LICENÇA PARA MATAR

Criminosos usam brechas na lei para reincidir

Em um dos casos, menor mata agrônomo após ser liberado apesar de extensa ficha criminal

Luciana Félix
24/02/2013 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 03:34
Preso (de camiseta branca) é conduzido por policiais no corredor da Cidade Judiciária, em Campinas (Divulgação )

Preso (de camiseta branca) é conduzido por policiais no corredor da Cidade Judiciária, em Campinas (Divulgação )

B.F.S.M., de 17 anos, possui uma extensa ficha criminal com passagens pela polícia por furto, tráfico de drogas e receptação. Em uma de suas últimas ações, foi apreendido no dia 29 de janeiro ao ser flagrado vendendo drogas.

Porém, acabou liberado no mesmo dia por ser menor de 18 anos e não ter cometido nenhum crime considerado “violento” pela legislação. Cinco dias após ser detido, B. voltou a infringir a lei. Mas, desta vez, armado com um revólver calibre 38 de numeração raspada. Foi com essa arma que ele tirou a vida do engenheiro agrônomo Sérgio José Lauandos Zakia, de 60 anos, durante tentativa de assalto no Jardim das Palmeiras.

Junto com B. estava Denis Santos Macinhato, de 18 anos, que também tinha, antes daquele dia, diversas passagens pela polícia. Ele não estava preso pelos mesmos motivos: se beneficiava de brechas na legislação penal brasileira que acabam livrando marginais da cadeia e criando uma espécie de “licença para matar”.

O caso dos dois jovens é apenas mais um exemplo, entre centenas de casos, de criminosos reincidentes que voltam a cometer delitos depois de aproveitar as lacunas legais no País.

A existência de tais “regalias” gera uma série de críticas à legislação criminal brasileira, principalmente de especialistas da área, como policiais, promotores e até juízes. Todos estão diretamente envolvidos no cenário criminal no Brasil, desde a prevenção e investigação (polícias e Ministério Público) até a aplicação da lei (os juízes).

Um dos principais alvos das críticas é a recente alteração no Código Penal, em 2011, que criou a Lei da Liberdade Provisória Obrigatória (12.403). Com ela, crimes com pena de até 4 anos de detenção não geram prisão para os réus quando eles são primários (nunca condenados antes).

Para os especialistas, a mudança aumentou o número de criminosos liberados depois de detidos, mesmo em flagrante, até que sejam julgados. Sé em caso de condenados eles podem ir para a prisão.

Lentidão

Segundo o Código Penal, um processo criminal de um réu primário deve levar até 60 dias para ser encerrado. Porém, na realidade, ele pode demorar até dois anos devido à morosidade da Justiça. Em Campinas, são seis varas criminais e cada juiz tem que cuidar de cerca de 7 mil processos. Com essa lentidão, o criminoso que não sofreu nenhuma punição continua nas ruas e pode voltar a praticar outros delitos.

Segundo dados do Ministério da Justiça, o índice de reincidência de crimes é de 70%, tanto entre os presos condenados quanto entre os que aguardam julgamento. Em Campinas, segundo a Polícia Militar (PM), de cada 10 bandidos presos, sete são reincidentes.

Com isso, a sensação de impunidade se alastra. Enquanto os bandidos acham que não serão atingidos pelas leis e seguem agindo, a população segue com cada vez mais medo e insegurança.

“A lei precisa ser revista. O correto deveria ser tolerância zero para crimes de menor potencial ofensivo, como furtos, por exemplo. Cometeu o crime, tem que ser punido. Reincidente, mesmo sem condenação, tem que ficar preso. No caso do menor B., se ele tivesse continuado detido, já que tinha uma vasta ficha criminal, a vítima estaria viva ao lado da família”, afirmou o delegado responsável pelo Setor de Homicídios da Delegacia de Investigações Criminais (DIG) de Campinas, Rui Pegolo.

“Há uma série de fatores para a liberação do ladrão. Principalmente os que cometeram crimes como furto, furto de veículo, receptação. Como são crimes que têm pena de até 4 anos, são soltos mediante fiança. Respondem em liberdade. Muitos voltam a cometer os crimes, já que não foram condenados ainda. É muito comum a polícia prender os mesmos bandidos sempre. Horas depois, eles estão soltos devido à lei, que os beneficia. É um ‘retrabalho’ constante da polícia”, disse o major Marci Elber Resende da Silva, porta-voz da PM.

Para ele, um caso em 2010 e que chocou a cidade é símbolo dessas brechas na lei. O aposentado Hugo Gallo Palazzi, de 83 anos, foi morto durante uma tentativa de roubo em sua casa no Alto Taquaral. “O bandido que matou o empresário tinha sido preso dias antes por roubar uma videolocadora, mas a lei eleitoral, que não deixa prender ninguém perto da eleição, forçou sua libertação. Ele cometeu outro crime na sequência e matou uma pessoa. A polícia prende e a Justiça libera criminosos.”

Juiz

Para o juiz da 3ª Vara Criminal de Campinas, Nelson Augusto Bernardes, a legislação é pouco rigorosa e nela há várias previsões alternativas à prisão. “Salvo os crimes com extrema gravidade, como latrocínio, sequestro e estupro, entre outros, a lei manda tentar uma pena alternativa antes da cadeia. É a política criminal brasileira. O legislador entende que a cadeia não é a solução”, explicou.

Ele afirma que a legislação penal concede benefícios que “dão chances” ao criminoso. “Ele faz o crime, não sofre punição. Comete outro e nada acontece. Isso cria nele a sensação de impunidade, de que ele pode fazer o que quiser. Ao poder Judiciário, cabe cumprir o que diz a lei. Quem pode alterar essa história é o Congresso Nacional, cabe uma pressão popular”, afirmou.

Porém, segundo o juiz, é importante fazer uma reforma no sistema carcerário brasileiro antes de pensar nas modificações da lei. “O sistema carcerário é precário. Nessas condições, não acredito que a cadeia reabilite alguém, pelo contrário”, disse.

Conflitos

Fabrízio Rosa, advogado criminalista e mestre em Direito penal, critica a legislação.“A ciência jurídico-penal inicia o século 21 em um clima crítico de conflitos estruturais internos. Não se tem a certeza de qual caminho deve see seguido, mas, desde já, se tem como certo que o Direito penal contemporâneo vive uma grande incerteza”. Para ele, reformas estruturais seriam a saída.

“É necessário fazer uma cobrança efetiva e constante de políticas de reformas estruturais, tanto no plano social quanto no plano econômico, e a implementação de outros meios de controle social, como uma educação de qualidade e a busca da reestruturação familiar, através do resgate de valores ético-morais”, disse.

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