ATO DE SOLIDARIEDADE

Doação de órgãos pode ser autorizada eletronicamente

Procedimento, que não tem custos, é feito pela internet e gera um documento que tem força jurídica e fica registrado nos cartórios de notas

Luis Eduardo de Sousa
11/04/2024 às 13:38.
Atualizado em 11/04/2024 às 13:38
A empresária Kênia Barros Ramalho e seu sogro, Paulo Roberto Abreu, que se submeteram a transplante de rim, consideram que a autorização eletrônica de doação de órgãos é bem-vinda (Rodrigo Zanotto)

A empresária Kênia Barros Ramalho e seu sogro, Paulo Roberto Abreu, que se submeteram a transplante de rim, consideram que a autorização eletrônica de doação de órgãos é bem-vinda (Rodrigo Zanotto)

A empresária Kênia Barros Ramalho, 52 anos, e seu sogro, Paulo Roberto Abreu, 64 anos, se recordam com precisão dos dias difíceis que passaram quando se depararam com a falência renal. Ela teve uma doença autoimune que levou à falência dos órgãos, enquanto o sogro foi acometido pela Doença do Rim Policístico, que também culmina na paralisação total dos rins. Hoje, com rins transplantados, ambos levam uma vida normal e ressaltam a importância da doação de órgãos. 

"A hemodiálise é como morrer aos poucos. Você entra para a sessão, mas não sabe se vai sair. Não pode comer, não pode beber água, leva uma vida limitante", recorda Kênia. "É algo que te deixa ansioso, que te deixa tenso, que te causa uma constante sensação de mal estar", reforça Abreu.

Os dois avaliam como um grande ganho o lançamento, pelo Judiciário em conjunto com os Cartórios de Notas, da Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (AEDO), oficializada no dia 2 de março. Na prática, o sistema permite que civis oficializem a intenção de doar órgãos, após a morte, tornando oficial a decisão que será emitida pelos familiares.

O documento tem força jurídica para indicar aos médicos a vontade do falecido, ainda que a família se mostre contrária. A autorização já pode ser feita em um dos 11 Cartórios de Notas de Campinas. "Se vai possibilitar que mais vidas sejam salvas, é fantástico, pois o sofrimento causado por não ter um órgão funcionando é grande", diz Abreu, que perdeu a mãe pelo mesmo problema de saúde que enfrentou.

O coordenador do 5º Tabelião Interino de Notas de Campinas, Roberto Bagarolli, explica que o sistema torna mais fácil e oficializa o ato de declaração do doador. "O que mais atrasa a doação é a falta de autorização de um eventual doador, e esse sistema vai facilitar muito, uma vez que a declaração fica armazenada em um banco de dados ao qual o médico tem acesso pelo Cadastro de Pessoa Física (CPF) do falecido. Dessa forma, o médico já toma conhecimento se a pessoa é ou não doadora e comunica à família", diz. O documento, além disso, constitui uma prova documental ao médico.

Todo o processo é feito pela internet, através do site www.aedo.org.br. O candidato a doador acessa o sistema, faz um cadastro, indica quais órgãos deseja doar e seleciona um cartório de sua cidade para oficializar a autorização. Feito isso, um representante do cartório entrará em contato com o doador via chamada de vídeo, para confirmar a autenticidade do documento. Finalmente, o documento é assinado digitalmente e arquivado em um banco de dados.

Bagarolli explica que, além de facilitar o processo, a iniciativa se consolida como uma ação social dos cartórios à população disposta a doar. O processo não tem custos, nem para os cartórios, nem para os doadores. "O serviço constitui uma função social do cartório, presta um serviço à população e contribui para elevar a discussão sobre o assunto. É simples e nada burocrático, de modo, também, a não exigir um empenho grande do cartório", conclui. Com pouco mais de uma semana de funcionamento, ainda não há um registro de quantas autorizações foram formalizadas na cidade.

ASSUNTO IMPORTANTE

Para o médico neurologista Luiz Antônio da Costa Sardinha, da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas (SMCC), a importância da ação está na divulgação do assunto. Ele avalia que a mudança não deve gerar grande impacto na oferta de órgãos, mas tem um poder de levar a discussão sobre doação à sociedade, pouco familiarizada com o assunto.

"A doação no Brasil é consentida e a lei não muda, apesar da formalização documentada do doador. No entanto, o fato de a Justiça estar olhando para isso e se movimentando no sentido de contribuir de alguma forma é significativo. É um incentivo a mais para a sociedade, que não fala sobre doação de órgãos", explica.

"Na maior parte das vezes, a família, quando já sabe da intenção do ente querido, não se opõe e avisa ao médico que se trata de um doador. Claro que a autorização documenta, mas os resultados mesmo só virão com a educação, com o convencimento do próprio indivíduo sobre a importância de doar, de que não é um sinônimo de morte, e sim de vida. Assim sendo, orientamos sempre para que o doador fale com a família, conte a intenção e aí, claro, oficialize também", acrescenta o médico.

De acordo com o neurologista, somente na Unicamp foram 24 doações desde o começo de 2024. Dados do Hospital das Clínicas (HC) da universidade mostram que, em todo o ano de 2023, foram realizados 287 transplantes, a maior parte deles de rins, que totalizam 131 procedimentos. O número é superior ao registrado em 2022, quando 183 transplantes foram realizados. No entanto, está aquém dos 313 realizados em 2021.

Além do HC, em Campinas os transplantes são realizados no Centro Médico. A instituição não informou, no entanto, o número referente ao ano passado até a publicação. A Central Estadual de Transplantes também não informou quantas pessoas aguardam na fila de espera por órgãos na cidade.

A assessora de imprensa Jaqueline Priscila Marsson, de 36 anos, é doadora. Ela avalia como positiva a ação, que, em sua opinião, se configura como uma prova da intenção do doador à própria família. "A doação é importante para ajudar o próximo, fazer o bem. Veja quantas pessoas podem ser ajudadas quando se opta por doar, umas sete, digamos, que esperam por uma córnea, por um coração, rins, pulmões e demais órgãos. Eu acho que isso pode aumentar o número de doadores, porque muitas famílias não sabem da decisão do ente. Acho muito bom poder documentar essa decisão, que é tomada em vida", diz.

Os Cartórios de Notas ficam localizados em diferentes regiões. O ideal é que o doador que deseja formalizar selecione o mais próximo de seu endereço. No entanto, isso não é um requisito.

Felizes e com a vida de volta ao normal, Kênia e o sogro, citados no início desta reportagem, esperam que a doação se torne um ato cada vez mais frequente, que beneficie pessoas que, como eles, enfrentaram o difícil período de espera por transplante. "Se fosse o contrário e eu tivesse perdido um ente querido, teria o maior prazer de ajudar alguma família que precisa. É uma ação de se parabenizar, que com certeza vai atuar em benefício de quem precisa e dar mais esperança para quem espera", diz a empresária.

Em todo o Brasil, a fila de espera por transplante é de 42 mil pessoas, de acordo, de acordo com dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) no lançamento da AEDO. "A maioria das pessoas na fila única nacional de transplantes aguarda a doação de um rim, seguido por fígado, coração, pulmão e pâncreas. Somente no ano passado, três mil pessoas faleceram por falta de doação de um órgão. Atualmente, mais de 500 crianças aguardam por um novo órgão", informa o órgão em nota.

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