Cirurgião plástico defendeu que não se deve procurar corrigir qualquer elemento físico que gere insatisfação
Natural de Ituiutaba-MG, Juarez Avelar escreveu 38 livros ao longo de sua carreira, a maioria compartilhando conhecimentos sobre cirurgias plásticas (Rodrigo Zanotto)
O cirurgião plástico Juarez Avelar, natural de Ituiutaba-MG, percorreu uma trajetória de trabalho e paixão pela medicina. No Rio de Janeiro, ainda na década de 1960, conheceu o renomado Ivo Pitanguy, considerado um dos pioneiros da cirurgia plástica no Brasil. Com ele, se especializou na área e trabalhou na reconstrução de tecidos das pessoas vítimas de queimaduras, em cirurgias de orelha e no desenvolvimento de técnicas reparadoras.
Hoje com 83 anos de idade, o médico continua trabalhando em seu consultório em São Paulo. “Claro que tenho que me poupar um pouco, trabalho em uma dosagem menor, mas continuo”, contou. Ao longo de sua carreira publicou 38 livros, a maioria em sua área de atuação. “Em nossa área, da cirurgia plástica, temos conhecimento suficiente aqui no Brasil. E é um prazer desenvolver o conhecimento com meus colegas brasileiros.”
Viúvo há dois anos, Juarez criou as três filhas da esposa e com ela teve um filho, que seguiu o caminho da odontologia. São oito netos e onze bisnetos. “Casei meu oitavo neto nesta semana em Belo Horizonte.”
Juarez Avelar visitou a sede do Correio Popular, a convite do presidente-executivo Ítalo Hamilton Barioni, e concedeu a entrevista a seguir. Os principais momentos da sua trajetória de vida e profissional, como o convívio com Ivo Pitanguy e a participação no projeto Rondon, são alguns dos destaques da conversa.
O senhor é filho de qual cidade?
Eu sou de Ituiutaba, Minas Gerais. A família é de uma comunidade rural, sendo que sou o filho do meio entre cinco irmãos. Lembro que quando eu tinha cinco anos de idade o meu irmão mais novo, o Jarbas, então com três anos, foi acometido em um acidente com fogo e se queimou. O problema é que na cidadezinha não tinha hospital, médico ou enfermeiro. Pelo que me lembro não tinha nem farmácia. Aquilo me marcou muito, por ser parente e pela situação. Graças a Deus que ele não ficou com sequelas, mas foi a minha estrela, pois falei para meu irmão mais velho que eu queria ser médico para conseguir cuidar das pessoas que precisassem de mim.
Como era a relação com a família?
Considerando os perfis dos irmãos, eu era o mais indicado para auxiliar minha mãe nos serviços domésticos e no cuidado com meus irmãos mais novos. O meu pai era alfaiate e minha mãe costureira. Eu fiquei cordialmente com meus pais em casa, ajudando nos afazeres da casa e também no trabalho de costura de minha mãe. Eu me interessei pela fita métrica e aprendi os números. Dobrando ela para cá e para lá, fui aprendendo as operações básicas. Também aguardava a chegada de minha irmã mais velha, que quando voltava da escola me ensinava o que havia aprendido naquele dia. Depois mudamos para área urbana de Ituiutaba, fui fazer o teste para entrar no grupo escolar e fui aprovado, porque até alfabetizado eu já estava. Tanto que não fiz o primeiro ano, já fui direto para o segundo.
Como era a relação com o trabalho? Suponho que dentro desse contexto todos ajudavam com a renda da casa...
Eu, então com 12 anos, junto com meus irmãos mais novos, de 10 e 8 anos, tivemos a ideia de vender jornal nas ruas. Eu vendia nas vilas da cidade o impresso Folha de Ituiutaba. Fiquei muito curioso para saber como funcionava o preparo de um jornal. Foi quando meu pai falou com o dono do jornal e eu consegui entrar de estagiário para aprender a arte gráfica. Depois de um ano, aprendi todas as etapas da gráfica. Além do jornal, fazia impresso gráfico, nota fiscal, cartão de visita, de casamento, tudo. No entanto, o dono não podia me admitir porque estava com o quadro de funcionários completo, então ele me indicou para outro jornal, que, curiosamente, era o concorrente, o Correio do Pontal. Fiquei um tempo neste jornal até ir para Uberaba, para completar os estudos. Para continuar ajudando com as contas da casa, consegui, através de meu pai, que tinha um primo que era padre, trabalhar no Correio Católico.
Esse trabalho era o suficiente para manter o seu sustento?
