PARQUE SHANGRILÁ

Guarda Municipal retira integrantes do MST de área privada em Campinas

Movimento alega que fazenda ocupada é improdutiva; Prefeitura utilizou decreto municipal para justificar retirada de famílias da área

Daniel Rocha/ [email protected]
16/04/2024 às 08:44.
Atualizado em 16/04/2024 às 08:44
Membros das forças de segurança pública dialogam com lideranças do movimento e representantes do Legislativo estadual e municipal: políticos de esquerda estiveram no local e questionaram atuação da GM sem decisão judicial (Rodrigo Zanotto)

Membros das forças de segurança pública dialogam com lideranças do movimento e representantes do Legislativo estadual e municipal: políticos de esquerda estiveram no local e questionaram atuação da GM sem decisão judicial (Rodrigo Zanotto)

Integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) ocuparam e, posteriormente, foram retirados de uma propriedade localizada no Parque Shangrilá, na região leste de Campinas, por um contingente da Guarda Municipal da cidade. A última ocupação do MST na região aconteceu há exatos seis anos, em 14 de abril de 2018, na Fazenda Eldorado, em Valinhos e deu origem ao Acampamento Marielle Vive. Por volta das 6h de segunda-feira, dia 15, um grupo composto por cerca de duzentas famílias armaram barracas na Fazenda Santa Mariana, localizada às margens da Avenida Ivan de Abreu Azevedo, que liga a Rodovia Adhemar de Barros (SP-340) até o bairro Carlos Gomes.

Por volta de 11h30, cerca de trinta guardas municipais, armados de escudos, bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta, se projetaram sobre os ocupantes, empurrando-os para fora da propriedade até a via. A operação durou cerca de trinta minutos. Outras viaturas e um grande número de guardas municipais e policiais militares ficaram na retaguarda durante a ação. Em virtude dos disparos efetuados, focos de incêndio acabaram tomando conta da área e foram controlados pelos próprios guardas. Posteriormente, a fim de impedir o avanço dos homens da corporação, alguns dos ocupantes do MST também iniciaram alguns focos de incêndio que logo foram apagados. Ao final, as barracas montadas no local foram desmontadas pelos próprios membros do Movimento, que se retiraram da fazenda gritando palavras de ordem.

Por volta das 14h, os participantes da ocupação se deslocaram rumo ao Paço Municipal a fim de se reunirem com o vice-prefeito Wanderley de Almeida (PSB). Na reunião, eles questionaram a aplicação do decreto municipal 16.920/2010, utilizado como justificativa para a reintegração de posse do terreno sem a necessidade de um mandado judicial, e pediram também a intervenção do município para a criação de um assentamento do movimento em Campinas. Na reunião, os representantes do MST propuseram um novo encontro, o que foi prontamente aceito pelo vice-prefeito.

SOBRE A ÁREA

De acordo com o advogado do MST, Nilcio Costa, a área ocupada foi escolhida por se encaixar no critério de desapropriação para fins de reforma agrária em virtude de ser um imóvel que “não cumpre com a sua função social”, tem “uma pastagem degradada e baixa produtividade” e possui “cerca de 180 hectares, enquanto o mínimo exigido para desapropriação no município de Campinas é de 150 hectares”. Além disso, Costa complementou que a propriedade seria utilizada para o assentamento de famílias que trabalhariam com a agroecologia, a preservação ambiental, a recuperação de áreas degradadas e a produção de alimentos.

Ele comentou ainda que “a própria proprietária (pessoa jurídica) pediu à Prefeitura a descaracterização da área como rural porque ela não tem interesse em torná-la produtiva e é uma área agricultável, perto de um grande centro de abastecimento, ou seja, ideal para a realização de um assentamento que, com certeza, contaria com um ótimo resultado econômico”.

Segundo o proprietário da área, Cássio de Oliveira, a área é produtiva e, por isso, a invasão é “impertinente”. Ele explica ainda que a propriedade conta com uma criação extensiva de gado nelore, com aproximadamente trezentas cabeças, e uma criação de bezerros para engorda. “Nós desenvolvemos essa atividade há mais de 60 anos, quando a fazenda deixou de cultivar café e algodão para desenvolver a pecuária extensiva de corte, que é o que permanece até hoje. Então, ela é produtiva. Além disso, o pasto está limpo e cultivado. Não é uma área degradada. Quanto ao gado, ele não fica próximo à rua justamente para não causar nenhum dano a terceiros, porque o nelore é um gado bastante bravo. Quanto aos eucaliptos que nós mantemos, a fazenda possui para uso próprio, para fazer cercas, mourões, bebedouros, comedouros etc."

Em relação ao pedido mencionado pelo advogado do MST, realizado em 2015 à Prefeitura, para a que a área deixasse de ser considerada rural, Oliveira explicou que quando da instituição do novo Plano Diretor de Campinas “nós participamos de uma pesquisa onde a Prefeitura e alguns conselhos da cidade queriam, na época, saber se a atividade rural ainda era pertinente ou não aqui na região. Transmitimos a nossa impressão de que, hoje, a gente se denomina como ‘rural metropolitano’, por mais neologismo que possa aparecer, afinal, nós criamos gado em uma metrópole de quase dois milhões de habitantes, mas eu tenho asfalto e luz, sou cercado por bairros e comunidades. Então eu tenho alguns problemas urbanos. Ou seja, mesmo sendo rural eu gostaria de ter soluções para problemas urbanos”.

