NO VERMELHO

Dívidas levam trabalhadores a buscar renda extra com ‘bico’

Segundo pesquisa da Serasa Experian, dois de cada três inadimplentes estão recorrendo a atividades complementares para tentar pagar as contas

Edimarcio A. Monteiro/ [email protected]
27/06/2023 às 08:51.
Atualizado em 27/06/2023 às 08:51
De acordo com a pesquisa, 39% dos entrevistados classificaram a necessidade de sair da situação de inadimplência como um esforço de “superação” (Rodrigo Zanotto)

De acordo com a pesquisa, 39% dos entrevistados classificaram a necessidade de sair da situação de inadimplência como um esforço de “superação” (Rodrigo Zanotto)

O aumento da inadimplência e a queda da renda estão levando os brasileiros a recorrer aos "bicos" para tentar manter a vida financeira em dia. Duas em cada três pessoas com dívidas estão recorrendo ao trabalho extra para pagar os débitos existentes e tentar evitar se envolver com novas, revela a pesquisa "Impactos da Vida Financeira no Trabalho", realizada pela Serasa Experian, que, em abril, registrou novos recordes de número de devedores e de valor acumulado na Região Metropolitana de Campinas (RMC). O total de inadimplentes chegou a 1.094.640, número proporcional a quase a toda população estimada de Campinas, enquanto o montante atingiu R$ 6,27 bilhões.

De acordo com o levantamento feito pela empresa de análise de crédito, 76% dos entrevistados precisaram recorrer ao trabalho extra para completar a renda. A pesquisa ouviu 4.610 consumidores da base Serasa, via questionário online. É o caso do porteiro Fernando Soares, que usa as folgas da escala de 12 x 36 horas para fazer "bicos", inclusive como segurança. "Pobre trabalha para pagar as contas", justificou ele, que tem dívida com o cartão de crédito.

Soares usa o que seria seu período de descanso para cobrir a folga de companheiros de trabalho, que estão de férias ou que faltam. "Eu também fazia eventos, festas, mas parei porque ficava muito tempo de pé e era cansativo", afirmou. A pesquisa mostrou ainda que pouco mais da metade dos consumidores negativados acredita que vai conseguir pagar todas as contas em dias. O índice é de 51%, que sobe para 65% no caso das pessoas que renegociaram as dívidas.

CONSEQUÊNCIAS

A sobrecarga de trabalho, acúmulo de funções e falta de pausas contribuem para prejudicar a saúde do trabalhador. "Algumas das doenças ocupacionais recorrentes são distúrbios osteomusculares, que acometem as articulações e a coluna vertebral. Já em relação à saúde mental, transtornos como depressão, ansiedade, síndrome do pânico podem ter relação com o trabalho", explicou a presidente da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), a médica Rosylane Rocha.

O levantamento da Serasa mostrou esses reflexos. Segundo a pesquisa, 19% dos entrevistados disseram enfrentar aumento de estresse no ambiente de trabalho, 17% apontaram redução de oportunidade de crescimento (promoções, aumentos de salário, bônus), 13% disseram ter medo constante de perder o emprego, 12% admitiram queda no desempenho e na produtividade no trabalho e 11% afirmaram falta de motivação para a realização das tarefas.

Samuel César Lopes é um dos que encaram a dupla jornada de trabalho. Durante o dia, atua como "marido de aluguel" em Campinas, fazendo pequenos serviços de eletricista e encanador. Á noite, principalmente de quarta-feira a domingo, atua como entregador de lanches em Hortolândia. "A gente tem que correr atrás de alguma coisa", disse Lopes, que perdeu o emprego de caminhoneiro, atividade na qual atuou por 14 anos.

Mesmo com as duas frentes de atuação, ele disse que é difícil pagar todas as contas e ganha menos do que no emprego anterior. Para a gerente e especialista em educação financeira da Serasa, Patrícia Camillo, o alto número de inadimplentes que dizem fazer "bicos" é reflexo também da alta taxa de juros no Brasil. "Isso traduz também, além da inflação e do alto desemprego, a falta de acesso ao crédito no mercado, já que muitas pessoas não têm por onde conseguir crédito e recorrem à informalidade", afirmou.

