há 50 anos

E por aqui passava um bonde...

Alunos do Culto à Ciência se dependuravam no "elétrico". Cantavam, faziam festa. Flores enfeitavam todo o carro. A garotada prestava um tributo

Rogério Verzignasse
rogerio.verzignasse@rac.com.br
28/05/2018 às 08:52.
Atualizado em 28/04/2022 às 10:21

A última viagem do bonde do Botafogo, no dia 25 de maio de 1968, com o carril enfeitado de flores e ocupado pelos estudantes do Culto à Ciência (Cedoc/RAC)

Há 50 anos - exatamente no dia 25 de maio de 1968, um sábado - acabava o sistema de bondes de Campinas. Naquele dia, circulou pela última vez o veículo da linha 9, do Botafogo. Alunos do Culto à Ciência se dependuravam no “elétrico”. Cantavam, faziam festa. Flores enfeitavam todo o carro. A garotada prestava um tributo a um modelo de transporte público que existiu por quase 90 anos. Mas o evento, comovente para o público, não recebeu das autoridades constituídas a atenção que merecia. O próprio Correio Popular publicou uma notinha de dez linhas sobre o acontecimento, na modesta página 39 da gorda edição do domingo, dia 26. Claro, jornal de outros tempos. Matérias que chegavam da Europa por telegrama ganhavam as manchetes. O noticiário local, modesto, se limitava a textos sobre futebol, coluna social, polícia. O bonde, na própria redação, era tratado como um equipamento obsoleto, pesado, ultrapassado. A imprensa elogiava os ônibus coletivos, representante do que se considerada “modernidade”. Bom, hoje em dia todo mundo sabe que os bondes eram econômicos, limpos, charmosos. Para os campineiros de mais idade, contemporâneos do sistema, restou muita saudade de uma paisagem diferente, de um ritmo de vida que não existe mais. No começo, as mulas Entre os mais jovens, pouca gente sabe. Mas o bonde começou em Campinas com tração animal, em setembro de 1879. As mulas puxavam os carris, levando passageiros da estação ferroviária até a praça da Catedral, pela Rua 13 de Maio. Entre 1910 e 1912, foi implantado o sistema elétrico. Os carris importados eram movidos por uma rede de corrente contínua, com tensão de 600 volts. No começo, os bondes eram importados. Depois, a companhia que administrava o sistema começou a construir seus próprios veículos. Campinas teve até a sua “linha interurbana”. Os bondes circulavam no velho Ramal Férreo Campineiro, herança da ferrovia a vapor entre o Centro e Sousas. O serviço foi expandido até a Fazenda das Cabras, em Joaquim Egídio. Em 1919, aliás, circulava por lá o "bondão", bem maior que os carros abertos da área urbana. Na década de 30 do século, os bondes foram “refeitos”. Os carris ganharam vestíbulo fechado, cobertura em arco e nove fileiras de bancos. O serviço se modernizava, se expandia, atraía a atenção de investidores. Em 1946, o patrimônio foi adquirido pela Companhia Paulista de Força e Luz (CPFL), que em 1952 o repassou à antiga Estrada de Ferro Sorocabana (EFS). Dois anos depois, o sistema foi absorvido pela Companhia Campineira de Transportes Coletivos (CCTC), que já mantinha ônibus coletivos pelas rias. Na época, operavam 28 bondes em 14 linhas, que perfaziam trajetos de que totalizavam 58 quilômetros. Era o auge do sistema. Obstáculo ao “progresso” Acontece que os bondes - que circulavam por ruas estreitas, de mão única – passaram a “atrapalhar” o trânsito dos veículos motorizados. Um carril quebrado atrapalhava todo o sistema. Por isso, em 1964, as linhas começaram a ser desativadas. O último bonde em horário regular do sistema circulou na noite de 24 de maio de 1968, sexta-feira. “Naquele dia, só restavam duas linhas ativas, a do Botafogo e a do Boa Esperança”, afirma o pesquisador Rony Carlos Zacharias, de 41 anos, apaixonado pela saga dos bondes campineiros. Ele usa o próprio quarto como arquivo de um acervo gigantesco de fotos e textos. Para ele, o fim do sistema foi simplesmente reflexo dos desmandos políticos de uma época em que “progresso” representava derrubar prédios históricos, alargar e asfaltar ruas. Zacharias conta que o bonde do Jardim Boa Esperança – a linha 14 – circulou de fato até o dia 2 de novembro de 1968, porque a Prefeitura fazia a pavimentação das ruas Mogi Guaçu e Patrocínio Paulista, por onde iam circular os ônibus. As obras eram o compromisso com a “Campinas do futuro”. Veículos remanescentes