Procura por esses serviços chegou a aumentar em até 70% em alguns lugares
Funcionária de uma sapataria, no Jardim Guanabara, realiza costura em maquinário: na manhã de ontem, pilhas de malas se acumulavam na entrada e também pela escada e andar superior da loja, onde ocorrem os consertos (Dominique Torquato)
Comerciantes que trabalham no conserto e reparos de produtos estão constatando o aumento na procura dos serviços. Devido à alta da inflação, que fechou em 11% no mês de junho, artigos novos estão sendo substituídos pelo reparo dos velhos, como alternativa para fechar as contas do mês. De acordo com o doutor em Economia, Saulo Abouchedid, o fenômeno é resultado dos reflexos da crise e da lenta recuperação do poder de compra.
“São duas faces da mesma moeda: a aceleração inflacionária - que acaba contraindo o poder de compra - e o rendimento do trabalhador”, aponta Abouchedid, que também é coordenador do Núcleo de Estudos de Conjuntura Econômica (NEC) da Facamp e professor de Macroeconomia e Economia Monetária na mesma faculdade. “A aceleração inflacionária contribui para a deterioração da renda, dificultando o acesso dos trabalhadores a bens duráveis, especialmente. Então, quando mencionamos consertos e reforma, referimo-nos a vestuário, calçados e bens duráveis - como eletroeletrônicos, cujos preços estão se acelerando nos últimos tempos por conta dos aumentos do custo de produção.”
De acordo com o último dado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), o rendimento médio do trabalhador ficou em R$ 2.575 no mês de junho. Esse valor corresponde ao salário médio, já descontado os impostos. Antes da pandemia, em 2019, o valor era de R$ 2.705.
Conforme explica Abouchedid, essa queda está diretamente relacionada à inflação. A diferença, no entanto, é que o poder de compra, nestes dois anos, mudou muito, uma vez que houve aumento em todos os setores, impulsionado pela alta dos combustíveis.
“Hoje, R$ 2.575 compra muito menos coisas em comparação a 2019. Por isso, o trabalhador que recebe esse valor tem muito menos acesso, especialmente, a bens não essenciais. Com essa restrição, as pessoas concentram o consumo muito mais em bens essenciais, como alimento e moradia, e pouquíssima parte do orçamento fica disponível para bens não essenciais. Logo, a busca por reformas e consertos de produtos acaba sendo uma boa alternativa, por ser o que cabe no orçamento”, explica.
Setor vê crescimento
Em uma sapataria, no Jardim Guanabara, o empresário e dono do espaço, Anderson Lulu Bitar, contou que, em um ano, a procura pelos serviços cresceu 40%. Segundo ele, a busca é impulsionada pela alta dos valores do mercado. Um sapato novo, por exemplo, que pode custar de R$ 100 a R$ 200, fica por apenas R$ 50 no conserto. Entre os serviços mais demandados no local estão a colagem e troca da sola dos calçados e também o reparo de malas.
“As pessoas têm buscado muitos reparos, porque as coisas estão muito caras. O poder econômico caiu na pandemia, fazendo com que muitas pessoas optem pelo conserto. Hoje, nosso maior fluxo acaba sendo o de malas, até pela demanda reprimida de pessoas que ficaram em casa e que agora voltaram a sair. Estamos registrando um volume que nunca tivemos. Até brincamos que isso assustou um pouco.”
Na sapataria, na manhã de segunda-feira (8), pilhas de malas se acumulavam na entrada e também pela escada que leva ao andar superior da loja, onde ficam as equipes que trabalham nos consertos. Bitar disse que antes da pandemia, a média de conserto de malas era de 20 por mês. Quando ele falou com a reportagem, estava com 97 para consertar. “Nossa ideia é a de colocar a casa em ordem até outubro. Isso porque, hoje, trabalho com prazo de 30 dias, mas sempre trabalhamos com o prazo de uma semana, 10 dias”, justifica.
Além dele, profissionais que trabalham na área de conserto de eletrodomésticos apontaram alta de 30 a 40% no serviço, mesma média mencionada por Bitar.
Rodrigo Marques da Silva, que atua há oito anos em uma loja voltada a esse segmento, confirmou que o movimento cresceu a esse patamar após a pandemia. “O movimento sempre foi bom, mas, depois da pandemia, aumento de 30 a 40%. E isso é devido ao preço da mercadoria, que aumentou muito. Aqui, a maior procura acaba sendo para consertar ferro de passar, liquidificador, micro-ondas e fritadeira”, esclarece.
Vestuário
No segmento de vestuário, Ângela Brant, que é dona de uma loja especializada em conserto de roupas, garantiu que a procura aumentou 70% e é puxada pela necessidade de “alargamento” das peças. No local, a empresária precisou contratar mais duas funcionárias para auxiliar no serviço, devido ao crescimento da demanda.
“As pessoas deixaram de comprar muita roupa. Elas mandam arrumar, porque o preço é mais acessível do que comprar uma peça nova. Então, acabamos reformando muito. O crescimento foi mais impulsionado neste ano. Inclusive, precisei buscar mais mão de obra. Com a pandemia, muita gente engordou e vem aqui buscar o nosso serviço para aumentar as roupas, como calças. Para ter uma ideia, aumentar uma peça sai na faixa de R$ 35. Com o valor de uma nova girando em torno de R$ 200, acaba se tornando muito mais econômico”, defende.
Mais economia
Quem procura por esses serviços confirma que a alta no custo de vida e no preço dos produtos novos faz com que opção pelo conserto ou reforma se torne mais econômico.
A professora Márcia Machado, de 57 anos, estava na sapataria de Bitar na manhã de segunda-feira (8). Ela fará uma viagem a trabalho para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e a única mala que dispunha estava com a alça quebrada. “Procurei algumas malas novas para comprar, mas o valor chegava a até R$ 300. Então, mandar consertar se torna muito mais barato”, conta.
O mesmo hábito foi adotado pela diretora de escola aposentada Rosângela de Assis, de 60 anos. Eventualmente, ela buscava o serviço de reparos de roupas, mas, devido à alta no custo de vida e aos preços ‘salgados’ no segmento de vestuário, esse hábito se tornou mais frequente.
“A um tempo atrás não valia a pena consertar. O novo estava mais acessível. Agora não. Você tem que avaliar mais calmamente. Atualmente, tenho mandado mais para reparo e por dois motivos: o primeiro, é a questão dos preços. A roupa está muito cara. Estamos com poder aquisitivo menor, pelo congelamento dos salários. Então, o que não é preciso comprar, a gente mantém o outro. E a segunda, tem relação com a pandemia, período em que acabamos fazendo menos exercício e engordamos. Não tem como comprar um ‘guarda-roupa’ novo, então optamos pela reforma das peças.”
Rosângela pondera, no entanto, que a busca pela reforma de roupas e consertos de forma geral perpassa a classe social das pessoas que buscam esses serviços, em que as mais vulneráveis acabam não contando nem com essa opção. “Uma pessoa que ganha um salário mínimo, ou dois, ou até menos, não consegue nem fazer isso. A grande maioria dos brasileiros ou está na rua ou está fazendo ‘ginástica’ para o gás chegar até o final do fim do mês. Ou seja, pessoas que nem essa opção conseguem acessar.”