CENÁRIO DE FOME

Em Campinas, há uma população de Valinhos vivendo na miséria

São 137 mil pessoas que sobrevivem com renda familiar inferior a R$ 105 por mês

Edimarcio A. Monteiro/ edimarcio.augusto@rac.com.br
08/07/2022 às 09:16.
Atualizado em 08/07/2022 às 11:34

Desempregada há seis anos e com o marido só fazendo bicos, a dona de casa Taynara da Costa sobrevive com o dinheiro do Auxílio Brasil (antigo Bolsa Família) e do Cartão Nutrir (Gustavo Tilio)

O número de famílias que vivem em extrema pobreza – com até R$ 105 por mês – teve um salto de 46% em Campinas durante a pandemia de covid-19, totalizando agora 137 mil pessoas. É como se toda a população da cidade de Valinhos sobrevivesse na miséria. O número de famílias nessa condição inscritas no Cadastro Único da Prefeitura — porta de entrada para acesso a programas sociais do município até o governo federal — saltou de 37.335 no final de 2019 para 54.807 em junho deste ano. É uma legião de 17.472 novas famílias em dois anos e meio, o que representa a inclusão de 582 famílias a mais por mês. Levando-se em consideração a média de 2,5 membros por família, são 43.682 pessoas a mais que passaram a viver em extrema pobreza na pandemia.

Os R$ 105 que cada família ganha é suficiente para comprar 3 quilos de acém ou 15 litros de leite, uma realidade muito distante de uma cesta básica, considerado o mínimo para uma família sobreviver, sem considerar ainda despesas com moradia, luz, água, etc. Em junho, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) apontou que a cesta básica em São Paulo ficou em R$ 777,01, ou seja, 7,4 vezes a mais do que essas famílias têm à disposição para cobrir todas as despesas. O dinheiro não dá para comprar um botijão de gás.

Acima da média nacional

De acordo com os dados da Prefeitura, são 137.018 pessoas que vivem na condição de extrema pobreza, o que equivale a 11,41% da população de Campinas, ou seja, uma em cada dez pessoas corre o risco de passar fome. A taxa é superior à média nacional. Em 2021, 15,4 milhões de brasileiros enfrentaram insegurança alimentar grave, 7,3% da população total do País, segundo relatório da Organização das Nações Unidades para a Alimentação e Agricultura (FAO) divulgado na quarta-feira.

A quantidade total de famílias inscritas no Cadastro Único da Prefeitura de Campinas é bem maior. São 107.727 famílias: 50,9% vivem com até R$ 105; 8,8% estão em situação de pobreza (vivem com até R$ 210), outras 19% são consideradas de baixa renda (ganham de R$ 210 a meio salário mínimo, R$ 600) e 21,3% têm renda acima desse valor. 

A dona de casa Taynara Ramos da Costa, que vive com o marido e três filhos no Parque Oziel, tem como certeza de dinheiro que entrará todo o mês os R$ 460 do Auxílio Brasil (antigo Bolsa Família) e R$ 109,41 do Cartão Nutrir da Prefeitura. A auxiliar de limpeza está desempregada há seis anos, enquanto o marido faz bicos como pedreiro, mas chega a ficar três meses sem nenhum trabalho. Para garantir a comida no prato, a família conta com doações.

Mas Taynara conta que chega a faltar itens básicos, como arroz e óleo de soja. “A solução é arrumar um emprego com carteira assinada”, diz a mãe de Tawany, de 10 anos, Arthur Lorenzo, 4, e Lorena, 2. No entanto, ela explica que está difícil encontrar e, no seu caso, as barreiras aumentam a cada dia que fica afastada do mercado de trabalho. “As empresas exigem experiência”, justifica.

A dona de casa Raquel Pontes usa o cartão Nutrir para comprar alimentos. “Não dá para comprar muita coisa, os preços estão muito altos, mas ajuda muito”, disse Raquel, que mora no Parque das Indústrias com o marido e dois filhos adolescentes, além de cuidar de dois netos para a filha trabalhar. Na casa, ninguém tem emprego fixo. Ela trabalhava como faxineira, mas perdeu a vaga durante a pandemia de covid-19 e, depois, não voltou ao mercado de trabalho por causa da doença que adquiriu nesse período. 

Constante crescimento

O número de famílias inscritas no Cadastro Único está em escalada crescente desde o início de 2020 e atingiu o seu pico no segundo trimestre deste ano. De abril a junho de 2022, a taxa cresceu 6,09% em comparação ao primeiro trimestre (janeiro a março), quando passou de 101.545 famílias para 107.727. Foi a maior alta registrada no município desde o início de 2020. 

