Mãe formou-se psicóloga e produziu filme para combater a violência emocional que pode levar vítimas ao suicídio
No documentário ‘Perto Demais’ exibido ontem, Anderson Salvador conta que foi vítima de bullying, não encontrou amparo na família e, hoje adulto, ainda sente as consequências do que sofreu (Rodrigo Zanotto)
A dor de ver a filha de 5 anos se sentir rejeitada pelos coleguinhas de escola e o medo de perdê-la por suicídio levaram uma moradora de Campinas a estudar Psicologia e se tornar uma ativista contra o bullying. Na quinta-feira (20), a psicóloga Vanessa Rodrigues fez o lançamento nacional do documentário “Perto Demais”, um relato emocionado de combate à violência sistêmica nas escolas. O filme, que está disponível gratuitamente na internet — www.pertodemais.com.br —, foi apresentado durante o lançamento da Cartilha de Prevenção e Combate ao Bullying nas Escolas, que será distribuída nas unidades da rede municipal de ensino.
“Ela somente pensava em se matar”, afirma a psicóloga Vanessa Rodrigues, que se tornou uma especialista no desenvolvimento de aprendizagem emocional, expert em crianças e adolescentes, e percorre o País dando palestras. O bullying envolvendo a filha, que hoje tem 13 anos, era por um motivo banal, o seu cabelo, e a levou a pensar em uma atitude extrema. Foi o ápice de uma situação que começou com o que muitos poderiam considerar como “brincadeira”, mas que mexia com o emocional de uma criança que passou por isolamento social em uma escola particular. Ela era deixada sozinha na hora do lanche e não era convidada para as festas de aniversário.
Essa é uma situação mais comum do que se imagina. O bullying atinge um a cada cinco estudantes brasileiros e 21,4% dos alunos de 13 a 17 anos afirmaram ter sentido que a vida não valia a pena, aponta a Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PenSE) 2019 realizada pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e divulgada no ano passado.
O termo em inglês 'bulling' ganha significado que todos entendem na forma de agressão física, intimidação, humilhação, ofensas, exclusão e discriminação por raça, cor, aparência, gênero, defeito físico, estatura, idade e vários outros fatores.
Documentário
A psicóloga começou a escrever “Perto Demais” em 2018 e, no ano seguinte, a bancar do próprio bolso o início das filmagens, até começar a captar verbas pela Lei do Audiovisual. O filme de quase 51 minutos traz relatos de vítimas de bullying que, muitas vezes, foram alvo ainda na infância e, já adultas, continuam carregando as consequências dos ataques. Elas têm desde dificuldades de relacionamento, se sentem excluídas da família e até mesmo cicatrizes de mutilação no corpo.
O documentário está disponível para escolas, ativistas, órgãos sociais e qualquer interessado em usá-lo no combate à violência. O trabalho continuará com uma série de 10 episódios com os especialistas mais renomados do Brasil, com o objetivo de distribuir material gratuito e de qualidade para educadores de todo o País.
“Eu sinto a dor de cada mãe com um filho que passa por isso”, afirma Vanessa, que desenvolve um trabalho social e busca colegas que possam dar assistência social gratuita para as vítimas. É uma ação desenvolvida presencialmente e pelas redes sociais — @vanrodriguesoficial.
Em todos os lugares
O estudante Carlos Eduardo Vidal Rodrigues, de 18 anos, atua como voluntário no trabalho de acolhimento na escola aonde estuda. “Muitas vezes, o que as pessoas precisam é de alguém que as ouça, de um abraço”, ensina. Apesar de o estabelecimento ter cerca de 2 mil estudantes, ele diz que os casos de bullying são raros e ele mesmo nunca sofreu algo no ambiente escolar.
Porém, a situação ocorre em outros locais. “Hoje cedo, quando vinha para a escola, uma mulher segurou a bolsa e mudou de calçada”, conta Rodrigues, que é negro e alto. “Isso também acontece no ônibus e em outros locais. Outro dia, foi na cafeteria em um shopping, onde as pessoas me olhavam desconfiadas”, completa. “Eu procuro ignorar. Coloco na minha cabeça que não sou assim”, explica, completando que se considera uma pessoa acolheradora e busca irradiar essa empatia.
