NO CNPEM

Descoberta enzima capaz de produzir biocombustíveis

A partir de matérias-primas como cana-de-açúcar e soja, o novo biocatalisador tem potencial para gerar produtos alternativos aos derivados de petróleo

Edimarcio A. Monteiro/ [email protected]
01/08/2023 às 08:48.
Atualizado em 01/08/2023 às 08:48
Uma das possibilidades abertas com a descoberta pelos pesquisadores do CNPEM da nova enzima é a produção de biocombustível para uso na aviação (Kamá Ribeiro)

Uma das possibilidades abertas com a descoberta pelos pesquisadores do CNPEM da nova enzima é a produção de biocombustível para uso na aviação (Kamá Ribeiro)

Pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), sediado em Campinas, descobriram uma nova enzima, batizada como OleTPRN, com potencial para produção industrial de biocombustíveis a partir de fonte vegetal, que podem ser usados por veículos de transporte de longas distâncias ou para a fabricação de plásticos, polímeros, resinas e solventes, em substituição ao petróleo. O objetivo da pesquisa é chegar a alternativas energéticas que tragam impactos econômicos positivos ao país, bem como contribuam para a redução da emissão de gases causadores de efeito estufa.

A OleTPRN, que atua como um biocatalisador, mostrou-se promissora para o desenvolvimento de biocombustíveis e bioprodutos dropin, como são chamados aqueles que apresentam composições químicas e características físicas semelhantes aos dos derivados de petróleo, podendo ser utilizados diretamente, sem exigir a adaptação das máquinas e da infraestrutura existente. A enzima é capaz de converter ácidos graxos (derivados de gorduras e óleos animais e vegetais) em alcenos, também conhecidos como olefinas, que são hidrocarbonetos (compostos por hidrogênio e carbono) que correspondem a 70% do setor de petroquímicos.

"Um dos grandes desafios para a produção de combustíveis drop-in para a aviação é a oxigenação. Esse setor requer moléculas não oxigenadas na constituição do combustível. Por isso que os biocombustíveis que temos hoje, como o etanol e o biodiesel, não podem ser utilizados para a aviação, por exemplo", explicou a coordenadora da pesquisa do CNPEM, a física e mestre em biofísica molecular Letícia Zanphorlin.

"A enzima descoberta é capaz de desoxigenar matériasprimas por meio de uma reação de descarboxilação, produzindo hidrocarbonetos, o que contribuiria para solucionar esse problema", completou. A descarboxilação é uma reação química na qual um grupo carboxilo (grupamento orgânico) é eliminado de um composto na forma de dióxido de carbono, mais conhecido como gás carbônico (CO2). 

MATÉRIAS-PRIMAS

Entre as vantagens apresentadas pela OleTPRN está a possibilidade do uso de diferentes matérias-primas. A produção dos hidrocarbonetos pela enzima ocorre por meio da conversão de ácidos graxos, que são moléculas abundantes em oleaginosas, como óleos de milho, soja, macaúba e até óleo residual. Também podem ser utilizados resíduos lignocelulósicos, como bagaço de cana e restos de eucalipto, que são ricos em açúcares, e em processos fermentativos utilizados para a produção de óleo (ácidos graxos) e então convertidos em hidrocarbonetos.

A descoberta da OleTPRN abre possibilidade para novos usos de produtos agrícolas em que o Brasil é maior produtor mundial. É o caso da soja, que na safra 2022/2023 deve chegar 151,4 milhões de toneladas, e também da cana-de-açúcar, com produção estimada em 637,1 milhões de toneladas em 2023/2024, de acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), empresa vinculada ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

O uso de biocombustível no transporte aéreo, por exemplo, pode ajudar a reduzir os efeitos prejudicais ao meio ambiente causados pelo querosene de aviação, que é derivado do petróleo, aponta pesquisa internacional liderada pela Universidade Metropolitana de Manchester, no Reino Unido. Segundo o estudo, esse combustível representou 3,5% do impacto causado pelo homem para o aquecimento global. O resultado foi obtido com base na análise de dados do setor aéreo de 2000 a 2018.

Os pesquisadores calcularam que os aviões foram responsáveis pela emissão de 32,6 bilhões de toneladas de gás carbônico ao longo da história, e que metade desse valor foi gerada apenas nos últimos 20 anos. O aumento expressivo é atribuído à expansão do número de voos e do tamanho das frotas, especialmente na Ásia. A queima de combustíveis fósseis no transporte aéreo também emite outros poluentes, como os hidrocarburetos gasosos e os óxidos de nitrogênio (NO e NO2).

