MEMÓRIA

Empresa familiar simbolizou a industrialização de Campinas

Fábrica de cigarros ajudou a transformar paisagem sossegada do Guanabara

Agência Anhanguera de Notícias
21/10/2013 às 08:01.
Atualizado em 26/04/2022 às 06:02
Maria Laura Gracioli, filha do empreendedor Herculano, com reportagem da época: jornal falava do setor industrial campineiro em franco desenvolvimento na década de 50  (Élcio Alves/ AAN)

Maria Laura Gracioli, filha do empreendedor Herculano, com reportagem da época: jornal falava do setor industrial campineiro em franco desenvolvimento na década de 50 (Élcio Alves/ AAN)

Rogério VerzignasseRicardo Fernandes    No Guanabara da década de 50, as casas ainda tinham quintais e a garotada brincava na rua. Mas a paisagem já começava a se transformar. Galpões enormes apareciam e a atividade industrial ganhava força. Poucos campineiros sabem disso, mas no bairro funcionou até uma fábrica de cigarros. Havia equipamentos modernos, depósito amplo, uma bela frota de veículos para distribuição. A peculiaridade, no entanto, é que a empresa era familiar. Os sócios madrugavam, os filhos operavam máquinas, funcionários de carreira ocupavam cargos de direção. No começo, parecia utópico concorrer com os conglomerados gigantescos que dominavam o mercado nacional. Mas a Manufatura Paulista de Tabacos cresceu e garantiu trabalho e renda digna para centenas de cidadãos.A fábrica de cigarros nasceu em São Paulo, mas enfrentava uma crise financeira séria. Foi quando o campineiro Herculano Gracioli (representante comercial da empresa no Interior) se associou aos irmãos Adolfo e Antenor e trouxe a linha de produção para Campinas. Os equipamentos foram instalados em um barracão da Rusa Rafael Sampaio, entre as ruas Barão de Atibaia e Tiradentes. Para a estocagem da produção, foi alugado um imóvel na Rua Cônego Cipião. E de lá saíam os caminhões carregados com caixas de Noturno, Kennedy, Manchester, Haiti. Marcas famosas na época, que tomavam as prateleiras de botecos no Interior todo.O mais curioso, no entanto, é que praticamente não existem registros oficiais, no município, sobre a empresa. O Diário Oficial do Estado (DOE), onde eram publicadas as atas de assembleias ordinárias é, basicamente, a única fonte segura de informações sobre as atividades. Lá estão relacionados, em cargos-chave, sobrenomes tradicionalíssimos da cidade. E os descendentes lembram hoje, tocados, de uma época romântica, onde patrões e empregados, unidos, acreditavam no sucesso do empreendimento. Foto: Rodrigo Zanotto/Especial para AAN Zonta, o "Foguinho", diante do galpão: "cigarro ao lado da cocada" e as irmãs Dulce (esq.) e Célia Nithack, com a foto do pai Antônio Gente como a dona Maria Laura, filha de Herculano Gracioli. Ela e o marido (o aviador aposentado Paulo Afonso Pizzato) passam os dias cultuando as fotografias antigas, onde o empreendedor aparece rodeado dos filhos dentro da fábrica. Ela também guarda em casa uma edição amarelada do Jornal de Campinas que, lá me 63, dedicava quase uma página a uma reportagem sobre as instalações modernas da manufatura. E o texto publicado era profético: “O nosso parque industrial está em expansão em todos os setores. Ninguém pode prever o que será de Campinas nos próximos dez anos”.As imagens da fábrica também estão na memória de gente como Célia Nithack, conhecida professora de piano. Ela e a irmã Dulce posam, orgulhosas, mostrando a fotografia do pai Antônio, contratado pela manufatura como contador, e que se tornou simplesmente o diretor-superintendente da empresa. “Eu era muito garotinha. Mas lembro das máquinas rodando. Uns trabalhavam no corte dos cigarros. Alguns selavam maços. Outros empacotavam. Havia rapazes e moças. E o ritmo de trabalho era frenético”, diz Célia.Mas os depoimentos mais orgulhosos chegam de campineiros que nunca pisaram no chão da fábrica. Caso de Stella Perroni, que sempre morou no Guanabara. Ela se lembra que ia brincar na casa do avô, ali pela Rua Rafael Sampaio, e sentia o perfume doce do tabaco tomando conta da vizinhança.Roberto Zonta, de 72 anos, o conhecido “Foguinho”, trabalha em uma empresa fabricante de peças de inox, na mesma rua. O cidadão é uma daquelas figuras que todo mundo conhece. Divertido e falador, ele conta que passou boa parte da vida morando ali pelo Guanabara, e testemunhou