servem a passeios turísticos Dos 28 bondes que rodaram em Campinas no auge do sistema, restam dez. De acordo com o pesquisador Rony Zacharias, quatro deles são preservados na Lagoa do Taquaral; um na sede de campo do Regatas; um na associação atlética do Banco do Brasil; dois em Jaguariúna, um em Atibaia e um em Belém (PA). Alguns servem a passeios breves, pontuais. Outros, inativos, servem como peças de exposição. Para Rony, faltou ao governo municipal uma iniciativa como a tomada pela Prefeitura de Santos, que mantém as linhas do bonde no Centro Velho como atração cultuada por milhares de turistas. Campinas, resume o pesquisador, despreza sua memória, ao mesmo tempo que deixa de lucrar mais com potenciais linhas turísticas, como faz a cidade do Litoral. Irineu, 80, ex-condutor e ex-motorneiro Quando os bondes deixaram de circular em Campinas, os motorneiros e condutores foram convidados a trabalhar nos ônibus coletivos da CCTC. Quase todos se tornaram motoristas ou cobradores. Muitos estão na labuta até hoje. Com o seo Irineu Alves, de 80 anos, que ainda presta serviços à VB. Ele, que mora na Vila Castelo Branco, fala que pouca gente, hoje em dia, sabe quais eram as funções de cada oficial no bonde. O motorneiro, fala, cobrava a passagem, ajudava o usuário a descer e a subir do carril. Também verificava periodicamente as condições mecânicas do veículo, e até fazia cursos de aprimoramento profissional. O condutor, por sua vez, controlava o tempo de viagem e tinha uma atribuição estratégica: acionava os desvios, ordenando o fluxo do carril ao longo do itinerário. “Qualquer erro podia causar o choque entre veículos ou congestionar a linha”, diz. Irineu, que veio de Rebouças (hoje Sumaré), foi contratado em dezembro de 1959 para trabalhar no sistema. Até o fim, ocupou as duas funções, em todas as 14 linhas de bonde que operavam na cidade. Geraldo Custódio ‘recolheu’ o último carril à garagem Quem mora ali pelo Jardim das Oliveiras nem imagina. Mas aquele senhorzinho simpático e falante da Rua Itagiba levou para a garagem, lá em 1968, o último bonde que circulou por Campinas. Geraldo Custódio, às vésperas de completar 89 anos, era o fiscal na linha do Boa Esperança. Os irmãos Marçulo e Gentil eram, respectivamente, o condutor e o motorneiro. Naquele sábado chuvoso, 2 de novembro, o carril foi recolhido pelo trio no barracão do Cambuí, ali no finalzinho da Orosimbo Maia, às dez da noite. “Soltamos uma caixa de fogos. A história do bonde acabava de verdade naquela noite”, diz. Fogos? Si. Hoje o Custódio fala que sente saudades. Mas ninguém lamentou o fim do bonde em 68. “Andava lotado. Com 60, 80 pessoas. O povo ia pendurado, em pé no estribo. Cansei de ver gente caindo, gente batendo a cabeça no poste. Os acidentes eram comuns. Morreu até gente”, fala. “Bola” nos trilhos Ah, Custódio fala que os motorneiros, condutores e fiscais trabalhavam demais. Ás vezes, mais de dez horas por dia. Não havia linha fixa, muito menos horário. Nos dias de Finados, por exemplo, todos os bondes do sistema socorriam a linha do Fundão. Os carris iam lotados do Centro ao Cemitério da Saudade. “Parecia uma bola andando no trilho”, diz. Mas tinha a parte divertida. Primeiro, o funcionário andava todo elegante, com uniforme amarelo e cap com direito a chapinha metálica. “A mulherada dava o maior mole”, gargalha o senhorzinho divertido. E ele lembra que o usuário do bonde era eclético. “Rico, pobre, jovem, idoso. Havia educação. Nunca vi uma briga, nenhum desrespeito”, diz. Seo Geraldo nasceu em Itapira. Ele fala que se mudou para Campinas aos 20 e poucos anos, à procura de trabalho. Já era casado, e passou a morar com a mulher e os filhos pequenos no porão da casa do sogro, ali mesmo no Jardim das Oliveiras. Mandou currículo para a Bosch, para a Singer, para a companhia que cuidava dos bondes. “Foi a primeira a me chamar. “Salário bom, ofício que era o sonho da rapaziada”, lembra. Hoje, viúvo, seo Geraldo, mora com uma das filhas. E ele passa o dia proseando com gente da vizinhança. Como o Zé Pádua, morador da casa em frente, que também foi motorneiro. E que também teve a graça de viver em uma Campinas romântica, muito diferente. “Tempo bom, tempo bom. Não volta mais...”, resume.

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