A PESQUISA

De acordo com Letícia Zanphorlin, a enzima identificada abre um leque de oportunidades em razão da sua compatibilidade com microrganismos industrialmente relevantes. Além disso, a descoberta cria uma nova referência na produção biológica de hidrocarbonetos. Os sistemas enzimáticos existentes são inibidos pelo ácido oleico, além de requererem condições funcionais não compatíveis com os microrganismos normalmente utilizados em biotecnologia industrial.

"Nesse trabalho, utilizamos uma abordagem interdisciplinar desde o estudo genômico de bactérias produtoras de hidrocarbonetos até abordagens em nível atômico utilizando [LUZ]síncrotron e supercomputadores brasileiros para elucidar um novo mecanismo biocatalítico para produção de hidrocarbonetos de diferentes tamanhos de cadeia, uma das maiores classes de moléculas precursoras para biocombustíveis e químicos.", explicou Letícia, que lidera a pesquisa.

A descoberta do CNPEM foi publicada no periódico da Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), revista oficial da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. Para entender o funcionamento desta nova enzima, foi necessário combinar a luz síncrotron de última geração produzida no Sirius e o supercomputador Santos Dumont, ambas instalações científicas brasileiras. Pela combinação desses estudos foi possível explicar a base molecular da reação de descarboxilação de ácidos graxos para a formação de hidrocarbonetos.

A elucidação da estrutura atômica da OleTPRN foi feita na linha de luz Manacá do Sirius. A estação experimental gerou as informações necessárias sobre o conhecimento molecular, quais as suas interações fundamentais e os aspectos inéditos que governam a reação de descarboxilação.

O estudo de energias renováveis é uma das áreas estratégicas do CNPEM, organização privada sem fins lucrativos, sob a supervisão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. A pesquisa que levou à descoberta da nova enzima foi financiada com recursos próprios do centro de pesquisa e do Fundo de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), instituição de fomento ligada ao governo paulista. O trabalho já tornou possíveis registros de patentes de interesse da indústria.

IMPACTOS ECONÔMICOS

Os próximos passos do estudo englobam a otimização de bioprocessos e escalonamento em um ambiente industrialmente relevante. O CNPEM conta com uma planta piloto que confere a possibilidade de estudo de escalonamento para um volume de até 300 litros. O centro científico opera quatro laboratórios nacionais e é o berço do projeto mais complexo da ciência brasileira, o Sirius, uma das fontes de luz síncrotron mais avançadas do mundo.

Pesquisadores do CNPEM divulgaram um estudo que revela dados sobre as perspectivas para o desenvolvimento de processos biotecnológicos inovadores para a produção de biocombustíveis. "Atualmente, há uma corrida tecnológica mundial para viabilizar um novo modelo de produção e consumo com base em insumos de origem biológica", afirmou o diretor do Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LNBR/CNPEM), Eduardo do Couto e Silva.

"O Brasil possui uma rica biodiversidade e biomassa abundante, diversificada e economicamente competitiva. Esforços para desenvolver biotecnologias de relevância industrial que sejam sustentáveis podem colocar o país numa posição de protagonismo no cenário internacional", acrescentou. Os resultados da pesquisa do centro estão disponível online no Chemical Engineering Journal (CEJ), revista que concentra os trabalhos publicados sobre três aspectos da engenharia química: reação, ambiental e síntese de materiais e processamentos.

De acordo com o estudo, a cana-de-açúcar e o óleo de soja se destacam para a produção em larga escala de biocombustíveis, considerando os impactos econômicos e ambientais em diversos cenários. As tecnologias atualmente disponíveis para a produção de hidrocarbonetos a partir da biomassa requerem, muitas vezes, elevadas temperaturas e pressões, além de catalisadores químicos.

O desafio do CNPEM é viabilizar processo de base biológica, que procura integrar etapas enzimáticas ao metabolismo de microrganismo, em um conceito da fábrica celular, utilizando proteínas capazes de realizar reações de forma específica em condições mais amenas. Segundo o estudo econômico, os cenários baseados na cana apresentaram uma perspectiva melhor por envolverem menor custo operacional em relação à soja.

De acordo com a pesquisa, o processo aprimorado de base biológica poderia fornecer um combustível à base de hidrocarbonetos com um preço mínimo de venda compatível com os preços de mercado de combustíveis tradicionais, e intensidade de carbono semelhante à do etanol de cana-de-açúcar, representando uma redução estimada em mais de 70% nas emissões de gases de efeito estufa em comparação aos combustíveis fósseis.

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