Primeira mulher negra a assumir um cargo diretivo na história da instituição, Débora Jeffrey vê política de cotas como um passo, mas se preocupa com a permanência estudantil dos ingressantes
O início da trajetória na Unicamp foi como docente em 2009, quando ela foi a primeira mulher negra a entrar na Faculdade de educação; ela ainda foi a primeira negra a assumir uma chefia de departamento e a coordenação de um curso de Pedagogia (Rodrigo Zanotto)
A sociedade ainda tem grandes desafios a superar para promover a formação educacional de crianças, adolescentes e a democratização do acesso ao ensino superior. A opinião é da nova diretora da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Débora Jeffrey, primeira mulher negra a assumir um cargo de direção em 48 anos de história de uma das principais instituições de ensino do país. Para ela, a política de cotas sociais é um passo, mas são necessárias ações para garantir a permanência desse aluno e também para ampliar a participação dentro da própria comunidade acadêmica.
“Nós temos unidades na Unicamp que não têm nenhum docente negro, isso é uma realidade”, afirmou Débora Jeffrey nessa entrevista concedida a convite do presidente-executivo do Correio Popular, Ítalo Hamilton Barioni. Ela abordou ainda a questão do racismo, discriminação e preconceito no meio educacional, além de outras temas atuais, como as propostas de escolas cívico-militares e a privatização da administração de escolas públicas.
A senhora é natural de qual cidade?
Sou daqui de Campinas. Não nascida, mas criada na Vila Padre Anchieta desde o início do conjunto habitacional. Família remanescente da Vila Pompeia, Vila Mimosa e que depois se muda para a Vila Padre Anchieta. Eu chego lá com 2 anos e fico até os 24 anos, mais ou menos. Sempre muito envolvida com Campinas, muito em função do meu pai, que tem um instituto de idiomas que está na Vila Industrial, mas já esteve no Centro.
A minha infância, adolescência e vida adulta foi esse processo de andar pela cidade, ver todas as transformações até me formar em Pedagogia, em 1999. Aí iniciei a carreira profissional e, por volta de 2004, me mudei para o interior de Goiás, em Porangatu, onde atuei na universidade estadual. Fiquei cinco anos fora. Saí de lá e fui para São José do Rio Preto, antes de voltar para Campinas.
Os seus estudos foram em escola pública?
Não, eu estudei no Colégio Coração de Jesus. Fiz toda minha formação de educação básica lá. A minha mãe foi auxiliar de enfermagem na Unicamp, servidora desde a época da Santa Casa, que depois veio a ser o Hospital de Clínicas, o HC, quando se transferiu para o campus (da Unicamp). Eu cresci com essas duas referências, saúde e educação. Com a minha mãe, foi a vivência na Unicamp, conhecer a universidade, participar dos movimentos, greves, encontros sociais, culturais. Ela sempre me levou para esses eventos desde pequena. Eu cresci junto com a Unicamp.
Como foi a escolha por Pedagogia?
Na verdade, a Pedagogia me escolheu. Por influência de meu pai, acompanhei todo o processo pedagógico do instituto de idiomas. Depois também tive uma prima que foi para o Magistério. Quando cheguei no ensino médio, o Coração de Jesus deixou de oferecer o Magistério, mas optei por continuar no colégio. Pensei em fazer Jornalismo, trabalhar com fotografia, jornalismo esportivo. Pensei em fazer Educação Física, por conta do vínculo com o vôlei, também veterinária. Acabei delimitando que a área de Humanas era a que gostaria de ficar. Prestei Unicamp, Unesp, USP e PUC-Campinas. Não passei na USP, onde prestei vestibular para Psicologia, que também foi a escolha na PUC, onde passei. Na Unicamp e Unesp foi Pedagogia, curso que acabou sendo a minha escolha. Eu já gostava de ensinar, acompanhando meu pai na escola, e depois, durante a adolescência, ajudei a alfabetizar crianças do DIC 3, onde meu pai morava. Depois comecei a auxiliar na alfabetização de jovens e adultos. Acabei optando por ficar na Unicamp e já na minha primeira semana fiquei encantada com o curso. Eu entendia que, como estudei em um colégio privado, com muita dificuldade dos meus pais para pagar, tinha que dar esse retorno para a sociedade. Meu pai é estrangeiro, é da Guiana Inglesa, e entendia que tinha que investir na nova educação, minha e do meu irmão. Foi uma oportunidade diferente do que a de vizinhos, colegas e familiares. Já no final do primeiro ano de Pedagogia comecei ame envolver com a iniciação científica e a me aventurar no campo da pesquisa. Paralelo a isso, tentei também descobrir muitas coisas e possibilidades que a Educação me permitia. Uma delas foi atuar em trabalhos voluntários e nos finais de semana em projetos de alfabetização, reforço. No meio do curso, realmente entendi que era a pesquisa que eu queria, seguir na carreira acadêmica, o que me levou a fazer mestrado e doutorado.