No segundo ciclo do científico, eu estudava de manhã e trabalhava à tarde nesse jornal, mas a conta não fechava com o que eu ganhava na gráfica do jornal, pois tinha que pagar o colégio, a república onde morava e mais a alimentação. Nessa época, 1960, Juscelino Kubitschek já havia mudado a capital para Brasília e participaria de um evento em Uberaba no dia 3 de maio. Pensei nisso e escrevi uma carta para ele, contando de minha situação, que queria estudar e me tornar médico... Enviei a carta pelo correio e fiquei esperando. Enquanto isso, trabalhava o dia todo. Mudei de horário por questões internas, estudava à noite, e o colégio parou de me cobrar as mensalidades. Eu nunca perguntei o motivo. No fim, ganhei uma bolsa de estudos. Nunca soube se o presidente leu, mas ganhei a bolsa.
E como foi que o senhor conseguiu estudar medicina?
Em 1961, resolvi estudar no Rio de Janeiro porque recebemos um modelo de convite na gráfica muito bem alinhavado. Aquilo me chamou a atenção e decidi ir estudar no Rio de Janeiro. Fui para lá fazer o cursinho, pois sabia que com o que tinha estudado não conseguiria entrar na Faculdade de Ciências Médicas. Não tentei o vestibular, pois tentar não faz parte do meu vocabulário. Fiquei um ano me preparando. Quando prestei o vestibular fui aprovado.
Como o senhor se sustentava no Rio de Janeiro?
Com a reserva que fiz trabalhando no jornal. O meu pai me ajudou também a me manter lá não apenas no ano do cursinho, mas também nos dois anos seguintes. Como a faculdade era estadual, não tinha despesa com educação.
O sonho de medicina de quando era criança se fortaleceu da maneira como o senhor imaginava?
Sim, desde criança, pela compaixão com meu irmão. No Rio de Janeiro, ocorreu um incêndio em 18 de dezembro de 1961, em um circo em Niterói. Morreram 800 pessoas. Quando teve o incêndio, sem uma relação de causa e efeito, eu decidi (seguir a carreira), pois me apiedei das famílias que sofreram. E para o curso de meu destino, depois, quando estava com o doutor Pitanguy na formação da especialidade, eu atendi vários pacientes sequelados daquela tragédia.
Como foi o período de faculdade?
No terceiro ano fui dar plantão. Naquela época, tinha um concurso público para os alunos do quarto ano da faculdade. Mesmo assim, prestei e passei, com uma boa classificação, por isso pude escolher o hospital em que trabalharia. Fui para o Souza Aguiar, fiquei dois anos. E vi um cartaz, neste hospital, sobre um curso de queimadura, no hospital Barata Ribeiro, perto do Morro da Mangueira. Fiquei atento, pois quando vi aquela transferência de pele de uma região do corpo para recuperar outra fiquei encantado. Pensei: é essa a área da medicina que eu quero.
E foi nesse curso de queimadura que surgiu o contato com o Ivo Pitanguy?
Foram duas aulas com o Dr. Pitanguy, nas duas eu sentei na mesma cadeira. No final notei que ele me identificou e veio falar comigo, já afirmando: “Você não é formado né?”. Expliquei que não e contei toda a minha ficha para ele. Ele, então, perguntou se eu tinha interesse em cirurgia plástica, eu respondi que tinha. Ele disse que era para procurá-lo quando eu terminasse o curso para fazer o dele. Fiquei atordoado com a iniciativa dele comigo. Sem nenhuma apresentação, sem o intermédio de ninguém. Fui pesquisar e era um curso de pós-graduação na PUC. Naquela época, para fazer a especialização era necessário acompanhar um médico, um cirurgião. Eu tinha preferência por cirurgia cardíaca, pelo estudo espacial da hidrologia, da anatomia. Teve um episódio em que minha mãe estava com uma cefaleia muito grave, complexa. Eu a trouxe de Ituiutaba para o Rio para se tratar, e deu certo, no fim não era nada grave, ela tinha uma escoliose, fez o tratamento e sarou. Percebi que, obviamente, meus pais envelheceriam cada vez mais e que precisariam de mim. Então abortei minha ideia de talvez ir para os Estados Unidos fazer a especialização em cirurgia cardíaca. Com a oportunidade de fazer o curso dele, pensei em uma estratégia de não ficar muito próximo nem me afastar tanto, para que não se esquecesse de mim.
Já existia a possibilidade de começar o curso com ele?
Não, porque surgiu o projeto Rondon, quando participei muito dos treinamentos da primeira turma que foi para Porto Velho, em Rondônia. Fiquei encantado com essa história, mas não fui na primeira turma por razões financeiras. Tocou o meu coração a possibilidade de, como médico, atender pessoas de uma região muito distante, carente, e de maneira filantrópica. Já formado em medicina, em 1968, em gratidão ao meu país que garantiu uma faculdade gratuita para mim, fui para o projeto Rondon. Fiquei 45 dias no Amazonas a bordo de uma corveta da Marinha brasileira.