Mas nem todos reagem assim. Um dos depoentes no documento, Anderson Salvador, conta que foi vítima de bullying na escola e não encontrou amparo na família. Ele relata que na infância, após uma atividade com tinta vermelha, retornou para casa com as unhas sujas e acabou apanhando do pai, que pensou que era esmalte. A mãe não o protegeu e, assim, o menino perdeu a confiança de contar para ela os ataques que sofria dos outros alunos por “ser diferente”. Agora adulto, “parece que não faço parte da minha família, sou um estranho”, diz Salvador, que deixa as lágrimas correrem pelo rosto enquanto revela a sua história.
“O bullying, para mim, é algo que não se faz, é algo que machuca. Você não tem a dimensão da ferida que vai abrir em uma pessoa, você não tem dimensão do que isso vai causar. Podem pensar: é uma criança, ela vai esquecer. Não, ela não vai esquecer, é pior ainda quando é uma criança. Parece que toda vez que tenho que falar sobre o que sofri com 8 anos de idade, é como se estivesse sofrendo agora”, relata Camila Benetasso. “O bullying te mata aos poucos, vai lhe corroendo por dentro”, completa Camila, que se cortava, como uma válvula de escape para a situação de opressão e depressão.
Cartilha
“A prevenção e o combate ao bullying nas escolas devem ser permanentes. Antigamente, o bullying era considerado uma brincadeira, o que não é. Ele deixa marcas sérias”, afirmou o secretário municipal de Educação, José Tadeu Jorge, ao lançar a cartilha no auditório da Escola Estadual Carlos Gomes, no Dia Mundial de Combate ao Bullying. O guia foi distribuído para as escolas municipais.
“O bullying começa dentro de casa, porque as pessoas acham que estão fazendo uma brincadeira. A criança, o adolescente reproduz o que os adultos fazem na sociedade”, disse o coordenador de Prevenção ao Combate ao Bullying nas Escolas da Secretaria de Educação, Mário Marcelo Ramos. De acordo com ele, o manual vai complementar um trabalho contínuo que envolve os estudantes, suas famílias, funcionários e a equipe de gestão dos estabelecimentos de ensino. A ação abrange atividades preventivas, de identificação e apoio aos envolvidos nos casos de violência.
Para o promotor da Infância e Juventude, Rodrigo Augusto Oliveira, as ações contra o bullying devem ser baseadas no conceito de Justiça Restaurativa, que envolve a vítima, o agressor e outros indivíduos normalmente que atuam como agentes facilitadores.
“É preciso que se respire a democracia e haja diálogo. Essas coisas vivem juntas”, afirmou, explicando que é necessário respeitar, aceitar e saber viver com as diferentes pessoas que formam os grupos sociais. Segundo o promotor, “a sociedade pode se desintegrar” quando isso não ocorre. “Para a melhoria da sociedade, é preciso que esse trabalho seja integrado, para promover uma infância e juventude saudáveis”, afirmou o juiz da Vara da Infância e Juventude de Campinas, Marcelo da Cunha Bergo.
O coordenador do Comitê Intersetorial pela Primeira Infância Campineira (PIC), Thiago Ferrari, considera ser importante promover diálogos positivos e “relacionar esses planos com o que queremos da sociedade”. Para ele, as ações passam por promover a inclusão e respeito para evitar as situações de conflito na sociedade.
Porém, a falta de tolerância também levou os ataques para o mundo virtual. Uma pesquisa da Microsoft aponta que cerca de 43% dos entrevistados brasileiros estiveram envolvidos em incidentes de bullying na internet, o chamado cyberbullying. Realizado em maio de 2020, em 32 países, inclusive o Brasil, o levantamento mensurou o comportamento e a percepção de adolescentes (entre 13 e 17 anos) e adultos (de 18 a 74 anos) na internet. Os mais afetados pelas más condutas online foram os indivíduos das gerações Z (nascidos entre 1995 e 2010) e millennials (nascidos entre 1985 e 2000).