IMPERFEIÇÃO NO SISTEMA

Erros e abuso de autoridade em prisões

Ouvidoria da Polícia Militar de São Paulo contabilizou no primeiro semestre deste ano 208 queixas

Da Agência Anhanguera
11/10/2020 às 15:26.
Atualizado em 27/03/2022 às 23:02
Justiça concedeu a liberdade provisória dos jovens Luik Santos, de 19 anos, e Vinícius Ramos, de 21 anos, suspeitos de envolvimento em roubo (Cedoc/RAC)

Justiça concedeu a liberdade provisória dos jovens Luik Santos, de 19 anos, e Vinícius Ramos, de 21 anos, suspeitos de envolvimento em roubo (Cedoc/RAC)

Os dias na cadeia deixaram marcas irreparáveis na vida do promotor de eventos Thiago Felix Gonçalves de Sousa, de 22 anos. Ele tem pânico de roupas brancas, em especial camiseta; de locais fechados e de abordagens policiais. No dia 1º de dezembro de 2017, o jovem, então com 20 anos, foi preso por engano e passou quase dois meses enclausurado. Depois, respondeu em liberdade por roubo, receptação e formação de quadrilha. No final de 2018 foi inocentado pela Justiça. Seu crime? ter os traços físicos parecidos aos de um ladrão que estava envolvido em uma série de roubos. “Graças a Deus, meu irmão foi inocentado. Mas está sendo difícil recomeçar”, disse a irmã de Thiago, Ana Carolina. A prisão errônea de Thiago expõe o que advogados criminalistas e especialistas em Segurança Pública têm discutido nos bastidores já algum tempo: o despreparo ou usurpação de função da Polícia Militar (PM), que tem função da polícia preventiva. Ou simplesmente falhas na conduta de crimes que caberiam à polícia judiciária apurar. Apesar de nem todas as vítimas registrarem queixas, a Ouvidoria da corporação contabilizou no primeiro semestre deste ano, 208 queixas de abuso de autoridade de policiais militares em todo o Estado de São Paulo, números estes segundo o órgão, expressivos, já que 2020 tem sido um ano atípico, devido ao período de isolamento social que perdura desde março. Apesar de não ser um dado comparativo para este ano, em 2019, entre janeiro e junho, foram registradas 376 reclamações de abuso de autoridades. As queixas são diversas, mas uma boa parte delas, segundo a Ouvidoria, remete à ação truculenta de policiais militares aliada a prisão indevida. De acordo com os apontamentos, os erros ocorrem quando policiais militares fazem a função da Polícia Civil em uma ação criminosa. Depois que o crime aconteceu e o ladrão fugiu do local sem a perseguição, segundo os especialistas, o trabalho tem que ser da polícia judiciária para identificar o autor e recuperar os objetos. “Se o crime aconteceu, o preventivo falhou. Se a PM chegou atrasada, não é mais competência dela mostrar fotos e direcionar vítimas e testemunhas para a identificação de autoria. Essa fase já é investigativa”, comentou um especialista que prefere não ser identificado. Thiago trabalhava em eventos. Tinha uma vida normal. No dia da prisão, ele conversava com a namorada pelo Facebook e em dado momento, a garota pediu para que ele o esperasse em frente a casa dele, para encontrá-lo. Ao sair no portão, se deparou com viaturas da PM que buscavam por criminosos que tinham roubado diversas pessoas. O celular de uma das vítimas tinha sistema de rastreamento que indicava a casa vizinha da frente. Curioso, o jovem decidiu ver o que estava acontecendo à distância, enquanto esperava a namorada. Mas em dado momento, um policial questionou o que ele fazia ali e o abordou. Foi o começo de seu calvário. “Não confio mais na polícia. Sei que há uma exceção. Mas tenho medo da polícia. Não era para ser assim. A polícia é para nos proteger. Tem que estar preparada”, resumiu Ana Carolina. Ouvidor O ouvidor da PM, Elizeu Soares Lopes, explica o procedimento. “Do ponto de vista legal, o flagrante acontece no momento imediato ao crime ou logo após, em perseguição ou se a pessoa possuía objetos correlatos ao crime. Dessa forma, a polícia pode perseguir e prender em flagrante”, diz ele. “Todavia, após a prisão, a pessoa deve ser levada ao delegado da área (que decide manter ou não a prisão), depois é, ainda, submetida a audiência de custódia perante o Judiciário. Esses dois últimos pontos têm por objetivo evitar erros e não manter presa a pessoa ilegalmente — analisando inclusive se houve ou não o flagrante”, explica ele. Somos uma “instituição legalista”, diz PM A Polícia Militar esclarece que é uma instituição legalista e investe constantemente em treinamento e atualização dos protocolos aos seus agentes. Todas as prisões realizadas por policiais militares são decorrentes de flagrantes de crimes ou realizadas logo após o seu cometimento, ainda no estado de flagrância. Os suspeitos detidos pela PM são conduzidos às delegacias, onde passam por reconhecimento formal pelas vítimas e testemunhas, sendo suas prisões ratificadas pelo delegado, na presença facultada de defensor do preso. Atualmente, as prisões são mantidas nas audiências de custódia, realizadas pelo Poder Judiciário, dentro de 24h da prisão, na presença obrigatória de defensor do preso e representante do Ministério Público. Quando empurrar carro de amigo vira um “crime” Em julho deste ano, dois rapazes foram presos pela Polícia Militar Rodoviária quando ajudavam um amigo a empurrar o carro em uma rua do Jardim Itatinga. De acordo com familiares, os jovens saiam de uma festa no momento em que a polícia buscava por ladrões que tinham cometido uma série de roubos nas rodovias dos Bandeirantes e Santos Dumont. As famílias garantem que os rapazes são inocentes e afirmam ter provas de onde estavam quando os crimes eram praticados. “Eles foram reconhecidos de dentro de uma viatura, por pessoas que estavam abaladas emocionalmente com a perda de um parente. Os dois nem tiveram a chance de provar que estavam sendo injustiçados”, disse a auxiliar de cozinha, Elizabethe Souza de Almeida, de 23 anos, irmã de um dos presos. Os dois seguem presos, mesmo o laudo de balística apontar que não havia resíduos na mão de um deles, o que seria o atirador.  Dois meses depois, no feriado da Independência, os jovens Luik Rauan Matheus de Paula Moreira dos Santos, de 19 anos, e Vinícius César Ramos, de 21 anos, foram presos em flagrante por policiais militares, suspeitos de envolvimento em dois roubos, um deles, horas antes de um motociclista, cujo celular tinha GPS e apontava que estava perto de onde os rapazes estavam. Eles estavam conversando com mais três amigos, na calçada de um supermercado desativado, ao lado de onde estava o aparelho. Os policiais seguiram o sinal do GPS, informado pela vítima, e quando viram os rapazes suspeitaram que eles estavam envolvidos no crime. Foram feitas fotos deles e enviado às vítimas, que acreditaram ser Luik e Vinícius. Apesar de terem saído da cadeia, eles vão ter que provar a inocência.

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