POLÍCIA

Famílias vivem o drama da injustiça

Pandemia e brechas no Código Penal tiram criminosos da cadeia e deixam parentes das vítimas revoltados

Alenita Ramirez
12/07/2020 às 10:17.
Atualizado em 28/03/2022 às 21:20
Homem é preso depois de matar, com sua mulher, motorista de aplicativo de 23 anos de forma cruel: mesmo após confissão, acabou solto (Wagner Souza/AAN)

Homem é preso depois de matar, com sua mulher, motorista de aplicativo de 23 anos de forma cruel: mesmo após confissão, acabou solto (Wagner Souza/AAN)

Duas histórias recentes. Dois crimes bárbaros. Duas famílias destruídas. E uma justiça. Em um dos dramas, a inocência do pequeno K.M.M., de 4 anos, o faz contar com riqueza de detalhes como o avô, de 53 anos, o tocava em suas partes íntimas. Diante dos pais, ele repete por várias vezes. Não se intimida, mas demonstra vergonha. Na outra tragédia, um jovem motorista de aplicativo de 23 anos sai para fazer uma corrida particular, mas mal esperava que seria seu último dia. Ele foi amordaçado, colocado para ser atacado por cachorros, espancado e, após morrer, teve o corpo queimado e jogado em um lixo clandestino. O crime foi motivado porque a vítima contestou um desacordo comercial da passageira. Nos dois casos, apesar de os autores terem sido presos, a lei brasileira foi branda para fazer justiça e dar ao menos um pouco de paz às famílias. Além da pandemia da Covid-19 que assola o mundo e impõe alertas e cuidados para a disseminação da doença, o Código Penal deixa brechas, segundo especialistas, para contribuir com a impunidade. Os criminosos estão soltos. E.R.S. já foi operado do coração e, teoricamente, faz parte do grupo de risco. Júlia Stefany Gonçalves, de 19 anos, e o marido, o embalador Caíque Luan Firmino de Souza Martim, de 25, não têm passagem criminal, não foram presos em flagrante por homicídio, mas confessaram o crime e mostraram onde estava o corpo do motorista de aplicativo. "Se as famílias ficam revoltadas com a falta de justiça, imagina a motivação que temos para seguir trabalhando? Os policiais ficam mais de 24 horas de serviço para conseguir prender criminosos. Infelizmente nosso país está na contramão do justo. Talvez nós ficamos mais tempo trabalhando do que os indivíduos presos", desabafou um policial, cuja identidade foi preservada. Os relatos do pequeno K.M.M., morador em Sumaré, só chegaram aos pais após a mãe, uma gestora de 31 anos, flagrar o sogro sem a calça, com as mãos no órgão genital do filho. Neste dia, o mundo desabou para ela e o marido. Em ato de desespero, a mulher foi até a cozinha, na casa dos sogros, e tentou achar uma faca, mas não encontrou a arma. Ela disse que perdeu a razão e só pensou em justiça. Ao redobrar a consciência, decidiu buscar ajuda da lei. Chamou a Polícia Militar (PM), que levou o homem para a delegacia. Ele foi preso por estupro de vulnerável. A gestora achou que a justiça tinha sido feita, mas no dia seguinte veio a decepção: o sogro foi solto na audiência de custódia. Frieza Luiz Otávio Comissio, de 23 anos, era filho único. Seu sonho: ter um carro Cobalt. O jovem morava com os pais em Vinhedo e ingressou na faculdade de Engenharia Civil. Mas começou a trabalhar em um escritório de contabilidade e decidiu mudar de curso. Em 2017, por meio de conversas com amigos, encarou a profissão de motorista de aplicativo. Os pais não aceitavam por defender que era perigoso. Mas Comissio saiu de casa para morar com os avós em Campinas e ficar mais próximo do trabalho. Além de prestar serviços para plataformas, ele também fazia corridas particulares. E foi numa corrida por aplicativo que ele conheceu sua assassina. Era manhã do dia 29 de junho e Comissio não voltou mais para casa. A cliente confessou para a polícia que Comissio presenciou uma discussão dela com o comprador do seu carro. O homem exigiu o recibo e ela negou. Irritado, o comprador filmou o veículo de Comissio, que por sua vez não gostou e brigou com a passageira. Ela ligou para o marido e juntos tramaram a morte do jovem. Para a polícia, foram frios e relataram com detalhes o crime. "São bandidos, criminoso e estupradores soltos. Crianças e vítimas reféns. Há uma inversão de valores muito grande e inadmissível. Eu morro a cada dia com a falta de justiça" , desabafou a gestora. "Não dá para aceitar tanta falta de justiça. Não dá para aceitar que assassinos fiquem soltos mesmo confessando o crime", disse a mãe do motorista de aplicativo, que pediu para não ser identificada. No Brasil, lei determina prisão só depois do julgamento O juiz da Vara do Juri de Campinas, José Henrique Rodrigues Torres, explica que o Código de processo Penal Brasileiro, a Constituição Federal e os tratados de direitos humanos afirmam que todas as pessoas são inocentes enquanto não forem julgadas e têm direito de se defender. Segundo o magistrado, a lei orienta que só há prisão após o trânsito em julgado da condenação. Fora isso, só em casos excepcionais. "A prisão preventiva só cabe quando há ameaças", disse o juiz. Também é válido para crimes com pena acima de quatro anos e quando o suspeito leva perigo para a sociedade e para o processo, ou seja, com ameaças a testemunhas ou tentativa de fuga. Pelo Pacote Anticrime, implantado neste ano, uma pessoa suspeita detida deve ser solta para responder ao processo até ser julgada. Se condenada, aí então será presa. A regra é ficar em liberdade. Entretanto, existem casos que o suspeito deve ser preso para não colocar em risco a vida da vítima, de testemunhas e do processo. Mas isso, só quando há ameaças. Entre os exemplos citados por Torres, consta o caso de tentativa de feminicídio, na qual o autor ameaça a mulher. "Se existir denúncia de crime e haver necessidade, a qualquer momento a Promotoria Pública pode pedir a prisão do suspeito. Mas o réu fica solto até ser condenado", explicou. "Compreendo perfeitamente o que as famílias passam, mas temos que nos pautar pela lei, pelos princípios constitucionais e pelas normas de direitos humanos", ressaltou. Além das brechas na lei, neste ano a sensação de impunidade foi agravada com a pandemia. Para dificultar a disseminação da Covid-19, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou que as prisões só ocorram em casos extremos para evitar a exposição do autor de um crime e dos demais presos que já cumprem penas ou aguardam julgamento, além de funcionários e comunidade. De acordo com o magistrado, na Vara do Juri, as prisões em casos que o processo está em andamento não chegam a 4%. Ainda de acordo com Torres, todo e qualquer relato sobre um crime, colhido pela polícia ou até mesmo pela imprensa, precisa ser confirmado e provado no processo para que não haja injustiça.

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