Choro de alegria e longos abraços marcaram reencontro após 8 anos de angústia
Wisline Calixte dá um longo abraço em sua mãe Marie Saintana Calixte na chegada ao Aeroporto de Guarulhos (Divulgação)
A chegada de cinco haitianos de uma mesma família pôs fim a uma longa espera, uma angústia que parecia não ter fim. Quando dona Marie Saintana Calixte, de 64 anos, desembarcou no Aeroporto de Guarulhos, com os seus quatro netos – Valentina (18), Widelina (12), Wisly (11) e Widelson (9) –, finalmente terminava o drama de uma mãe, que teve que suportar, durante oito longos anos, a dor de estar longe de seus filhos. Às cinco da manhã de sexta-feira, 20 de janeiro, Wisline Calixte Homere (37 anos) e seu marido Jean Renel Homere (39) deixaram a casa onde moram, no Jardim Santo Antônio, na região dos DICs, e partiram ansiosos numa van, na companhia de três amigas, para o grande reencontro, que aconteceria três horas depois.
O voo estava previsto para chegar às 7h25. A meia hora que faltava parecia uma eternidade. Mas não para Wisline, que mantinha a serenidade no semblante, quebrada apenas quando Benjamin, o caçula brasileiro, de quatro anos, escapava de perto e disparava pela extensa área do aeroporto sem olhar para trás. Após muitos “me belisca” ditos para as amigas, para ter certeza de que tudo aquilo não era um sonho, lá estavam Wisline e o marido bem de frente ao cordão de isolamento do desembarque de passageiros. Seguravam a faixa com uma foto já desatualizada, na qual se lia: “Marie, Valentina, Widelina, Wisly e Widelson, estamos felizes porque vocês chegaram!”
Depois de quase uma hora de expectativa, de conferir cada passageiro que adentrava no saguão do aeroporto, eis que surge uma mulher negra, alta, de turbante, equilibrando na cabeça uma grande mala. Seu caminhar era tranquilo, porém firme, muito diferente de toda a agitação a seu redor. Eram “os meninos”, que saíram gritando “mãe!” e emocionando a todos. As crianças correram para os braços da mãe, que, entre muitas lágrimas, não sabia qual filho abraçar primeiro. Todos estavam a sua volta, num verdadeiro amontoado de gente, implorando seu carinho e atenção.
Dona Marie, a idosa, caminhou serena até seu genro, que primeiro tirou a mala de sua cabeça antes de abraçá-la longamente. Depois, veio o abraço mais demorado, o grande reencontro das duas mães, carregado de muita emoção, que tocou fundo e silenciou a alma de quem estava por perto. As muitas lágrimas e risos das duas mulheres deixaram transparecer todo o sofrimento que haviam superado e a cumplicidade e a confiança que as mantiveram firmes e unidas, cada uma em um país, durante todos os anos de separação, angústia, dor, medos e incertezas, que ali chegavam ao fim.
Vinda para o Brasil
Jean Homere deixou o Haiti em 2012, logo após o grande terremoto que devastou o país, colocando-o na linha de extrema pobreza. A necessidade de garantir a sobrevivência da família fez dele um refugiado. Na época, Wisline estava grávida e ficou com os filhos. Mas, com o nascimento da criança, ela também deixou o Haiti, chegando ao Brasil em 2014; os quatro filhos ficaram sob os cuidados da avó, em Porto Príncipe. O então caçula era um bebê de oito meses e a promessa era de que “um dia” todos voltariam a viver juntos.
Os anos se passaram e, embora a saudade aumentasse a cada dia, Wisline e Jean perceberam que, apesar da economia que faziam, tinham que trabalhar muito tempo ainda – ela como zeladora de um clube social e ele como operário da construção civil - para cumprirem a promessa que haviam feito aos filhos. Todos os meses, o casal enviava recursos para o Haiti, para garantir o sustento dos filhos, com a vantagem do câmbio sempre favorável ao real.
No início de 2021, incentivada por uma colega de trabalho, Giselda Lamira, Wisline iniciou uma campanha na internet para arrecadar recursos, mas o resultado não foi o esperado. Foi nessa época que esta jornalista foi chamada para contar a história desses bravos haitianos, que, apesar das dificuldades que enfrentavam, mantinham serenidade invejável. Eles estavam bem adaptados no Brasil e já tinham o pequeno Benjamin e alguns amigos que os confortavam quando a saudade apertava. Num dos encontros, a repórter extrapolou sua função, sugerindo uma Feijoada Solidária para tentar arrecadar os recursos que faltavam para a compra de cinco passagens para o Brasil.
Feijoada em clube japonês
De início, o grupo batizado de “Amigos do Haiti” era pequeno, mas a empatia foi o sentimento que moveu a ação. Procurado, o presidente do Instituto Cultural Nipo-Brasileiro, Tadayoshi Hanada, prontamente cedeu a cozinha e estimulou o voluntariado em torno do evento. Assim, muitas pessoas foram aderindo ao movimento, tornando-se suficientes para a arrecadação de ingredientes, venda de convites e entrega das feijoadas. A assistente social Ivone Mendonça, também qualificada como chef de cozinha, e sua colega Luzia Toledo se prontificaram a preparar o prato. Ninguém ficou de fora: pessoas moradoras de outras cidades e até de outros países, como Holanda e França, enviaram suas doações para colaborar nas despesas. Até vegetarianos e veganos tornaram-se voluntários e fizeram questão de comprar e doar o prato. O sucesso foi inevitável.