Quais são os seus temas prioritários de pesquisa?
Atualmente, eu tenho feito uma discussão de políticas de ações afirmativas. Lá atrás, no início da Pedagogia, eu acabei me envolvendo muito com a discussão da escola pública, qualidade de ensino, discutindo a relação professor/aluno. No meio da pesquisa de iniciação científica, acompanhei todo o processo de implementação do regime de progressão continuada no Estado de São Paulo, que depois levo para o mestrado e segui no doutorado. A leitura de Paulo Freire foi muito importante, principalmente “Pedagogia do Oprimido”, para compreender uma perspectiva de Pedagogia crítica. A escola e os meios tradicionais não dariam conta de responder a todos os meus anseios. Eu entendia que a educação teria um sentido de transformação, não somente minha, mas também de quem eu pudesse ensinar – e, ao mesmo tempo, também aprendendo.
Qual a avaliação que a senhora faz hoje do ensino público, os pontos positivos e negativos?
A gente tem que olhar como ponto positivo o processo de democratização e universalização que tivemos, principalmente no ensino fundamental. Diferente dos países europeus e outros tidos como desenvolvidos, nós conseguimos fazer todo esse processo em menos de 25 anos. Temos como marco a Constituição de 1988, que já tornava obrigatório o ensino fundamental, e nós já estamos falando de um processo de democratização já nos idos de 1998 do ensino fundamental e mais recentemente do ensino médio. Acho que temos de olhar para isso como um mérito de todo o sistema educacional e, ao mesmo tempo, de políticas instituídas no país que permitiram ter nos bancos escolares 98% das crianças e adolescentes de 7 aos 14 anos, depois a ampliação da escola para nove anos. O grande desafio que temos agora é a universalização do ensino médio. Nós estamos em um momento da chamada reforma do ensino médio, do seu entendimento com suas especifidades. Isso vem decorrente deum processo da universalização do ensino fundamental. Os desafios que temos hoje na Educação são garantir a entrada, permanência e saída do ensino médio, mas com propósito de formação cidadã, de senso crítico. Nós vemos nesse processo de transformação, nos últimos dez anos, uma formação de sujeitos que desenvolvem competências e habilidades, mas que não necessariamente desenvolvem senso crítico. Acho que a escola está emum momento bastante complexo, onde se tem a influência das novas tecnologias, essa concepção pragmática da Educação, não crítica, e no desenvolvimento de competências e habilidades. Quem nós queremos formar, por qual motivo e qual sociedade que estamos projetando? São discussões que sempre faço com os estudantes.
A senhora colocou que fez a opção de ser uma estudante trabalhadora, desenvolvendo várias atividades ao mesmo tempo. Porém, dentro da Unicamp, há quem veja isso como um problema: os alunos deve se dedicar exclusivamente ao ensino. O país já tem uma evasão muito grande no ensino médio, por conta de adolescentes que tem de trabalhar, o que se repete no ensino superior. Como evitar essa evasão diante da necessidade desse jovem ter que trabalhar para ajudar a família?
Nós estamos exatamente neste momento, principalmente as estaduais paulistas quando optam pelas cotas étnico-raciais. Esse é o público que estamos falando, filhos da classe trabalhadora, pessoas negras, que muitos são os primeiros de suas famílias a se formar no ensino superior. A gente sabe que existe a questão de desigualdade socioeconômica e que muitas vezes não basta apenas a bolsa, o auxílio. Esse estudante precisa de um apoio para entender os códigos da universidade para conseguir sobreviver ali. A universidade tem que estar aberta a atender a essas demandas e dar o auxílio. Tem algumas propostas de mentoria que são importantes para dar um direcionamento a esses jovens. Na pandemia, principalmente, foi um período bastante complicado, porque alguns estudantes traziam essa demanda, principalmente os cotistas, uma vez que as famílias perderam o emprego, a sua subsistência. Com as bolsas, mesmo que pequenas, eles conseguiram manter suas famílias. Compete também à universidade entender as demandas que esses estudantes muitas vezes trazem e o desafio que é ter uma universidade noturna. Estou na Faculdade de Educação e priorizo a atuação no ensino noturno por todas essas histórias de vida. A gente sabe que é necessário terum olhar que precisa ser diferenciado.
