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Há 60 anos, Boscolo vê o mundo mudar no jornal

O homem, pertinho de completar 78 anos, se tornou um símbolo da história do Correio Popular. Ele foi contratado há nada menos que 60 anos. Ninguém tem tanto tempo de casa

Rogério Verzignasse
01/04/2018 às 13:53.
Atualizado em 23/04/2022 às 09:10
Boscolo no arquivo do Correio: funções aprendidas na prática (Dominique Torquato)

Boscolo no arquivo do Correio: funções aprendidas na prática (Dominique Torquato)

O sobrenome italiano, Boscolo, não tem acento. E nem foi abrasileirado no cartório. Os parentes se apresentam como “Bôscolo”. A sílaba tônica é a primeira. Proparoxítona. Bom, pouco importa a pronúncia. Na verdade, cada um chama o Antonio João Boscolo de um jeito. E ele não dá a mínima. Importa mesmo é que o homem, pertinho de completar 78 anos, se tornou um símbolo da história do Correio Popular. Ele foi contratado há nada menos que 60 anos. Ninguém tem tanto tempo de casa. Hoje, Boscolo comanda o Centro de Documentação (Cedoc) do jornal. Sabe dizer, no mesmo instante, onde estão guardadas reportagens, fotografias, microfilmes. No setor, parece tudo uma confusão. Mas o cidadão circula entre pastas suspensas e armários com a maior desenvoltura. Ele próprio se tornou um arquivo vivo da história da cidade. É fonte obrigatória de consulta para pesquisadores, historiadores, jornalistas e campineiros da antiga, que diariamente invadem a redação à procura de raridades do acervo. Mas, muito antes de ser o organizador do arquivo, ele trabalhou na oficina, nos românticos tempos do “chumbão”. Aprendeu na prática noções de tipografia, e virou operador de linotipo. Era uma máquina esquisita, pesadona, que fundia em bloco cada linha de caracteres tipográficos, usada como base para a impressão. Depois, nos anos 1980, Boscolo assumiu o setor da fotocomposição. A informática engatinhava, mas já provocava uma revolução no sistema interno de produção. Ele fala hoje, todo orgulhoso, que acompanhou todas as mudanças tecnológicas do jornal. E que foi testemunha, época após época, da paixão que movia repórteres, editores, revisores, paginadores e trabalhadores de apoio técnico. Aposentado? Já é. Vai calçar o chinelo e vai pescar? Nem pensar. O Boscolo não consegue se ver longe da papelada ou das fotos da Campinas que não existe mais. Também não abre mão da prosa cotidiana na redação. E conta causos e causos, para a diversão da turma toda. A Vila, a pensão Antonio Boscolo nasceu em Campinas, em junho de 1940. Pequeno, morou ali na João Teodoro, na romântica Vila Industrial dos curtumes e das travessas com casinhas dos ferroviários. De lá, se mudou para a Avenida Dr. Campos Sales, na pensão de uma tia. É que seu pai, Antônio também, era garçom por lá. O cidadão trabalhava para diversos hotéis e restaurantes. Bom, o menino fez o primário no grupo escolar Orosimbo Maia. Depois, aprendeu marcenaria na escola Bento Quirino. Saiu de lá adolescente, formado. Mas não arrumou trabalho. Aí estudou datilografia, fez estágio em empresas famosas, mas ninguém o contratava. Aí o primo Osmar, que já trabalhava no Correio, sabia de uma vaga aberta na oficina. Pois o Boscolo apareceu na Rua Conceição, pediu o emprego, foi contratado e não saiu mais da empresa. Aprendeu o ofício com o João Galerani e o Armando Fonterota, italianada brava, que davam ordens no chumbão. O Boscolo estava na ativa em alguns episódios marcantes. Quando desabou o teto do Cine Rink, por exemplo. Quando caiu o avião que decolava de Viracopos, ou quando o Brasil ganhou a Copa de 1958. “Os funcionários comemoravam jogando papel picado do 5º andar do prédio”, diz. Mas teve um dia marcante. Justo ele, pontepretano da gema, trabalhava na oficina em 1978, quando o Guarani disputava o título brasileiro com o Palmeiras. Correio, 90 anos Por volta de 1990, ele virou arquivista. E, por tabela, historiador. Sua última grande contribuição ao jornal ocorreu no ano passado com a histórica e aprofundada pesquisa que resultou no livro História pelas Capas — Correio Popular 90 anos, obra que marcou o nonagésimo aniversário do veículo, a 4 de setembro de 2017. Por vários meses, o arquivista se debruçou, ao lado do historiador e escritor Jorge Alves de Lima, a pesquisar as capas mais marcantes do jornal, além de esquadrinhar, palmo por palmo, todo o acervo do Centro de Documentação do Grupo RAC para ajudar na concretização do projeto. Um trabalho hercúleo, de fôlego, mas prazeroso. Na memória Bom, o Boscolo levaria uns dez dias para contar algumas das histórias que presenciou. Mas ele fez questão de citar o nome de alguns profissionais da redação de quem ele virou fã. A lista é de peso: José de Castro Mendes, Júlio Mariano, Bráulio Mendes Nogueira, Danton Gomes, Carlos Tôntoli, Roberto Godoy, Álvaro Bozza, Odemar Tenzen, Gilberto Doná, Walter Belenzani, Pedro Bondaczuk, Nelsão Chinaglia… Só feras. E, claro, com quase três décadas de arquivo, ele também fala com orgulho dos amigos inesquecíveis do Cedoc: Scarpinetti, Lucineide, Andrea, Natália, Camila, Alexandre Gama, Vanderlei, Gustavo, William... Faltam nomes? Ah, na certa faltam. Ele diz que não consegue se lembrar de todo mundo. Vai precisar debruçar no bloquinho um dia desses e relacionar, um a um, os funcionários que ele aprendeu a admirar. E a lista será grande. Mas com certeza será muito menor que a relação de trabalhadores do Grupo RAC que aprenderam a admirar o Boscolo. No Baú de Histórias do Boscolo muita coisa ainda está por vir. Quando chegar amanhã para trabalhar, sua primeira missão será arquivar esta edição dominical do Correio. O lábio, o bullying, a professora Antonio Boscolo nasceu com lábio leporino, fissura causada pelo desenvolvimento incompleto do lábio. O céu da boca também foi afetado. Desde sempre, ele é fanhoso. Garotinho, ele conta que virou piada na roda de amiguinhos. Bullying, como dizem hoje. Podia ser um trauma para sempre. Aí apareceu uma figura abençoada. A professora Mafalda Smânio Franceschini, do grupo escolar, pedia que o Boscolo se levantasse da carteira, e lesse em voz alta a lição do livro de português. Pronto. O garoto se encheu de coragem, perdeu qualquer traço de vergonha, e viu que o probleminha não atrapalhava sua vida. O melhor de tudo: acabou a gozação. “A dona Mafalda me fez conquistar a autoestima. Nunca a esqueço” , afirma.

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