Terminado o evento, o montante já era suficiente para a busca das passagens. Mas um fato inesperado não permitiu qualquer comemoração. No final de novembro de 2021, o agravamento da situação política do Haiti e as denúncias de contrabando e tráfico de drogas em voos fretados para o Brasil, fizeram com que a única companhia aérea que ligava os dois países suspendesse as operações. Veio, então, um novo período de espera para finalizar a situação.
O Haiti é um país do tamanho do estado de Sergipe, sofre com constantes terremotos e vive há muitas décadas de ditadura em ditadura; depois que o último presidente foi assassinado, em julho de 2021, grupos milicianos passaram a disputar o poder, tornando a população alvo de todo tipo de violência. Desde o começo dos anos 2000, a situação só tem se agravado, inclusive com a pandemia da Covid-19, para os seus 1,3 milhão de habitantes; até a interferência das Organizações das Nações Unidas (ONU) foi vista como negativa, tendo em vista muitos casos de violência, abusos e estupros cometidos por soldados em missão de paz.
Adversidades e milagres
Diante de tamanha dificuldade, o sentimento de impotência tomou conta da maioria dos que torciam pela família haitiana. Ao contrário do que se imagina, os órgãos de apoio aos refugiados têm atuação tímida; assim como as organizações não governamentais, que se limitam a oferecer auxílio no aprendizado da língua portuguesa, no cadastramento para as vagas de empregos e no apoio espiritual. Os casos de “reunião familiar” são de responsabilidade exclusiva dos refugiados. Os interessados são encaminhados à Carel Turismo, uma agência de viagens com sede em Curitiba.
Na virada para o ano de 2022, em contato com a Carel, o grupo concluiu que a suspensão dos fretamentos de voos era uma questão muito mais complexa do que se imaginava. Mesmo assim, havia a esperança. Carel, a diretora da agência, uma haitiana que mantém uma empresa para atender seus conterrâneos, disse que buscava alternativas contatando empresas aéreas fora do Brasil. De volta a Campinas, o grupo tentou, durante todo o ano, encontrar alguma saída junto às organizações não governamentais, empresários e autoridades de vários níveis. Mas não obteve sucesso. No final de 2022, vieram as eleições, a mudança de governo e a expectativa de que tudo, finalmente, pudesse mudar.
Nas primeiras semanas deste ano, a Carel Agência de Turismo anunciou o fretamento de um voo com uma companhia equatoriana, que traria os haitianos da capital Porto Príncipe somente até Manaus. O preço da passagem era quase o dobro do que era há um ano atrás. Mesmo assim, a família via essa oportunidade como única e não quis deixar passar. Revelou que tinha conseguido juntar mais algumas economias no último ano e que buscariam também ajuda de parentes para conseguir pagar as cinco passagens até Manaus.
Mas o drama não terminou aí. Havia a necessidade de atualizar as liminares da justiça, que haviam vencido, e as autorizações para que os menores pudessem viajar com a avó. O tempo era curto e o pior: ninguém poderia garantir que a documentação seria liberada a tempo. Depois de muitas negativas, quando finalmente veio a resposta positiva, já era véspera do embarque no Haiti e ainda faltava comprar as passagens de Manaus a Campinas. Uma nova corrida contra o tempo em busca de recursos e, mais uma vez, a empatia de amigos fez a diferença. O ex-vereador Cid Ferreira, presidente da Associação dos Aposentados, entidade onde Wisline é funcionária, e a assistente social Ivone Mendona garantiram o final feliz à família haitiana.
Lição que fica
Família reunida, coração aquecido. Era hora de conferir se não faltava ninguém na van. Começa a viagem de volta a Campinas. Wisline e a mãe, sentadas lado a lado, não param de falar na língua delas, o crioulo. Enquanto os meninos fazem suas brincadeiras, sorridentes, as moças trocam as primeiras impressões do Brasil em francês, único idioma ensinado nas escolas do Haiti. Jean, que já entende bem o português, conta histórias do seu país para a publicitária Aline Kracizy. “Saudades de lá?” A resposta estava na ponta da língua: “de nada”. “Agora que minha família chegou, não tenho saudades de nada. Meu sonho agora é comprar uma casa para a família”, revela. Wisline, por sua vez, diz: “meu coração agora está em paz. Deus ajudará em tudo o que vier daqui para frente, como sempre ajudou”.
Pelo WhatsApp, Carel manda um áudio emocionado, depois de ver fotos e vídeos dos haitianos chegando. “Mandei um advogado para o Haiti, só para cuidar dessa família, para garantir o embarque e a passagem pela Imigração em Manaus. Valeu a pena”, disse chorando. “Quando temos uma grande intenção e fazemos o esforço adequado, a graça divina não falha” – essa foi a resposta desta jornalista, recorrendo ao ensinamento do mestre indiano Sri AmmaBhagavan.
O “Amigos do Haiti” pretende em breve realizar um encontro de confraternização e de agradecimento, reunindo todas as pessoas que participaram da jornada, e deixa um alerta à sociedade: “A humanidade precisa se conscientizar de que a questão dos refugiados é de todos, e o poder público e as autoridades precisam urgentemente olhar para isso com mais empatia.”