A Unicamp era conhecida por ter estudantes da classe média alta, mas esse perfil mudou. A maioria dos alunos, hoje, é oriunda da escola pública. Quais os desafios que isso traz?
Já tem uns três, quatro anos que isso vem acontecendo. Isso se deve anteriormente à bonificação e depois foi intensificado com a adoção do sistema de cotas étnico-raciais. Este ano foi aprovado no Conselho Universitário as cotas PCDs (pessoas com deficiência). Estamos abrindo, mas a questão não é abrir: é fazer com que esse estudante permaneça. Sabemos que há, claro, docentes, institutos, pessoas que entendem que querem um curso de excelência, que tenha e forme somente esses estudantes que fiquem ali dedicados, focados nisso, mas se a gente quer primeiramente democratizar o ensino superior para depois garantir uma universalização, ou atender ao que está previsto no Plano Nacional de Educação, que tem ameta de 24% a 28% dessa população dos 18 aos 24 anos dentro da universidade, nós temos que entender essas especificidades socioeconômicas, culturais e principalmente étnico-raciais.
Como tem sido o desempenho desses estudantes cotistas, como a senhora avalia esses primeiros anos das cotas e quais os avanços possíveis para melhorar essa questão da permanência?
Hoje já há estudos e pesquisas que demonstram que não ocorreu essa afirmação, que ocorria na sociedade como um todo, que o estudante cotista traria a qualidade para baixo. É umestudante, claro, que entra na universidade e precisa se apropriar, porque são códigos específicos, modos de ser, de comunicação, de linguagem, mas, a partir do momento que ele que passa a entender, o desempenho dele é satisfatório tanto quanto, e emalguns casos até superior, o de outros estudantes. Então, esse é um mito que cai por terra. O que é importante falar em relação as cotas é o processo de entrada e representatividade da população brasileira. Hoje ela é constituída por quase 56% de pessoas negras, e nós conseguimos abrir esse espaço, essa universidade, para que seja a representatividade étnico-racial do país, coisa que antes não tínhamos. Eu sou de um tempo da Unicamp em que os estudantes (negros) eram poucos. Na minha turma, por exemplo, nós eramos em apenas duas estudantes brasileiras no diurno e duas no noturno. Os demais vinham através de convênios com os países africanos e estudavam na Unicamp. Hoje, eu dou aula para uma turma de estágio que tem dezesseis alunos, cinco negros. Ainda não é o ideal, mas é um aumento considerável. A minha tese de professora titular foi defender a política de ações afirmativas, entendendo como uma política pública. E não basta somente as cotas, nós temos que garantir a representatividade. O que muitas vezes acontece é que esses estudantes entram e a estrutura continua do mesmo jeito. O que muita vezes esses estudantes colocam, não apenas os negros, mas também os indígenas, é que eles não se veem, se sentem sozinhos, não se apropriam desses códigos. A estrutura precisa entender que esses alunos vêm de uma escola pública muitas vezes deficitária e que a universidade precisa auxiliá-los. O desafio que temos é que dos primeiros que se formaram, nós estamos com a segunda turma, muitos se sentem ressentidos pelas situações de racismo, de violência simbólica, de discriminação, de preconceito que vivenciam. Então, eles falam que vão terminar e vão embora, não querem ficar, muitos que teriam capacidade de seguir para a pesquisa. Então, aí temos outro enfrentamento no programa de pós-graduação.
Tocando nessa questão, a senhora é a primeira mulher negra a assumir um cargo de direção na Unicamp, que traz uma visão diferente de realidade. Como isso pode contribuir para abrir a Unicamp para mais políticas afirmativas?