Na quarta-feira passada, o Banco Central decidiu manter a Selic, a taxa básica de juros, em 13,75%, pelo sétimo mês seguido. Assim, o patamar no país continua no maior nível desde dezembro de 2016 e resulta no maior juro real do mundo. Para Patrícia, o alto índice de inadimplentes e a pesquisa da Serasa apontam para a importância das pessoas procurarem manter o controle da vida financeira.

"É muito importante que a educação financeira seja uma pauta constante, mas também que esteja na agenda das empresas e empregadores em ações que auxiliem a vida financeira dos brasileiros", comentou a gerente. Ela ressaltou que o levantamento mostra como a saúde financeira impacta na vida profissional. 

A pesquisa revelou que 39% dos entrevistados apontaram como "superação" a necessidade de sair da situação de inadimplência. Além disso, 38% dos que conseguiram renegociar a dívida apontaram que é uma "motivação" para colocar a vida financeira em dia. "Esses sentimentos são muito simbólicos para nós, porque mostram que, quando a pessoa tem a oportunidade de quitar dívidas, voltar a ter acesso ao crédito, ter respiro financeiro, ela se sente motivada a voltar a sonhar e fazer planos, sejam eles pessoais ou profissionais, muitas vezes com mais consciência do que antes", explicou Patrícia.

A busca por trabalho fez Jean Pereira percorrer os 155 quilômetros que separam Itapetininga, onde mora, e Campinas para fazer o assentamento de piso em uma casa no Jardim Proença. Ele diz que, com exceção da parte elétrica, faz qualquer trabalho na construção civil, incluindo o de pedreiro, encanador, montador de ferragem, pintor e marceneiro. O trabalhador receberá R$ 5 mil para assentar 100 metros de piso, tarefa que calcula executar em três dias.

"Se eu trabalhasse contratado por uma construtora, ganharia menos de R$ 3 mil por mês", disse. Pereira chegou na segunda-feira (26) a Campinas e pretende ir embora amanhã. Para reduzir os custos, vai dormir e tomar banho na obra. Ele admitiu o risco de ficar sem trabalho pelos próximos dias por causa da informalidade, mas disse que a remuneração que consegue compensa.

INADIMPLÊNCIA

A situação dos 1.094.640 inadimplentes registrados pela Serasa em abril equivale a dizer que a Região Metropolitana de Campinas tem um devedor em cada grupo de três habitantes, considerando que a população é estimada em 3,3 milhões de pessoas. É o maior número de devedores da série histórica da empresa, que traz os dados desde janeiro de 2019. O total representa um aumento de 0,37% em relação aos 1.090.584 de março.

Na comparação com abril de 2022, quando o número de devedores era de 1.050.641, o aumento foi 4,19%. Em 12 meses, 43.999 novos consumidores foram incluídos na lista de inadimplentes, o que dá uma média 120,54 por dia ou um a cada 12 minutos. Campinas chegou no quarto mês deste ano a 431.063 devedores, o equivalente a 36,83% da população, estimada em 1.170.247 pelo Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O aumento foi de 1,23% em relação aos 425.829 de março, acima do registrado na RMC.

Na comparação com abril do ano passado, o crescimento foi de 2,68%. Campinas tinha 419.816 consumidores negativados no quarto mês de 2022, de acordo com os dados da Serasa. Segundo a empresa, 19 das 20 cidades da RMC registraram alta no número de inadimplentes em abril. Apenas Morungaba manteve o número em relação março - 4.648.

Os R$ 6,27 bilhões do valor total da dívida na Região Metropolitana representou alta de 1,9% em relação aos R$ 6,15 bilhões de março. Nos últimos 12 meses, o aumento foi de 22,01%. Em abril de 2022, o valor foi de R$ 5,1 bilhões. Segundo a Serasa, os cartões de crédito representam o maior número das dívidas (28,14%), seguido por contas de água, energia e gás (22,93%) e varejo (12,49%).

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