outra realidade

Coronavírus, só mais um problema

Em Campinas, 822 habitantes vivem nas ruas, 87% deles do sexo masculino. Com idade média entre 25 e 39 anos, apenas 5% têm mais de 60 anos

Adriana Menezes
12/04/2020 às 09:17.
Atualizado em 29/03/2022 às 16:16

“Tudo fechado, a cidade vazia. Todo mundo falando disso aí”, diz Tiago Mikyo, 26 anos, que interrompe a leitura do livro A Maldição do Titã, de Percy Jackson, para dar atenção à reportagem. Sentado na calçada ao lado da Catedral Metropolitana de Campinas, diz não estar assustado. “A gente está acostumado”, fala, referindo-se ao coronavírus e aos riscos aos quais a população que vive em situação de rua está submetida muito antes da pandemia. Em Campinas, 822 habitantes vivem nas ruas, 87% deles do sexo masculino. Com idade média entre 25 e 39 anos, apenas 5% têm mais de 60 anos — cerca de 40 idosos. Entre a população de rua da cidade não há caso registrado de Covid-19, mas o abrigo emergencial está acolhendo oito pessoas sintomáticas respiratórias que estão em observação. Há mais de dois anos vivendo na rua, Tiago costuma ir ao Centro Pop I ou à Casa da Cidadania (espaços municipais de assistência social) para se alimentar e tomar banho. “Estão orientando mais sobre higiene e alimentação e com mais controle no número de pessoas: só entra de dois em dois no Pop I (alimentação) e de dez em dez no Pop II (abrigo).” Mas na hora de dormir ele prefere a rua, porque “no albergue é meio desconfortável”. Ex-estudante e ex-assalariado, Tiago está nas ruas por muitas razões, entre elas o desemprego e questões familiares. Apesar de estar certo de que está mais imune a qualquer tipo de vírus que a população que não vive nas ruas, ele fala que passou a lavar mais as mãos. Tiago volta a sua leitura e comenta: “É um livro bom, viu?” Praticamente todos na rua sabem sobre a pandemia da Covid-19 e a necessidade dos cuidados para evitar a infecção. Informados pelos agentes sociais, pela população que lhes presta auxílios eventuais ou pela mídia a que têm acesso nas casas de assistência, muitos acreditam que estão imunes por já viverem em condições adversas. E que isso tudo vai passar. Bruno Rodrigues está há há três anos na rua e diz que soube do vírus “porque o povo fala e a gente vê no jornal da TV”. Bruno, de 29 anos, também diz que as pessoas deixaram de doar comida e que os espaços de assistência social são agora a única opção. “É o que está ajudando a gente agora. Está todo mundo de quarentena. Volta e meia tem uns corajosos que saem de máscara, mas a maioria está obedecendo.” Segundo Bruno, o vírus não o assusta. “De certa forma a gente sabe que está imune. Mas a gente procura lavar a mão, manter a higiene mais ainda. Medo de pegar não tenho não, porque vulnerável a gente já está. Tem que procurar o caminho pra ir se esquivando.” Bruno cata papelão nas ruas. Prefere se alimentar no Bom Prato e só vai à Casa da Cidadania pra tomar uma ducha. Há apenas um mês na rua, Leandro da Silva Santos, 19 anos, ajeita o carrinho carregado de papelão. Ao contrário dos amigos, ele afirma que está preocupado. “Mas se Deus quiser vai melhorar.” Para se prevenir, usa álcool em gel nas mãos. Leandro diz que tem casa, em Limeira, mas agora optou por ficar na rua. Pegou um vale para se alimentar no Centro Pop e tem permanecido nas proximidades da Catedral. Cansaço Lenir Rodrigues, de 65 anos, chora e diz estar cansada. “Estou chorando porque é muita humilhação. Não tem comida, não tem nada. Estou numa situação horrível...”, afirma Lenir, que disse preferir pedir comida em vez de ir ao Centro Pop. “Não gosto.” Com pouca gente circulando nas ruas, Lenir fala que sente fome. Há dois anos e meio ela dorme na rua. “Fiquei sabendo da doença. Estou lavando a mão, passo álcool. Mas não tenho problema com esse vírus. Sou obreira da Universal.” Há 20 anos nas ruas, Miriam Cristina, 42 anos, acredita que está imune ao coronavírus por ter o vírus HIV. O fato de beber bebida alcoolica também a faz achar que não pegará a doença. “Estou sabendo do vírus, mas não pego. Eu vou e volto pra rua. Minha filha vem me ver de vez em quando”, fala Miriam, que dorme nas imediações do Terminal Central. O peruano Jensens Ferreira Sampaio, de 30 anos, mostra unhas e mãos limpas. No colo, carrega dois filhotes (um cachorrinho e um gatinho). “Mas não importa manter a higienização. Se for pra pegar, pega. Não importa se é rico ou se é pobre, milionário, bilionário... Essas pessoas têm que tomar vergonha na cara”, afirma Jensens, que já trabalhou em empresa do setor alimentício. Hoje, ele diz que dorme na calçada. “É muito complicada essa vida de morador de rua. Tem gente que joga o alimento no lixo mas não dá pra você comer. Todo mundo acha que o morador de rua é só cachaça. Por que não ajudam? Por que ficam julgando? Por que não melhoram o albergue? O que tem aí atende até um certo ponto, mas precisa organizar. O prefeito tem dinheiro e capacidade de fazer isso.” Pandemia reduz população de rua, afirma secretária A Prefeitura vem realizando o isolamento progressivo dos grupos de risco entre os moradores em situação de rua de Campinas, a começar pelos cerca de 40 idosos e os sintomáticos. A informação é da secretária municipal de Assistência Social, Pessoa com Deficiência e Direitos Humanos, Eliane Jocelaine Pereira. Anunciado na semana retrasada pelo prefeito Jonas Donizette (PDB), um decreto dá aos agentes sociais autoridade para condução de vulneráveis aos abrigos, mas sem poder compulsório. Dois abrigos provisórios, um no Taquaral e outro na região central, são destinados à população vulnerável. A secretária afirma que o trabalho de grupos voluntários foi reduzido na cidade em função dos cuidados preventivos em relação ao coronavírus. Diante disso, a Prefeitura assumiu a distribuição noturna de alimentos na área central e passou a fornecer mais vales-refeição. Outro novo cenário decorrente da pandemia foi a redução da população de rua, porque alguns retornaram às suas famílias, diz Eliane Jocelaine. Todo o efetivo e os serviços regulares da secretaria, de acolhimento e alimentação, foram mantidos e, em alguns casos, ampliados, com novos abrigos. A secretária afirma que está obedecendo as medidas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS). No Centro Pop I (Centro de Referência Especializado à População em Situação de Rua), localizado à rua Regente Feijó, 824, cerca de 150 refeições noturnas estão sendo entregues à população. Na Casa da Cidadania, na Vila Industrial, à rua Francisco Teodoro, 138, os usuários são orientados a permanecerem mais tempo na casa e menos tempo na rua. A casa tem capacidade para atender 130 pessoas.

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