Eu diria que não é apenas o meu caso, mas há um movimento emcurso no país de ter pesquisadores, docentes, acadêmicos negros e negras que estão assumindo postos. A gente ainda tem alguns desafios. Na USP, Unesp, Unicamp e universidades federais isso já está acontecendo, já temos reitores negros e negras, diretores assumindo. Aqui demorou porque fomos os últimos a entrar nesse processo, em 2017. Eu entrei na Unicamp como docente em 2009, quando fui a primeira mulher negra a entrar na Faculdade de Educação. Fui a primeira negra a assumir, em 2011, como chefe de departamento, a primeira mulher negra a assumir a coordenação de um curso de Pedagogia. Ainda hoje, na Faculdade de Educação, somos apenas sete pessoas que se autodeclaram como negros em um cenário de mais de 78 docentes, ou por volta de 106 se considerarmos os colaboradores da pós-graduação. Se a gente colocar em porcentagem, ainda é (uma participação) muito pequena. A Unicamp aprovou o concurso para docentes, mas em caráter experimental durante três anos e com a distribuição inicial de um docente negro em cada unidade. Esse programa ainda não foi implementado porque os recursos para essas vagas não foram liberados pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo. Nós temos unidades na Unicamp em que não há nenhum docente negro, isso é uma realidade. Assumir como uma mulher negra a direção da Faculdade de Educação, em 2024, é realmente abrir portas da Unicamp e universidade estaduais paulistas e contribuir também para a superação dessa desigualdade racial que existe na sociedade, e principalmente na academia, mas ainda temos um grande caminho a percorrer. Muitos estudantes, meninas, homens, vêm e conversam conosco. Eles dizem que querem ser assim, querem o apoio, que se espelham. Tem esse sentido da representatividade, mas também há a consciência dos desafios que isso traz. Eu procuro desenvolver as minhas ações na universidade desde o acolhimento. Estamos fechando um curso de extensão voltado para professores e professoras, diante da necessidade de legitimar a lei 10.639 sobre a obrigatoriedade da história da África e indígena. Nós estamos com um projeto de jogos educacionais baseados na africanidade e com a disciplina de um professor da Faculdade de Artes, que chama Africanidades Brasileiras. No ano passado, ela foi procurada por mais de 230 estudantes. É uma disciplinar complementar em que a gente trabalha as questões raciais, origem, racismo, preconceito, discriminação, direitos, representatividade. É uma disciplina muita vezes tensa, pois os estudantes trazem essas demandas, ou violências, que muitas vezes sofrem. Eles dizem que viveram isso, não sabem o que fazer, estão sem sentido, sem rumo. Alguns acabam se acolhendo, uso a expressão de aquilombam, no sentido de um dar apoio para o outro. A partir dessa disciplina, nós vamos vendo algumas iniciativas dos estudantes. Uma das turmas foi de alunos da Engenharia. Eles conseguiram mobilizar a coordenação de curso para ter ao menos uma disciplina de formação ampla em humanidades em que essa discussão racial estivesse presente.
Com ascensão das redes sociais essa polêmica ganhou maior proporção. Muitas vezes a sociedade não teve o esclarecimento devido do que está sendo proposto, do que pode mudar. Gostaria que a senhora falasse, por exemplo, das escolas cívico-militares e da proposta do governo de São Paulo de "privatizar" a administração das escolas.
Hoje nós temos uma projeção das redes sociais com um grande clamor a favor e contra. Primeiro é preciso ter o entendimento do que envolve as escolas cívico-militares do ponto de vista de concepção pedagógica. Eu vou coibir a violência com princípios de autodefesa, como isso tem sido apregoado. Nós temos outras formas e instâncias de lidar com as diferenças, com os problemas, seja de ordem pedagógica ou comportamental. Segundo, nós queremos sujeitos dóceis, que sejam apenas receptivos e reproduzam o que alguém espera, ou nós vamos, de fato, ter essa sociedade integrada? No caso das escolas cívico-militares, eu acho que não dá para confundir. Pedagogia e educação precisam ser trabalhadas por quem é formado. É um posicionamento contrário (a essas escolas). A Faculdade de Educação já fez moções de repúdio contrárias a essa proposta. Privatizar a gestão da educação, nós vimos o exemplo de Goiás, do Paraná, são situações bastantes difíceis e complexas. O princípio que rege o mercado, o princípio privatista, não é o mesmo do público. Nós estamos lidando com formação humana. Então, nós vamos quantificar a formação humana ou converter em metas? Acho que todo mundo que está envolvido com a educação tem compromisso. As pessoas que acordam cedo e vão dar a sua aula, por mais problemas que existam, elas estão compromissadas. O que fomos vendo nesse processo histórico envolvendo a educação foi um distanciamento dessa gestão, e eu estou falando da Secretaria Estadual de Educação, da comunidade escolar. Se há um distanciamento cada vez maior, como pode identificar os anseios e, ao mesmo tempo, buscar respostas, soluções e alternativas da comunidade para esss escola?
Diante de tantas atividades, sobra tempo para ter um hobby?
Gosto muito de viajar, mas ultimamente está um pouco difícil. Ver séries e filmes é o que eu tenho me permitido fazer, é o que tem sido possível para desacelerar nos finais de semana.
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