como o bairro foi sendo transformando. “Aqui na Rafael Sampaio, funcionava uma fábrica de cocadas, bem ao lado da fábrica de cigarros. A quadra era muito movimentada, o tempo todo”, conta. “Eu nem me dava conta, mas o Guanabara estava deixando de ser um reduto sossegado. Campinas virava cidade grande, importante.” AgoraHoje em dia, os antigos galpões da fábrica de cigarros se dividem em dois imóveis. Um deles está fechado, esperando quem se interesse pela locação. O outro está ocupado pela Extremo, uma moderna academia de condicionamento físico, tomada por barras e argolas. O proprietário é o professor de educação física Fernando Torres, de 29 anos, quer nasceu em Poços de Caldas (MG) e se mudou garotinho para Campinas. Ele mesmo é de uma geração que nunca imaginou que pudesse ter existido uma fábrica de cigarros no Guanabara. “Logo depois da inauguração, um senhor velhinho parou na porta. Eu o convidei para entrar e conhecer a academia. E ele, com aquele ar saudosista, falou que aqui funcionava a fábrica. A história marca a vida das pessoas”, diz.‘Se pulava o muro para fumar bitucas’ A fábrica campineira de cigarros também está na memória do jornalista José Roberto Martins, que já trabalhou como cronista do Correio Popular. Aposentado hoje, Martins se lembra que era um menino de 11 ou 12 anos no finalzinho da década de 50. Ele morava ali pelas proximidades da Avenida Orosimbo Maia, e se divertia a valer com aos amigos. Subia em árvores, brincava no riacho e (aí vem a parte proibida) invadia o quintal da fábrica de cigarros e fumava os tocos que encontrava no chão. Martins lembra que a fábrica descartava pedaços de cigarro durante o processo de produção. E alguns pedaços eram enormes. É que parte do fumo envolvido no papel não passava pelas cortadeiras. Cada cigarro largado no corredor externo tinha metros de comprimento. “Ah, eram tempos inocentes. Os moleques fumavam e não se importavam com os efeitos nocivos do cigarro”, diverte-se.  Campanha de vereadores condenou a manufaturaO campineiro Henrique Gracioli, de 71 anos, é filho de Herculano Gracioli (ex-representante comercial que em 1953 trouxe para Campinas a Manufatura Paulista de Tabacos). Maior fonte de memória oral da empresa, ele conta que a fábrica de cigarros passou por dificuldades financeiras sérias depois do golpe militar de 1964. Na época, fala, pressionado pelo aumento brutal de impostos, o segmento enfrentou retração. Mas outro fator político, diz, colaborou decisivamente com o fim das atividades no Guanabara.Havia na Câmara uma campanha agressiva, denunciando que a linha de produção contaminava o bairro com fuligem. O mentor da campanha, fala, vereador, morava na vizinhança. “Bom, o quadro político instável e pressão fizeram com que meu pai e os sócios aceitassem a proposta de empresários de fora, que compraram a manufatura e a transferiram para Jundiaí, para logo encerrar as atividades”, fala.Como Henrique aprendeu a trabalhar no galpão da Rua Rafael Sampaio, ele aproveitou a experiência, se associou ao amigo Cláudio Gomes Pinto e abriu uma outra fábrica, no prédio de uma antiga cerâmica, na região de Barão Geraldo. O negócio funcionou até 1973, quando também fechou as portas.Colecionar maços era brincadeira dos meninos de calças curtasHoje em dia, o mundo todo sabe dos malefícios do tabaco ao organismo. Doenças graves do aparelho respiratório são, comprovadamente, provocadas pelo cigarro. Mas, no passado, a publicidade impressa nos jornais e revistas procuravam mostrar que fumar hábito de gente culta, saudável, inteligente. E o consumo começava muito cedo. Colecionar maços de cigarro, por exemplo, fazia parte do lazer de qualquer menino de calças curtas. Caso do comunicador paulistano Luiz Vita. A marca Noturno, da campineira Manufatura Paulista de Tabacos, tinha um maço belíssimo: aparecia uma lamparina acesa, vista através de um pórtico de pedras. Na figura, a luz emitida rompia a escuridão da noite fechada. “Era como se, olhando o desenho, a gente pudesse ouvir os grilos, os sapos, o latido dos cães”, diz o colecionador. A marca, enfim, remetia a paisagens interioranas, de cidadezinhas antigas. Vita, blogger desde 2009, contou toda essas sensações no texto postado na internet com o título de A viagem Imóvel.

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