Desde 2018, 1.178 transgêneros foram ao Centro LGBT para iniciar o processo
Este ano, 115 pessoas buscaram o Centro de Referência LGBT, informa a gestora Valdirene Santos (Gustavo Tilio)
“Quando era criança, eu orava para que Deus me transformasse em um menino, hoje ele atendeu minhas orações”, conta o músico John Oliveira Rosa, de 29 anos, que em 2021 conseguiu alterar o nome e o gênero no documento de nascimento. A medida obtida por ele é uma garantia dada a transgêneros – pessoas que não se reconhecem no sexo biológico – e pode ser solicitada em qualquer cartório do município. Segundo dados da Associação dos Registradores de Pessoas Naturais do Estado de São Paulo (Arpen-SP), de 2018 até 25 de julho deste ano, 226 pessoas conquistaram esse direito em Campinas.
O serviço é fornecido nos cartórios de todos os municípios desde 2018, após decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Só neste ano, 36 pessoas conseguiram a mudança do nome de forma oficial no município. O valor do serviço varia nos Estados, mas pode chegar a até R$ 500, devido a todos os documentos que precisam ser alterados.
Recentemente, a lei 14.382/22, de 27 de junho, também permitiu que qualquer pessoa maior de 18 anos possa alterar o nome diretamente em Cartório de Registro Civil, independentemente de prazo, motivação, gênero, juízo de valor ou de conveniência e de decisão judicial.
Para menores de idade, o procedimento só é feito judicialmente. Nesses casos, o procedimento é feito com base na autonomia da pessoa, não sendo necessária a efetivação da cirurgia de redesignação sexual.
Em Campinas, o Centro de Referência LGBT, primeiro serviço público do País criado para atender às demandas específicas da população LGBTQIAP+ e suas famílias, auxilia nesse processo.
Em 2022, 115 pessoas buscaram o local para iniciar o trâmite de troca de nome e gênero nos documentos. Já de 2018 a 25 de julho deste ano, foram 1.178 pessoas. Segundo a gestora de Políticas Públicas LGBT de Campinas, Valdirene Santos, nem todas as pessoas que buscaram o serviço acabaram concluindo a troca de nome. Por isso, nesse período, 226 concluíram o processo e conseguiram mudar seus nomes.
Sensação de vitória
Para as pessoas que conseguem concretizar a troca no documento, há a sensação de vitória e pertencimento.
O músico John Oliveira Rosa, de 29 anos, conseguiu o documento no ano de 2021. Ele é um homem trans e que se reconhece como tal desde quando tinha 5 anos. “Eu sempre senti que havia algo diferente em mim”, reverbera. Daquela época, não lhe foge da memória o dia em que, após um culto na igreja que frequentava com a família, vestiu as roupas do primo. “Foi uma das primeiras vezes que eu mesmo pude escolher minha roupa. Coloquei uma calça larga, camiseta, tênis e prendi o cabelo. Quando meu pai me viu, ficou espantado: ‘Tu tá louca? Parece um guri!’ E precisei trocar de roupa.”
Crescer em um espaço com ideais conservadores foi um desafio para John. O que ele sentia era que ali, em casa, jamais poderia ser quem realmente era. Apesar desses imbróglios, apoiava-se na fé. A oração infantil, na qual pedia para que Deus o transformasse em um menino, logo foi mudada para a oração em que pedia que Deus o libertasse daquilo. Mas nada o libertou.
Em 2011, John ingressou em um grupo de música evangélica, com o qual viajou o Brasil cantando sobre o amor de Deus. Em 2013, ele se permitiu, pela primeira vez, ter um relacionamento com uma garota. Tudo isso acontecia de forma escondida, calcada na vergonha e no medo que carregava por ter sido ensinado que aquilo era um pecado.
Como a mudança começou
A virada de chave veio em 2018, quando o grupo musical que integrava foi convidado a se apresentar na igreja Cidade Refúgio, no Bonfim, em Campinas. A igreja, que é inclusiva para pessoas LGBTQIAP+, chamou a atenção de John. Ainda lutando contra seus desejos, olhava para esses cenários com pena. “De tantos lugares que me apresentei, nunca havia visto um louvor tão adorador quanto o que eu vi naquela igreja. Porém, pensava que estavam ali com a motivação errada, só por serem pessoas LGBTQIAP+”.
Um membro da igreja, no entanto, chamou John para reger o coral da igreja e, a partir disso, ele se permitiu estudar sobre a homoafetividade à luz da Bíblia.
“Foi aí que entendi que não havia nenhum problema comigo. Eu era uma pessoa normal e que só precisava lutar contra os pecados normais. Quando entendi isso, senti um peso saindo das minhas costas”, cita.
Quando John se reconheceu como homem trans iniciou uma nova batalha, na qual teve que conviver com o rechaço da própria família, com a qual não tem laços plenos até hoje. Naquela época, ele estava com uma companheira, com quem está até hoje, e ficou preocupado com a forma como ela pudesse encarar, já que, até então, ela namorava uma mulher.
Ao contrário do que esperava, John foi acolhido por ela e muito mais pela comunidade da Igreja Cidade Refúgio, na qual se batizou em 2021, dias após conseguir o documento que, agora, traz seus novos nome e gênero. “Muitas pessoas usam Deus para destruir a vida das pessoas. Ouvi que eu estava de mãos dadas com satanás. Mas ao mesmo tempo, Deus me deu todos os sinais para conseguir ser quem eu realmente sou. Porque Deus liberta”, disse.
Hoje, John ainda mantém um tratamento hormonal, que conseguiu com apoio do Centro de Referência LGBTQIA+, de Campinas. Também mantém um canal no YouTube, "Além do Arco-íris", onde conta sobre esse processo e debate assuntos relacionados ao cristianismo e pautas LGBTQIAP+.
Centro de Referência completa 19 anos
Nesta sexta-feira, o Centro de Referência LGBT de Campinas completa 19 anos de existência. Implementado em 31 de julho de 2003, ele já realizou mais de 12 mil atendimentos desde o surgimento, sendo o primeiro serviço público do País especializado em salvaguardar os direitos fundamentais e sociais da população LGBTQIAP+ e suas famílias. Embora o serviço seja de Campinas, ele também atende populações LGBTQIAP+ de toda a Região Metropolitana de Campinas. Para comemorar o aniversário, será entregue a 3ª Edição do Selo Compromisso com a Diversidade e do Prêmio Cidadania LGBTQIA+, em evento realizado às 19h desta sexta-feira, na Praça Bento Quirino.