Como foi essa experiência? Qual era o público principal atendido pelo senhor?
Indígenas, muitos indígenas. Eles foram informados por rádio que o governo chegaria para os atendimentos. Aquilo me encantou. Era um atendimento sazonal, pois a corveta parava, fazíamos o atendimento e depois íamos embora. Tinha de tudo: mordidas de cachorro, de cobra, de cavalo, queimaduras, câncer, de tudo. Fiquei com uma visão crítica, porque o atendimento não poderia ser tão sazonal e tinha que ter remédio para a população. Além do remédio, era necessário ter uma demonstração para aquelas pessoas dos recursos para melhorar a saúde deles. Em meus relatórios eu fiz a crítica de que deveria haver um trabalho permanente, contínuo para a população. Depois, teve a operação Rondon 2, quando fui designado para o Rio Grande do Sul, para a cidade de Dom Pedrito, fronteira com o Uruguai. Lá, mais uma vez um raio cruzou meu caminho, pois nessa cidade morava em uma fazenda um cirurgião plástico de Porto Alegre. Meus colegas conseguiram agendar uma visita com esse médico, Demétrio Xavier, que é um nome sagrado para mim. Ao me receber, disse que estava sabendo de que eu queria fazer cirurgia plástica. Disse que queria fazer com o Dr. Pitanguy, mas que não sabia quando conseguiria encontrá-lo novamente. O Demétrio bateu no meu ombro e disse que a oportunidade aconteceria mais cedo do que eu pensava, pois ele era amigo do Pitanguy. Espontaneamente, ele escreveu uma carta de apresentação. Eu conversei com esse homem por 15 minutos e sabia que, com essa carta, estava saindo de lá com um tesouro.
Como o senhor entregou a carta a ele?
Quando voltei do sul, liguei para o consultório do Pitanguy e marquei uma visita minha. Entreguei a carta para ele, que, surpreso, perguntou qual seria minha ligação com o Demétrio. Expliquei o que havia ocorrido. Na carta, dizia que eu havia feito um meritório trabalho com a população das regiões atendidas e que ele, Demétrio, teve uma boa impressão do meu caráter e da minha personalidade. Pitanguy afirmou que eu faria o curso de pós-graduação com ele, começando no ano seguinte. Novamente me passou um raio pela cabeça, pois eu tinha que falar para ele que, na verdade, no ano seguinte, continuaria no projeto Rondon. Consegui ver o pensamento dele: “esse cara é um picareta”, mas ele me disse para ir e começar o curso com ele em 1970, não em 1969. No entanto, ele pediu: “Você vai, mas me dê notícias lá da Amazônia”.
E mandou as notícias para ele?
Em uma noite pensei que se o Pitanguy queria notícias, eu as daria. Fui até a Prefeitura local e pedi uma máquina de escrever emprestada. Escrevi uma carta. Um mês depois, chegou uma carta de volta, com a resposta de que ele gostou muito de minha iniciativa e queria ir até a Amazônia para conhecer o trabalho, que neste período ocorria na cidade de Parintins, no Amazonas. Mas infelizmente ele não pôde ir, pois tinha muitas viagens para fora do Brasil. Mesmo assim, me convidou, quando eu voltasse para o Rio, para dar uma palestra no curso dele, contando da experiência e da importância do papel social que eu estava desenvolvendo. Assim foi feito e no ano seguinte comecei o curso dele. Eu tive muito acesso à parte científica. Localizei alguns pacientes que tinham amputação de orelha e isso me despertou a curiosidade pelas pessoas que nasceram sem orelha, vítimas de queimadura na orelha ou até mesmo quem perdeu a orelha por mordida de cavalo. Eu me especializei nesse tipo de cirurgia de reconstrução. Foi um período muito bom, fui aluno dele por três anos no curso de pós-graduação. Depois, foi meu parceiro de trabalho por mais de 40 anos. Ele foi meu parceiro enquanto ele viveu.
Os acidentes com queimadura têm um impacto social muito grande para a vida da vítima, da família e do trabalho. É preciso ter um olhar humanizado para essa questão...
A queimadura é uma das entidades patológicas que necessitam de mais cuidado, por ser mais dolorosa, mais aguda e mais imprevisível a consequência dela. Eu considero que é uma questão muito complexa, pois, além do problema físico, há o problema emocional. A queimadura sempre começa com algo ínfimo, um palito de fósforo, uma corrente elétrica, a mãe que botou a jarra de leite quente e a criança vem e bate a mãozinha... sempre um fator mínimo que torna a tragédia enorme. A gente opera, mas, de fato, a marca da tragédia é indelével, como no caso de Niterói, que ficaram mais de mil pessoas sequeladas. É preciso ter cuidado com queimadura de sol, elétrica, química. Até gelo queima. É realmente um quadro muito complexo.