Cássio ainda disse que sofre muito no espaço. "Quando eu deixo o gado nesse pasto, me roubam. Muita gente vem, mata o boi e leva a carne embora. Há roubos constantes de fios, bombas d’água, tratores... são intercorrências que existem em qualquer lugar, mas aqui isto está sendo intensificado por conta desse 'abraço' que a cidade está nos dando. Então, a gente tem mais esse custo na produção, que é o de ter guarda para vigiar e evitar roubos, por exemplo."

O proprietário afirmou que acionou imediatamente a Polícia Militar e a Guarda Municipal assim que a ocupação ocorreu. Oliveira disse ver na ação um ato político, uma vez que o acontecimento contou com a presença de diversas autoridades, como a deputada estadual Ana Perugini (PT) e os vereadores de Campinas Gustavo Petta (PCdoB), Mariana Conti (PSOL), Paulo Bufalo (PSOL), Guida Calixto (PT) e Paolla Miguel (PT).

DECRETO

O advogado do MST afirmou que a ação da Prefeitura de Campinas foi baseada em um decreto municipal referente à criação da Comissão de Contenção de Ocupações e Parcelamentos (16.920/2010). Ele analisou que o decreto "fere a Constituição Federal, pois faz o papel de julgadora e executora, tudo no mesmo dia. E esse decreto só é usado em ocupações populares. A reivindicação do MST é que as famílias tenham espaço para habitar, produzir e trabalhar”.

A Prefeitura propôs discutir a inserção das famílias ocupantes no cadastro para a habitação. Segundo Nilcio Costa, advogado do movimento, não há um interesse direto das famílias em discutir apenas o cadastro para a habitação. "O interesse é a reivindicação de terra para a reforma agrária”, reforçou. 

De acordo com o diretor do Departamento de Monitoramento da Secretaria da Habitação de Campinas, Elias Azevedo, a informação da ocupação chegou à Secretaria por volta das 7h30. Ele confirmou ter oferecido aos ocupantes a inserção no cadastro e o recebimento do auxílio-moradia. “É uma ação que nós realizamos em um primeiro momento para que haja a desocupação da área”, explicou. Azevedo disse ter notificado o proprietário do imóvel assim que foi informado da ocupação. Ele lembrou que o decreto municipal busca evitar as ocupações e adensamentos, tanto em área pública, como em área privada. “É o que diz o decreto, pelo menos nesse primeiro momento. A primeira pessoa a ser notificada é o proprietário e nós assim o fizemos para que ele tivesse ciência de que o imóvel dele estava ocupado.”

A vereadora Guida Calixto (PT), uma das autoridades presentes durante o ato, avaliou o decreto como inconstitucional por não levar em conta diversas normas constitucionais, como o direito à reforma agrária e à montagem de assentamentos, que contam com um regramento próprio e que, de acordo com ela, o decreto não respeita.

“O decreto não fala, por exemplo, em nenhum momento, de retirada de famílias ocupadas por parte da Guarda Municipal. Isso não é função do poder público municipal, já que a área é privada. Neste caso em específico, a competência é da União. É um decreto inconstitucional, duvidoso, ilegítimo, ilegal e imoral”, analisou a vereadora.

Guida disse ainda ter se sentido “em uma cidadezinha onde o coronel manda, que não tem lei, porque não houve nenhuma decisão judicial, nenhuma negociação. Chegaram, meteram fogo em todo mundo e retiraram as famílias na bala”. 

“Há um claro movimento de aliança do prefeito Dário Saadi (Republicanos) com o setor imobiliário. Agora ele está usando esse decreto a seu bel-prazer e os vereadores já questionaram essa utilização dele na Câmara. O que aconteceu hoje foge de qualquer parâmetro aceitável. Agora mesmo eu estou discutindo com a bancada. A ideia é questionar o decreto nos órgãos federais de fiscalização e entrar com um pedido no Ministério Público de ação de inconstitucionalidade”, concluiu a vereadora.

REFORMA AGRÁRIA

A ocupação aconteceu como parte da Jornada Nacional de Lutas em Defesa da Reforma Agrária, que é organizada pelo MST no Brasil inteiro todos os anos no mês de abril e busca reafirmar a centralidade da luta pela terra no Brasil. O lema deste ano é “Contra a Fome e a Escravidão: por Terra, Democracia e Meio Ambiente”.

O evento acontece sempre em abril para lembrar o Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 17 de abril de 1996 no Pará, quando a Polícia Militar atirou contra 1,5 mil famílias de trabalhadores rurais sem terra que marchavam para a capital do Estado, Belém, com o objetivo de reivindicar a desapropriação de terras para a reforma agrária. Dezenove pessoas foram mortas pela ação policial e mais duas morreram depois devido aos ferimentos.

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por