Já o número de famílias em condição de extrema pobreza teve a maior alta logo após o início da pandemia - 9,45% no terceiro trimestre de 2020. No primeiro trimestre deste ano, o crescimento de famílias vivendo na miséria foi de 9,10%.

Doações em queda

Enquanto o número de famílias necessitadas está em alta, as doações que lhes servem de sustento diminuem. O Banco de Alimentos da Prefeitura recebeu 40 toneladas no mês passado, queda de 72,61% em comparação a junho de 2021, quando 146 toneladas foram destinadas a famílias carentes. 

Taynara Costa recebeu uma cesta básica da Central Única das Favelas Campinas (Cufa) pela última vez há dois meses. “Sempre que chega, eles avisam, mas não tem vindo mais”, afirma.

A presidente da organização não-governamental (ONG), Michele Eugênio, aponta uma redução de 80% nas doações. “Em 2020 e 2021, entregávamos 2 mil cestas básicas, agora são 400”, diz. Ela acrescenta que, muitas vezes, as cestas estão incompletas. Itens que tiveram grandes reajustes de preços nos últimos meses não são mais doados. O óleo de soja, que em março de 2020 custava R$ 3,86 o litro e hoje passa dos R$ 10, alta de 263,16%, desapareceu. Outro item que a Central de Favelas não recebe mais é a farinha de trigo, que subiu 130% desde janeiro de 2020. Hoje, o preço mais em conta gira em torno de R$ 3,90 o quilo.

O leite, que está custando em torno de R$ 7 o litro, é outro item que anda raro entre as doações. “Antes, recebia caixas e caixas de leite”, diz Michele. Ela atribui o desaparecimento desses produtos à alta da inflação, queda do poder aquisitivo da população, achatamento dos salários e o desemprego ainda em alta. É uma combinação que afeta diretamente o bolso e as pessoas diminuíram os donativos ou pararam de fazer doações. 

“Em Campinas, quem faz as doações são as pessoas físicas, são elas que se solidarizam com os mais necessitados. Mas elas também estão enfrentando dificuldades. Muitos pensam que doar um saco de arroz, um quilo de feijão não faz diferença, mas juntamos tudo e entregamos as cestas mesmo que incompletas. A fome não espera”, diz a presidente da Cufa. 

O galpão de armazenamento, que antes ficava lotado, agora tem poucos paletes ocupados. A ONG está lançando uma nova edição da campanha “Mães da favela” para aumentar a arrecadação de donativos. Quem puder ajudar pode entrar em contato pelo celular (19) 99564-0900. 

A secretária Municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos, Vandecleya Elvira do Carmo Silva Moro, diz que a pasta faz um trabalho intensivo em busca das famílias no Cadastro Único para que atualizem os dados e garantam a manutenção dos benefícios sociais que recebem. “Durante a pandemia, a atualização foi suspensa por dois anos, mas agora é preciso renovar para continuar recebendo os auxílios dos governos federal e estadual”, explica.

Apenas no Auxílio Brasil, são 53.027 pessoas inscritas em Campinas. O número é bem inferior ao de famílias em extrema pobreza, mas a seleção e liberação do benefício são feitos pelo governo federal. Vandecleya aponta que a Prefeitura desenvolve vários programas para atender ao aumento das pessoas em situação de vulnerabilidade. Além do Cartão Nutrir e do Banco de Alimentos, o Viva Leite atende mensalmente 2.460 crianças com a doação de 3,69 mil litros de leite. 

Durante o período mais crítico da pandemia, em março de 2021, a Prefeitura lançou a Campanha Sem Fome para arrecadar alimentos e produtos de higiene em 18 postos espalhados pela cidade. “A população de Campinas é solidária”, afirma a secretária. A Campanha do Agasalho deste ano, que também atende pessoas em vulnerabilidade social, já recebeu 10 toneladas de doações. Outro trabalho desenvolvido é o “Campinas Protege”, que beneficia filhos que perderam os pais por causa da covid-19 com R$ 1,6 mil, divididos em três parcelas.

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Anuncie
(19) 3736-3085
comercial@rac.com.br
Fale Conosco
(19) 3772-8000
Central do Assinante
(19) 3736-3200
WhatsApp
(19) 9 9998-9902
Correio Popular© Copyright 2025Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por