmente. "Eu comecei a gostar primeiro de poesia e depois fui descobrindo outros gêneros como crônica, conto e a própria carta". O processo rotineiro da escrita das cartas faz a jovem moldar o próprio futuro. Em 2026 ela inicia o Ensino Médio com o objetivo de seguir para um curso de graduação que envolva o mundo das palavras. "Atualmente eu penso em cursar jornalismo, mas independentemente da escolha, quero muito que a escrita esteja envolvida na minha vida."

Já para Maria Célia Romão, 66, a vida profissional foi toda composta pelas letras, especialmente nos 40 anos que dedicou à educação. Ela nasceu em Guarulhos e se mudou para Campinas ainda jovem, aos 17 anos. À época se comunicava com as amigas que ficaram na cidade natal via cartas. Depois, sua irmã mudou para a Alemanha e as cartas continuaram como o principal meio de comunicação. Para ela, essa forma de comunicação é uma mescla de intimidades e registro histórico. Formada em Ciências Sociais e História, começou a dar aulas para crianças e adolescentes em 1981. Inspirada pela própria experiência, elaborou um projeto onde os alunos escreviam cartas para si próprios, porém, elas só eram abertas anos depois, quando estavam para se formar no Ensino Fundamental. Os alunos, segundo ela, sempre se impressionaram com a transformação da própria experiência. "Até hoje recebo esse feedback deles, pois eles continuam escrevendo as cartas". A correspondência continua com uma ex-aluna que se mudou para São José do Rio Preto. "Agora eu mando cartas para o filho dela também, para que ele tenha esse contato com o ler e escrever."

Para especialistas, o ato de escrever cartas, apesar de raro, segue como uma forma genuína de comunicação e contato mais humanizado entre as pessoas. Guilherme Rodrigues, 37, doutor em teoria e história literária, explicou que a comunicação via cartas é uma tradição antiga. Ele citou como exemplo escritores do século dezenove e vinte, como Machado de Assis, Flaubert e Proust. "Esses e outros escritores têm um sem número de cartas que formam quase uma obra paralela". Dentro desse contexto, Rodrigues afirmou que tais cartas são recheadas de reflexões literárias do próprio ato de escrever, justamente por ser um ato mais demorado, que exige um pensamento acerca do que se escreve. "Além disso, você ter que fechar a carta, ir até o correio, esperar a resposta, todo esse aspecto um pouco mais lento, ele presume uma reflexão mais detida sobre o ato de escrita que não existe mais hoje em dia."

Ao contrário das cartas, Rodrigues refletiu que as mensagens corriqueiras de aplicativos, como o Whatsapp, são mais impensadas, não contém um sentido mais profundo. "Corrobora com esse vazio de sentido que vivemos no mundo contemporâneo". Para ele, apesar de atualmente tudo ser escrito, o letramento propriamente dito é muito precário. "Não existe uma reflexão sobre o que se escreve, é uma forma de produto sem conteúdo". Porém, ao final da entrevista, Rodrigues se animou ao lembrar que recebeu uma carta de uma ex-aluna. Amante da literatura de Proust, ela enviou para o ex-professor uma carta, um livro e uma caneta. "Respondi para ela com uma carta também."

"É uma forma que encontro de demonstrar que os amo", afirmou a jornalista e escritora, Débora Gomes, 37, ao se referir às cartas que envia para os amigos. Para ela, escrever uma carta à mão é benéfico para tanto no aspecto físico quanto neurológico. Uma vez que a escrita requer uma pausa do mundo das urgências e corrobora com o tempo de fazer das palavras uma forma de afeto. "Cada palavra escrita guarda um pouco de nós". Para potencializar a experiência da escrita, Débora criou em 2024 uma Oficina de Cartas. O curso de escrita tem por objetivo colocar os alunos, de variadas idades, em contato com esse tempo de pensar e elaborar o que se quer dizer para alguém. "As cartas nos dão a chance de ver o mundo mais devagar, criando um olhar mais gentil para o cotidiano."

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