Com relação à evolução da cirurgia plástica ao longo das últimas décadas, o senhor falou inicialmente sobre essa questão do uso da própria pele no tratamento, mas ultimamente também tem sido desenvolvida a pele artificial. Como é que o senhor vê isso? Já traz um resultado importante para a abordagem?
O que me impactou a definir a minha vida foi saber que se pode pegar uma pele do abdômen e rodar para cima aquela pele para fazer uma mama, para corrigir um câncer, para corrigir uma queimadura. Nesse percurso surgiram muitos recursos de ordem técnica, de ordem tecnológica, que favoreceram o avanço. Atualmente, há um colega nosso no Ceará, o doutor Edmar Maciel, que se dedicou a estudar o uso da pele da tilápia para corrigir o problema A técnica consiste em fazer um curativo provisório, com a pele de tilápia, para esperar o organismo reagir e criar condições de enxertar a pele do próprio paciente, porque a pele só pega se for do próprio paciente. A pele não cicatriza com músculo, com osso, ela só cicatriza com a própria pele. É assim a natureza. Antigamente eu desenvolvi um estudo que utilizava pele do pé de cadáver para melhorar as condições para o enxerto nos pacientes, hoje fazemos com pele de tilápia.
Existe, me parece, um reconhecimento por parte das entidades médicas de que há um certo exagero em relação à cirurgia estética no Brasil. Como o senhor analisa essa questão e como e aconselha os seus pacientes?
Com muita preocupação. A cirurgia plástica é um ramo da medicina e um ramo da cirurgia em geral. Nós temos toda uma origem baseada nos princípios hipocráticos. Primeiro que cada paciente é um ser único no universo, não existem dois iguais. O nosso corpo é dividido em metades, cada uma de um jeito. A natureza não consegue criar dois seres humanos, nem vegetal nem outros animais, iguais. A nossa versão digital da mão direita não é igual à mão esquerda. Esse aspecto do individualismo do ser humano é que repercute na cirurgia plástica, com procedimentos que às vezes são realizados até por pessoas que não são médicas. Com a eletrônica, com as redes sociais, hoje fica muito fácil reproduzir os procedimentos. É uma coisa que não me agrada. Eu respeito os procedimentos estéticos, mas não faço. Eu gosto de procedimentos cirúrgicos necessários para o paciente. Temos que ter muita preocupação, pois dentro da cirurgia plástica existem muitos procedimentos que geram um desastre muito grande para o paciente. Muitas vezes o resultado é vendido como algo muito fácil, mas não é uma guerra fácil. Essa é, sim, uma preocupação entre os médicos da cirurgia plástica e da medicina em geral.
O principal motivo para isso é a busca pelo corpo perfeito?
É normal, já dizia o Pitanguy, que o corpo tenha rugas. Não precisa se submeter a cirurgia plástica por cada defeito, cada insatisfação. Vamos com cuidado. O paciente tem que olhar no espelho e perceber o que ele realmente quer. Tem que ser uma decisão dele querer melhorar essa imagem virtual que possui sobre si. Por exemplo, uma criança que nasce com o lábio leporino. Não tem que perguntar para a criança se ela quer a cirurgia ou não: tem que corrigir o lábio leporino dela. É a mesma coisa a criança que tem uma deformidade craniofacial. Agora, uma criança que nasce sem orelha, que é uma área que eu domino muito, eu só opero quando a criança quiser se submeter à cirurgia. Se percebo na consulta que ela não está nem aí com a deformidade, eu não opero. É preciso que o paciente que vai se submeter a cirurgia, ao pós-operatório, à dor do curativo, esteja à disposição para isso. A cirurgia plástica é reconstrução, é uma mescla de estética com reparação indissociável.
O senhor é presidente da Academia Cristã de Letras... qual é a sua relação com a fé em conjunto com a medicina?
É preciso que o médico tenha essa convicção de fé para que possa transmitir ao seu paciente, e a espiritualidade, junto com as informações necessárias, podem melhorar o entendimento dele. É muito difícil, no meu ver, dissociar um atendimento de uma fé espiritual, fé em Cristo. Eu vejo com uma perspectiva muito boa nesse sentido. A evolução dos pacientes, clínicos ou cirúrgicos, é altamente diferenciada quando observo que ele reza, tem fé, acredita, quando o paciente é obediente. Além de ter fé, é obediente. Acredita nas forças espirituais e transfere para o seu próprio bem.
O que o senhor faz para relaxar? Como faz para conviver tão bem consigo?
Trabalho todos os dias, o dia todo. Também faço caminhadas, ginástica, leio, pois para escrever tenho que ler. Vejo muito pouco televisão. Não gosto de ver as notícias, já vivi o suficiente para ver notícias. Eu gosto de estar comigo mesmo e caminho porque é uma atividade que se pratica sozinho.
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