LADO SOMBRIO

Expedição revela agonia do córrego Piçarrão

Expedição percorre os 7 km do córrego em Campinas e encontra cenário de descaso e muita sujeira

Henrique Nunes
henrique.nunes@rac.com.br
20/10/2013 às 16:36.
Atualizado em 26/04/2022 às 06:10

O repórter Henrique Nunes se aventura dentro do córrego Piçarrão, no Jardim Pauliceia: poluição e descaso ( Edu Fortes/AAN)

Os pés custam a traçar o caminho. A cada passo, lodo, entulho, esgoto e animais mortos se misturam à água que ainda serve de alimento para uma desinformada população de pássaros — garças, curruíras, anus, lavadeiras, saracuras, quero-queros, corujas, andorinhas e, claro, pombas e morcegos a perder de vista. A natureza se esconde e sobrevive como pode nos pouco mais de sete quilômetros de extensão do Piçarrão. O córrego estreito de águas cristalinas, que outrora serviu de alento e subsistência para uma cidade então estritamente rural, hoje reflete apenas o descaso de mais meio século de degradação.Da nascente na região do Cemitério da Saudade ao encontro com o Rio Capivari no Jardim Florence, pouco ou quase nada se vê do ribeirão. Mesmo nos trechos em que ainda não virou, literalmente, asfalto e concreto, fica difícil acreditar que aquilo “nasceu” antes da chegada da cidade, num acidente geológico que turvou suas águas naturalmente pela presença de rochas no solo — daí o nome, derivação da palavra “piçarra”.Nem a imponente Estação de Tratamento de Esgoto (ETE) Piçarrão, inaugurada em 2004 com a promessa de ampliar a vazão e reduzir os riscos de enchente, consegue amenizar os efeitos do lixo produzido por mais de 200 mil pessoas divididas em 23 bairros que se ergueram à beira de suas margens. Na maior parte dos sete quilômetros, canteiros, praças, ruas e tubulações escondem o fluxo fétido de toneladas de dejetos jogados a esmo por indústrias e residências diariamente. Embora tenha havido um esforço esporádico para recuperá-lo em promessas de cada nova administração da cidade, o Piçarrão só se parece mesmo com um córrego quando a população toma à frente e diminui os impactos da poluição.Não à toa, muito campineiro preferia vê-lo totalmente soterrado do que tolerar os efeitos nocivos de sua existência. “Quase não tem mais água, a gente só vê mato, lixo, mosquitos. Para ver o Piçarrão do jeito que está, eu preferia que ficasse debaixo da terra”, reclama o aposentado Orlando Ragazzi, de 64 anos e há quase duas décadas testemunha do crime ambiental que acontece bem em frente à sua casa, na região do Jardim Miranda. Sua esposa Marlene é ainda mais incisiva na resposta: “Para mim, o Piçarrão não é um rio, é uma avenida”.Dentro dele, a comparação poderia ser com uma calçada. Completamente cimentado e com baixa vazão, é possível caminhar sobre suas águas sem tanta dificuldade — apesar do cheiro forte e do risco de contaminação. Próximo à foz, no maior trecho a céu aberto do córrego, a imagem que se tem em nada lembra os quadros do pintor campineiro Dinael Cesar Barbosa (1946/2011), ilustre por retratar a cidade com tintas bucólicas.PaisagemNa Vila Aurocan, na margem direita do córrego, um paredão verde dá conforto aos olhos dos moradores. O perfume dos pés de seriguela, manga, pitanga, amora, araçá, romã, ameixa e goiaba competem com o odor insalubre do Piçarrão. Não fosse a iniciativa do aposentado Paulo Furumoto, de 70 anos, toda a vizinhança já teria trocado de endereço há muito tempo. “Moro aqui há 40 anos e vi muita gente deixar o bairro por causa do cheiro e da sujeira do córrego. Mas eu e minha esposa (Vilma Furumoto, falecida em 2002) sempre acreditamos que um dia veríamos o Piçarrão limpo. Talvez seja impossível, mas tentamos ao menos dimunuir o problema reflorestando a sua margem”, orgulha-se ele, responsável pelo plantio das árvores que dão sobrevida ao que já foi um dos maiores patrimônios naturais da cidade.

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